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A CABEÇA DE PUTIN

A CABEÇA DE PUTIN

IVÃ IV O TERRÍVEL (1533-1584): MODELO DE AUTOCRATA RUSSO SEGUIDO POR VLADIMIR PUTIN

O título deste comentário não deve ser entendido como fez Salomé, a amante do rei Herodes, que sugeriu à filha, pela qual tinha se encantado o monarca ao vê-la dançar, que lhe presenteasse, em bandeja de prata, a cabeça de João Batista. Não peço a cabeça de Putin. Mas considero que, entre as várias abordagens que se fazem sobre a guerra que a Rússia trava contra a Ucrânia após a invasão deste país pelo seu rival e vizinho, tentar compreender a cabeça de Putin é importante.

O impacto do conflito suscitado por Putin é grande a nível global. Como frisa Thomas Friedman, articulista do New York Times, “A invasão russa da Ucrânia é a primeira guerra global (...). Pelas redes sociais e com um smartphone na mão, é possível acompanhar os combates de qualquer lugar do mundo. Mas é mais do que isso. Para Ian Bremmer, presidente da consultoria Eurásia, o conflito é o acontecimento mais importante depois da queda do Muro de Berlim porque vem incendiando o planeta inteiro”. A própria CIA pondera que reveses no atual conflito podem levar Putin a fazer uso de armas nucleares. “O fato de a Rússia ser o maior exportador de trigo e a Ucrânia, o quinto, potencializa efeitos do conflito” [Dias, Marins, Simas, Ferraz, “Alta no petróleo e nos alimentos cria onda de instabilidade mundial”, in: O Estado de S. Paulo, 17/04/2022, p. A 12].

As abordagens que se fazem do ângulo intelectual da política, podem ser agrupadas, como ensinava o magistrado e bibliotecário romano Marcus Terêncio Varro (116-27 AC), de três ângulos: Mítico, Físico (ou Filosófico, relativo à natureza – physis – das coisas) e Civil (face às tradições políticas dos povos). Deter-me-ei em cada um desses aspectos, colocando-os em relação, naturalmente, com a política russa.

1 – A política russa do ângulo mítico.

Quem de forma mais contundente firmou o Mito da Rússia como grande Império mundial foi o primeiro Czar, Ivã o Terrível (1530-1584). A respeito do que o primeiro Czar entendia pelo exercício do poder à frente da Rússia, o escritor francês Henri Troyat, pseudônimo do historiador de origem armênia e russa Liev Tarasóv (1911-2007) deixou um testemunho importante na sua obra intitulada: Ivan, o Terrível [Tradução de Célia Dourado. São Paulo: Círculo do Livro / Flammarion, 1992, pp. 27-29], que narra, de forma detalhada, as ideias e fantasias que passavam pela cabeça do jovem Ivã, que contava com dezessete anos em 1547 e que estava prestes a se casar.

Ora, o jovem nobre se pautava, na sua compreensão do poder, pelos relatos míticos dos Livros Santos. O poder deveria ser compreendido de acordo às Sagradas Tradições: como poder total, de acordo à versão autocrática da Antiguidade e, especialmente, segundo a crença de Júlio César (100-15AC) e do seu neto que consolidou o Império Romano, Augusto (63AC-14). Haveria, reza a tradição eslovena, três Romas: a dos Imperadores Romanos, a dos Imperadores de Constantinopla (Bizâncio) e a dos Czares do Império russo, em Moscou. Tudo no mundo estaria sob o comando do Czar, pois isso tinha sido revelado pelas Escrituras Santas. A respeito desse predomínio de uma concepção mítica do imperialismo russo, frisa Troyat:

”(...). Uma outra idéia está arraigada em seu coração: antes de se casar, quer ser coroado Czar. Proclama-o em alto e bom som. Os boiardos [nobres latifundiários] trocam olhares espantados: grão-duque ou Czar, onde está a diferença? Para Ivan, ela existe e há muito tempo vem pensando no assunto. Os livros santos escritos em língua eslovena dão o título de Czar aos reis da Judéia, da Babilônia, da Assíria e também aos Imperadores Romanos. Sob sua pena aparecem o ‘Czar Davi’. O ‘Czar Assuerus’, o Czar ‘Júlio César’, ‘Czar Augusto’. A palavra ‘Czar’, para Ivan, está envolta em prestígio, [proveniente] da Bíblia, do Império Romano, de Bizâncio. Aquele que é objeto dessa denominação é o herdeiro da Roma Antiga e da Nova Roma Bizantina. Ele é o chefe da Terceira Roma, cujo poder deve ultrapassar os outros dois. Graças a ele e aos seus sucessores, Moscou ultrapassará Constantinopla, Moscóvia será o ‘sexto império’ anunciado pelo Apocalipse. Além disso, segundo uma genealogia rapidamente montada para favorece-lo, Ivan é o descendente direto do Imperador Romano Augusto. De acordo com essa lenda, Augusto teria dividido o mundo entre os mais próximos parentes e destinado a seu irmão Prusso (ou Prussus) as bacias do Vístula e do Niemem. Rurik, o antepassado da dinastia moscovita, teria sido então o sucessor natural de Prusso, irmão do fundador do Império Romano. Assim, a tradição soberana russa teria sido ininterrupta desde o início da Era Cristã. Esta antiguidade asseguraria ao novo Czar uma primazia incontestável sobre os outros reis e príncipes da Europa. Ele já é, pelo nascimento, infinitamente grande entre os grandes. Tudo, no mundo de amanhã, estará um dia, segundo a vontade de Deus, submetido à lei de Moscou. E este vasto movimento de hegemonia eslava será ele, o Czar Ivan IV, que o terá desencadeado. Isso, ele não diz: seu auditório seria incapaz de compreender. Mas Macário (o Patriarca de Moscou) conhece seu secreto sonho imperialista e o aprova. Depois de um instante de hesitação, os boiardos aprovam a segunda iniciativa de seu jovem senhor. O fato importante não é que ele queira ser Czar, mas que queira escolher uma esposa entre as filhas” [Troyat, 1992: 27-28].

Ivã IV, após a coroação, casou-se com Anastásia Románovna (1530-1560), filha de Roman Zakaryin-Yuriev (1500-1543) um nobre boyardo (latifundiário) e deu origem à Dinastia dos Romanovs que prolongou no tempo, entre 1613 e 1917, as pretensões messiânicas do Czar de todas as Rússias, prolongando “a visão dos mongóis de um único imperador universal sob a égide de Deus, com suas brutais e arbitrárias decisões judiciais” [Montefiore, 2016: 54]. Se essas eram as ideias e as expectativas que passavam pela cabeça de Ivã IV, a sua coroação não ficou atrás em riqueza de sensações e no contexto de grandiosidade e luxo em que realmente aconteceram os fatos. Esta é a narrativa de Troyat a respeito da coroação do jovem Czar:

“A cerimônia de sagração se realiza a 16 de janeiro de 1547, em Moscou. Precedido de seu confessor, que segura com uma das mãos um crucifixo e borrifa, com a outra, água benta nos assistentes, Ivan sai do palácio e, ao som dos sinos, dirige-se para a Catedral da Assunção. É seguido por seu irmão Iúri e membros da corte, que competem com a riqueza de sua indumentária. É um rio de brocados, ouro e pedras preciosas que desemboca no santuário e avança lentamente na direção do metropolita Macário, dos arcebispos, bispos e priores reunidos. Invisível, o coro canta com sentimento, em voz profunda: ‘Possa ele viver por longos anos, longos anos!’. O metropolita abençoa o soberano e o conduz a um estrado de doze degraus, onde estão duas cadeiras cobertas por mantas bordadas de ouro. Ivan e o prelado sentam-se lado a lado. Os símbolos reais são colocados sobre uma mesa, diante do estrado. O metropolita abençoa pela segunda vez o monarca, coloca a coroa em sua cabeça – ou, antes, o chapéu de Monómaco, alcunha de Vladímir II, grande-príncipe de Moscou (1053-1125) – e lhe estende o cetro e o globo, pedindo em voz alta ao Todo-Poderoso para conferir a ‘este novo Davi’ a força do Santo Espírito. ‘Concede-lhe longos anos de vida’, prossegue o metropolita. ‘Coloca-o na cadeira da justiça, fortifica seu braço e submete a ele todos os povos bárbaros’. Eis Ivan sagrado, face a seus súditos, ‘Czar santo, coroado por Deus, autocrata de todas as Rússias’. No fim da cerimônia, os padres ainda cantam: ‘Longos anos para o nobre Ivan, o bom, o honrado, o favorito de Deus, grande príncipe de Vladímir e de Moscou, Czar e monarca de todas as Rússias!’ Depois de ter recebido as felicitações do clero e dos dignitários, Ivan assiste à liturgia. O ofício dura quatro horas. Mas o jovem Czar não sente nenhum cansaço. Está, ao contrário, excitado com sua decisão pelos faustos da sagração. (...). Para organizar essas solenidades excepcionais, pesquisaram-se os arquivos e reproduziu-se, em todos os detalhes, o antigo rito de Bizâncio. (...) À sua passagem, o povo se prosterna em silêncio e se persigna. Logo que desaparecem, a gente do povo se precipita em tumulto na catedral e arranca pedaços do manto que cobre o trono do Czar, todos querendo levar uma lembrança desse dia fastuoso” [Troyat, 1992: 28-29].

Citei completa a narrativa de Troyat acerca da sagração imperial, pois se trata de uma bela página do que chamaríamos hoje “realismo mágico”, destinado a povoar a imaginação popular com o ouro da lenda e as circunstâncias inusitadas e maravilhosas que rodeiam um poder sagrado do Alto. Não poderia haver melhor forma de conferir força a essa tradição mítica, que enfeitiçava a imaginação do povo camponês tradicionalmente religioso, ignorante e carente. No relato de Troyat, (como faz a na nossa literatura de cordel para reviver Carlos Magno e divinizar a Monarquia em terras brasileiras), assistimos à consolidação de um Mito que presidirá, com força, as pretensões imperiais dos Czares Russos, de todas as épocas, a fim de que a cidade imperial seja a Terceira Roma, aquela que é chamada pelo Todo-Poderoso para salvar o Mundo. Não poderiam contar os residentes do Kremlin com uma melhor mise en scène para justificar as suas ambições expansionistas e de poder total! Pois bem: é o que tem feito, sem maiores delongas, Vladimir Putin (1952-), o Czar de plantão: colocou a serviço da sua aventura totalitária e expansionista, a rica tradição mítica grã-russa.

Justificativas intelectuais para promover um grande Império eslavo que, desde o Oriente, projete sobre o corrupto e desagregado Ocidente as luzes de uma Civilização calcada no Mito salvífico do Cristianismo Ortodoxo Russo, são, falando coloquialmente, “café pequeno”, em face da magia das páginas que acabo de transcrever. As quixotescas elucubrações filosófico-políticas de A. Dugin (1962-) e de outros, não passam de pequenas notas de rodapé diante da magnificência do Mito Primordial em torno ao poder salvífico da Rússia Czarista.

Do ângulo da narrativa mítica, não foi Ivan IV o Terrível quem deu origem ao Mito da Terceira Roma. O soberano tomou essa tradição que já existia e a engrandeceu, como pano de fundo do seu projeto imperial. Analisemos agora, brevemente, a primeira expressão literária do Mito da Terceira Roma. A crença numa "Nova Roma" foi elaborada sobre uma base apocalíptica, por um monge, Filofei (1465-1542), abade do Mosteiro de Yelizárov em Pskov. O abade Filofei dedicou esse relato ao Grão Duque de Moscou Ivã III (1440-1505), o primeiro governante a adotar o título de Soberano de toda a Rússia, que tinha contraído matrimônio con Sofía Paleóloga (1455-1503), sobrinha de Constantino XI (1405-1453), o último soberano de Bizâncio. Ivã IV poderia, assim, reclamar ser o herdeiro do derrubado Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente).

Inicialmente, a noção da Tercera Roma no era, necesariamente, de naturaleza imperial, mas apocalíptica. O seu propósito consistia em destacar o lugar de Rússia como o último baluarte da Civilización Cristã Ortodoxa, que em grande parte tinha naufragado na heresia. Lembremos que o Catolicismo era considerado herético por muitos crentes ortodoxos. A Rússia, portanto, poderia ser comparada aos sete mil israelitas que se recusaram a adorar Baal nos tempos do profeta Elías, uma figura bíblica muito popular no Cristianismo Ortodoxo.

Ora, a lenda da Tercera Roma (chamada também de "a Segunda Constantinopla") começou na cidade de Tver, durante o reinado de Borís de Tver (1400-1461), quando o monge Tomás escreveu o “Elogio do Grande e Piedoso Príncipe Boris”, em 1453, no contexto das lutas dos cristãos ortodoxos contra a “Horda Dourada” dos Mongóis e contra os Cavaleiros Teutônicos. Ao ensejo dessas lutas que cobriram os séculos XIII a XV, tinha se destacado, tempo atrás, a heroica figura do herói e santo ortodoxo russo Alexander Nevsky (1221-1263), Príncipe de Novgorod.

Nesse contexto histórico de guerras religiosas concretizou-se, pois, a segunda lenda da Terceira Roma, que tomou forma literária num panegírico da lavra do monge Filofei, em 1510, o qual, em carta endereçada ao Grão Duque Basílio III de Moscou (1479-1533), anunciou a seguinte profecia: "Duas Romas caíram. A Tercera se mantém em pé. E não haverá uma quarta. Ninguém substituirá o teu reinado de Czar Cristão!" Sintetizando: Filofei identificou, de forma clara, a Terceira Roma com o Principado de Moscóvia, considerando-o como uma entidade estatal. Valha lembrar que Moscou, de forma semelhante a Constantinopla e a Roma, está assentada, também, sobre sete colinas.

2 - A política russa do ângulo físico (ou filosófico, segundo a natureza = fysis).

Os Mitos primordiais acerca das origens das sociedades tiveram uma versão conceitual, no contexto da gnose moderna proposta por Joaquim de Fiore (1135-1202). O monge calabrês elaborou uma completa versão da teologia da história à luz da gnose ocidental, pensada em Alexandria e em Atenas à luz dos ensinamentos da filosofia estoica. A pretensão dessa escola foi a de elaborar uma visão horizontal da história, que aplainasse a ideia de “graça” recebida como dom sobrenatural de Deus e que abriria a porta para uma concepção sagrada da Teologia da História, cuja versão completa foi sistematizada por Santo Agostinho de Hipona (354-430).

A salvação, para o teólogo africano, proviria não do homem, mas da intervenção sagrada que projetaria sobre o homem a luz divina, a fim de que descobrisse a versão sobrenatural do fluir do tempo, concebido como “história da salvação”. Ora, contrariando essa visão transcendente, a gnose primitiva tentava colocar a salvação em mãos do homem. Quem produz o milagre não é o “Deus Absconditus”, mas a razão humana. Para os estoicos, a sorte do homem sobre a Terra seria delineada pela sua própria razão (a “gnose”), que seria a responsável pelo aperfeiçoamento do ser humano. Esse foi o pecado identificado no livro sagrado (Fatos dos Apóstolos) como simonia. (Simão Mago ofereceu dinheiro ao Apóstolo Pedro para que lhe concedesse o dom de fazer milagres, a fim de obter, com ele, poder temporal).

Os Santos Padres gregos e latinos encarregaram-se de fazer a crítica radical à gnose. São famosos os escritos, nesse sentido, de vários deles (Orígenes, Tertuliano, São Clemente Romano, Santo Agostinho, etc.). Agostinho de Hipona sagrou a visão transcendente da história como “tempo de salvação” na sua famosa obra intitulada: A cidade de Deus. A tradição gnóstica alexandrina, no entanto, perviveu, tendo dado ensejo a inúmeras heresias. [Cf., da minha autoria,https://www.ricardovelez.com.br/blog/o-pensamento-dos-santos-padres-nos-primeiros-seculos-cristaos].

Na Baixa Idade Média, no século XII, Joaquim de Fiore elaborou uma sistematização da tradição gnóstica, a partir do seguinte arrazoado: Deus Pai criou o Mundo, Deus Filho o remiu com a sua morte e ressurreição e Deus Espírito o conduzirá à plenitude, mediante a luz da Razão concedida ao homem, que recebeu d’Ele autonomia no exercício da mesma. Portanto, não é preciso o dom da graça para nos aperfeiçoarmos como seres humanos. Chegaremos à nossa plenitude pelo exercício autónomo e livre da razão, sem precisarmos da graça [cf. Henri de Lubac, La postérité spirituelle de Joaquim de Fiore, 2 vol. Paris / Namur: Lethielleux, 1983].

Um exemplo magnífico da universalidade que tinha ganhado, na Baixa Idade Média, a consciência da “gnose” como razão cultural, religiosa e política dos diversos atores políticos, é-nos dado ao ensejo dos diálogos mantidos entre os enviados do Papa Inocêncio IV (1195-1254), os embaixadores do rei da França e os chefes da corte mongol que ameaçavam com a invasão ao principado de Moscou e aos reinos cristãos do Ocidente. É muito reveladora a carta de Guyuk Khan (1206-1248) ao Papa Inocêncio IV (sendo que este último tinha o projeto de armar um exército para converter mongóis e russos, na marra, ao Catolicismo). A missiva mongol respondia às afirmações feitas pelos embaixadores do Rei da França e do Papa; eis o teor dela:

“Vós dissestes que seria bom que eu recebesse o batismo; Vós me informastes disso e me enviastes o pedido. Esse pedido vosso, nós não o compreendemos. Outro ponto: Vós me enviastes estas palavras: ‘Vós tomastes os reinos dos magiares e dos cristãos em sua totalidade; esse fato me surpreendeu. Dizei-me que falta cometeram os cristãos?’ Essas palavras vossas, nós não as compreendemos. (Para evitar, no entanto, qualquer aparência de que tenhamos evitado este ponto com o silêncio, falamos em resposta a vós desta maneira): A ordem de Deus, tanto Gengis Khan (1162-1227) quanto Kublai Khan (1215-1294) a enviaram para torná-la conhecida, mas na ordem de Deus eles não acreditaram. Aqueles que de vós falais chegaram a reunir-se em um grande conselho, mostraram-se arrogantes e assassinaram os embaixadores que lhes enviamos. O Deus eterno matou e destruiu os homens daqueles reinos. Salvo para cumprir a Ordem de Deus, como poderia alguém, por sua própria força, matar e conquistar? E se vós dizeis: ‘Eu sou cristão; eu adoro Deus; eu desprezo os demais’ como podereis saber a quem Deus perdoa e sobre quem Ele derrama a sua graça? Como sabeis que pronunciais tais palavras? Pela virtude de Deus, desde que o sol nasce até que se põe, todos os reinos nos foram concedidos. Sem a ordem de Deus como poderia qualquer pessoa fazer o que quer que seja? Agora, vós deveis dizer com a sinceridade no coração: ‘Nós seremos vossos súditos; nós vos daremos nossa força’. Vós, em pessoa, à frente dos reis, todos juntos, sem exceções, vinde e oferecei-nos serviço e homenagem; então nós reconheceremos vossa submissão. E se vós não observais a ordem de Deus, e desobedeceis nossas ordens, saberemos que vós sois nossos inimigos. Isso é o que nós damos a conhecer. Se desobedecerdes, que saberemos então? Deus o saberá” [apud Eric Voegelin, A nova ciência da política, apresentação de J. P. Galvão de Sousa, tradução de J. Viegas Filho, Brasília: Editora da UNB, 1979, pp. 51-52].

O jurista José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992) sintetizou, da seguinte forma, a saga da gnose moderna, retomando as teses fundamentais do maior estudioso do fenômeno, Eric Voegelin (1901-1985): “E. Voegelin, neste ponto continuador [do tradicionalista espanhol] Donoso Cortés (1809-1853), em análise profunda do imanentismo moderno, filia-o à gnose dos primeiros séculos cristãos. Na Idade Média, esta heresia reaparece em alguns pensadores, entre os quais é de se destacar Joaquim de Flora, cuja interpretação da história segundo as três idades, é uma antecipação do progressismo de Turgot, Condorcet, Comte, Hegel e Marx. O marxismo é também imanentista, e aliás Marx, unindo a dialética de Hegel ao materialismo de Feuerbach, transpõe para a Matéria o que Hegel afirmava da Ideia. A gnose apresenta várias formas. Em sua modalidade predominantemente intelectual, procura penetrar especulativamente no mistério da criação e da existência. Tal é a gnose especulativa de Schelling e do sistema hegeliano. A gnose volitiva, voltada para a ação e estabelecendo o primado da praxis, destina-se a redimir o homem e a sociedade. É o caso de Comte, Marx, Lenin e Hitler, ‘ativistas revolucionários’ ” [José Pedro Galvão de Sousa, “Apresentação” à obra de Eric Voegelin, A nova ciência da política, ob. cit., p.8].

3 – A política russa, do ângulo civil (relativo às tradições políticas dos povos).

Napoleão Bonaparte (1769-1821) considerava que só haveria lugar para dois Impérios no mundo da sua época: o Russo e o Francês [cf. Emil Ludwig, Napoleão. Rio de Janeiro: Editora Globo, 10ª ed., 1957, pp. 157; 379]. Cada um deles ocuparia a metade do Mundo: a Ásia e a Europa Oriental (o Império Russo) e a Europa Ocidental, que estenderia a sua dominação – mediante o regime colonial - sobre as Américas, a Africa, a Oceania, bem como a Índia, na Ásia (o Império Napoleônico). Como aspirava a ser Soberano do Mundo, Napoleão centrou a sua atenção na derrubada do Império Russo, uma vez conquistada a Europa Ocidental. Não imaginava o conquistador corso que dos confins da Ilha Européia surgiriam as forças secretas que o derrubariam, nas penosas campanhas da Rússia e da Península Ibérica, justamente ali onde vingou uma concepção do Cristianismo como Cruzada.

Alexis de Tocqueville (1808-1859), que observava a cena mundial da época napoleônica sob o viés não do despotismo imperial, mas da prática da liberdade, considerava que, ao longo do século XIX, se consolidariam os dois grandes centros de poder que dominariam o Mundo, a partir da implantação do ideal da igualdade: os Estados Unidos da América, que centrariam esse sonho democrático na defesa da liberdade individual com responsabilidade social e o Império russo, que centraria toda a sua luta em prol da democracia, no modelo herdado do despotismo oriental centrado na subserviência total dos cidadãos ao Estado [cf. Tocqueville, A democracia na América, 2ª edição brasileira, São Paulo: EDUSP / Belo Horizonte: Itatiaia, 1977, pp. 315-316].

Meditando sobre a gesta napoleônica, o filósofo e sociólogo Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825) elaborou a tipologia do Messianismo Político, à luz da qual poderia ser interpretado não apenas o ideal pan-europeu de Napoleão, mas também a grande gesta que os russos desenvolveram no vasto Império consolidado ao longo da dinastia Románov, entre 1613 e 1917.

J. L. Talmon fez uma completa caracterização do messianismo político na sua clássica obra intitulada: Mesianismo político, la etapa romántica [tradução espanhola de A. Gobernado. México: Aguilar, 1969]. A influência do saint-simonismo, do ângulo político, teve ampla repercussão em autores tão variados como Augusto Comte (1798-1857), Jules Michelet (1798-1874), Mazzini (1805-1872) e o próprio Karl Marx (1918-1883).

Um profundo sentimento apocalíptico empolgava ao conde Saint-Simon, que previa o nascimento de uma religião universal que impusesse a organização pacífica da sociedade. Eis um trecho que revela esse propósito: “Isto é o que dizemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se resolutamente em direção ao bem geral. É a verdade na sua totalidade que deve ser salientada perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por vários textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado ativamente as sociedades bíblicas, é a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios de moralidade e religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsados do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem jamais renunciar à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende diretamente ao estabelecimento de uma religião autenticamente universal e a impor a todos uma organização pacífica da sociedade” [Saint-Simon, citado por Talmon, in: Mesianismo político, la etapa romántica, 1969: 21].

Dessa forma, Saint-Simon encarava a crise da sociedade europeia, materializada na queda do Antigo Regime a partir da Revolução Industrial e, principalmente, da Revolução Francesa. Diante dessa situação, Saint-Simon se apresentava como peça-chave para a redenção da humanidade. A propósito frisa Talmon: “Estava convencido de ser um Napoleão da ciência e da indústria, pela promessa que lhe fez Carlos Magno durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo (...) de que conseguiria tanta glória como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo” [Talmon, 1969: 22-23].

A Revolução Francesa não foi, no sentir de Saint-Simon, uma revolução regeneradora, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social. Frisava a respeito: “É a falta de ideias gerais que nos tem levado à ruína; não poderemos renascer autenticamente senão com a ajuda de ideias gerais; as velhas ideias caíram (...) e já não é possível rejuvenescê-las. Precisamos de ideias novas (...), de um sistema, quer dizer, de uma forma de opinião que seja, por natureza, cortante, absoluta e exclusiva” [apud Talmon, 1969: 26].

Ao passo que Saint-Simon desconhecia o valor de heróis aos protagonistas da Revolução Francesa, considerava, pelo contrário, que Napoleão encarnava esse valor, não pelo fato de ter sido militar ou conquistador, mas principalmente pelo fato de ter sido “(...) o chefe científico da humanidade (...) e a sua cabeça política” [Saint-Simon, citado por Talmon, 1969: 26], que legislou alicerçado em princípios racionais.

Saint-Simon preocupou-se por encontrar um princípio total que permitisse a explicação racional do universo. Nessa busca, terminou professando uma visão determinística do homem, que Talmon caracteriza assim: “(...) O homem é como um pequeno relógio dentro de outro maior, o universo, do qual recebe a energia para movimentar-se. Saint-Simon sonhava com deduzir passo a passo as leis determinantes do universo em ordem de sucessão (...) para, no final, chegar às leis da organização social mediante a reconstrução prévia da interdependência do orgânico e do inorgânico, dos corpos fixos e dos fluidos, da matéria e do movimento (...)” [Talmon, 1969: 27].

Nesse contexto, a sociedade é concebida como “verdadeira máquina organizada” ou como organismo que, ao longo dos tempos, criou os próprios órgãos para se adaptar às diferentes situações. A unidade inteligível da história não é nem o Estado, nem a Nação, mas a sociedade organicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas fruto do organismo social.

O essencial dos processos sociais é representado, no entanto, pelos sistemas filosóficos que seriam, assim, o principal mecanismo de adaptação do organismo social às diferentes épocas. Como frisa Talmon, todo sistema social é, assim, “a aplicação de um sistema filosófico. A religião, a política, a moral, a instrução pública, não são mais do que o reflexo e a aplicação de um sistema de ideias, de uma Weltanschauung (...)” [Talmon, 1969: 30].

Na primeira parte da sua obra, Saint-Simon considerava que a elite pensante que presidiria o corpo social devia ser integrada pelos industriais. A sua gestão na sociedade não se revestiria do caráter coercitivo de épocas anteriores, mas prevaleceria a razão. Todo o trabalho a ser feito consistiria em explicar a cada um o lugar que lhe corresponderia na sociedade industrial. Os homens desfrutariam, nela, do mais alto grau de liberdade compatível com a ordem social. Saint-Simon considerava que o advento da sociedade industrial deveria ser induzido por uma elite esclarecida: os pensadores, que ele denominava de savants positifs.

Apesar do papel de liderança atribuído por Saint-Simon aos líderes do saber, aos poucos foi reconhecendo, na segunda fase da sua obra, a necessidade de alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos. Saint-Simon procurou, assim, forças numa religião vital: o Novo Cristianismo. A nova religião pregada tinha um líder indiscutível: o próprio Saint-Simon. Essa religião deitava raízes na “Religião Civil”, proposta por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) na sua obra intitulada: Do contrato social [cf. Rousseau, Du contrat social. Cronologia e Introdução de P. Burgelin, Paris: Garnier-Flammarion, 1966].

A utilidade da “Religião Civil” era muito grande, segundo Rousseau. Eis as suas principais aplicações: “Banir da sociedade quem não acreditar [nos sentimentos de sociabilidade apregoados pela nova religião]; esse indivíduo pode ser banido não como ímpio, mas como antissocial, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de sacrificar a sua vida à necessidade, na prossecução do seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, se conduz como se não acreditasse neles, seja punido com a morte; ele terá cometido o maior dos crimes, terá mentido perante as leis” [Rousseau, 1966: 179].

A pretensão rousseauniana e saint-simoniana de buscar a unidade da sociedade sob a direção de um poder total, espiritual e temporal, é o nascedouro do totalitarismo hodierno. Por paradoxal que possa parecer – como frisou Talmon na obra As origens da democracia totalitária – o totalitarismo encontra-se presente no messianismo político inspirado por Rousseau [cf. Talmon, Los orígenes de la democracia totalitaria, trad. espanhola de M. Cardenal Iracheta, México: Aguilar, 1956].

É curioso como o messianismo político encontrou materializações diferentes, na França e na Rússia: entre os Franceses, essa tipologia revestiu-se do cientificismo e dos princípios filosóficos racionalistas que acompanharam a Revolução de 1789. A manifestação primordial dessa tradição na França foi, sem dúvida, Napoleão Bonaparte. Mas, na própria França o Messianismo político bonapartista foi severamente criticado pelos pensadores denominados de “doutrinários” (Royer Collard, Henri-Benjamin Constant de Rebecque, Madame de Staël, François Guizot) os quais, inspirados em Locke e no seu liberalismo whig, partiram para a crítica firme ao absolutismo napoleônico, tendo dado ensejo a um modelo de Monarquia Constitucional que se firmou entre 1830 e 1848. (Tocqueville e Raymond Aron deram continuidade a essa tradição liberal).

Já na Rússia os princípios do saint-simonismo correram por conta da nova versão do cristianismo proposta pelo filósofo francês, tendo reforçado a secular tradição do poder temporal dos Czares por força do Cristianismo Ortodoxo. O messianismo político russo encontrou a sua manifestação na visão cientificista que os Czares impuseram aos processos modernizadores do Estado, sob a férrea batuta do Imperador. O modelo modernizador adotado por Pedro o Grande (1672-1725) e pela Czarina Ana Ivanovna (1693-1740) percorreu o seu caminho na formação no conhecimento da ciência aplicada, por parte da nova nobreza de funcionários públicos no Colégio dos Nobres de São Petersburgo. O cientificismo na Rússia reforçou, portanto, a velha Oprichnina (guarda pessoal e polícia estatal recrutada da pequena nobreza) criada por Ivã IV o Terrível para acabar com os boyardos (aristocracia latifundiária). O Estado mais forte do que a sociedade seria a resultante de todo esse processo.

Não há dúvida de que a modernização russa, após a queda do Muro de Berlim e a dissolução do Império Soviético, voltou ao caminho da subserviência incondicional ao novo Czar: Putin. Modernização em termos: tudo submetido ao poder total do Kremlin. Uma modernização, como diria Wittfogel, em função da preservação de um Estado mais forte do que a sociedade. O modelo que terminou prevalecendo foi o da tentativa de ressurreição do antigo Império Soviético, voltando a anexar, na marra, os territórios das Repúblicas que foram se separando de Moscou após 1991.

A invasão da Ucrânia forma parte dessa estratégia, assim como foi a anexação da Criméia em 2014, e a dominação total de Moscou sobre a Geórgia, a Chechênia e a Bielorrússia. Putin é, hoje, um soberano patrimonialista que concentrou todo o poder político, além de ter se enriquecido imensamente (metade das riquezas amassadas pela atual oligarquia pertence, por direito, ao novo Czar).

Do ponto de vista das narrativas intelectuais que apoiam a política de Putin, podemos mencionar a Aleksander Dugin (1962-), tradicionalista russo que recebeu influência do filósofo e esoterista francês René Guénon (1886-1951) e do aristocrata e simpatizante do fascismo, o italiano Julius Evola (1898-1974). Dugin, professor de ciência política da Universidade Estatal de Moscou, considera inevitável a guerra da Rússia contra a Ucrânia, na tentativa de Putin de reconstruir o Império Russo, que se deveria converter em um grande Império Euroasiático, destinado a dominar a corrupta Sociedade Ocidental.

Acerca dessa proposta, escreve o pesquisador americano Benjamin Teitelbaum: “Os esforços de Dugin tinham envolvido a arrecadação direta de fundos destinados às milícias separatistas do Leste da Ucrânia, bem como à propaganda para gerar simpatia pública. Enquanto investia nessa última estratégia durante uma entrevista à mídia pró-separatista, ele convocara os ouvintes a ‘matar, matar, matar’ aqueles que fossem leais a Kiev no Leste da Ucrânia – a ‘Nova Rússia’, como chamara. O resultado fora um protesto massivo contra a sua empregadora, a Universidade Estatal de Moscou, e Dugin perdera o cargo de professor. Seguiu-se a isso uma postagem bizarra no seu blog, no qual culpara o ‘Putin lunar’ – uma reverência ao tradicionalismo evoliano, o que os observadores não perceberam, ou seja, ao alter ego liberal e supostamente mais fraco de Putin - em oposição ao ‘Putin Solar’, que certamente teria salvado o emprego de Dugin. Mas a demissão não sinalizou que Dugin havia sido completamente abandonado pelo Kremlin, pois, nos bastidores, ele ainda parecia estar servindo como um embaixador de Putin no cenário mundial” [Benjamin R. Teitelbaum, Guerra pela eternidade – O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Tradução de Cynthia Costa. Campinas: Editora Unicamp, 2020, p. 143].

Seja como for, o certo é que a aventura de Putin na Ucrânia está saindo cara para a Rússia, causa incômodo na China que não pode brigar de vez com as empresas capitalistas e dá ensejo a que pensemos estarmos já assistindo à primeira guerra mundial da globalização, transmitida em vivo e em direto via Smartfones, com toda a saga de crueldades e de crimes contra os direitos humanos e com as turbulências que já desabaram sobre todos nós com o preço dos combustíveis indo para a estratosfera e a insegurança da economia mundial em franca aceleração. Quando terminará o atual conflito? Ninguém sabe. As negociações entre russos e ucranianos parecem por vezes terem entrado num pântano sem fim.

Concluamos, para terminar:

A - A fortaleza de que se revestiu Putin, fazendo ancorar todo o seu projeto de poder na longa história secular do despotismo oriental russo de origem mongólica é, hoje, paradoxalmente, o ponto fundamental da sua fraqueza.

O modelo de poder total legado por Ivã o Terrível, não garante a estabilidade num mundo intrincadamente ligado às redes globais da comunicação, da alta tecnologia informática e das trocas econômicas que se realizam, aos milhares, em questão de segundos, pelo mundo afora. A tecnologia militar está, de outro lado, estreitamente ligada a esse pano de fundo. Não dá mais para agir como se um país pudesse se colocar, sozinho, com um projeto de poder total que ignora o resto. Um mandatário inquestionável, como Putin, que é temido pelos seus assessores que lhe ocultam a realidade para não caírem em desgraça, é, hoje, ponto de fraqueza e não de estabilidade. Convenhamos que as derrotas sofridas pelas forças russas ao longo do primeiro mês de confronto dependem, muitas delas, da parcialidade dos informes da inteligência russa que tem agido para agradar o déspota, não para alertá-lo sobre o que se passa, realmente, no campo de batalha.

B – A aventura bélica de Putin não interessa diretamente à China.

Fernão Lara Mesquita [“A guerra de Putin vista da China”, Vespeiro, 13/04/2022] lembrava que, para a China, com a sua economia globalizada, a aventura de Putin na Ucrânia não interessa. Mesquita recordava que para o embaixador chinês nos Estados Unidos, Qin Gang, segundo artigo publicado no Washington Post, “a posição da China sobre a Ucrânia é objetiva e imparcial, baseada nas regras da ONU de respeito à integridade territorial e à soberania de todos os países, Ucrânia inclusive, que devem ser estritamente observadas”.

O peso geopolítico da Ucrânia é importante. Não só pelo número de habitantes do país (44 milhões), mas também em decorrência da sua extensão territorial. O jornalista Alexis Feertchak, do diário Le Figaro, de Paris, lembrava que o país, com 603.548 km.² é, após a Rússia, o maior Estado da Europa, mais extenso, inclusive, do que a França (543.940 km²).

De outro lado, a realidade das condições econômicas da Rússia não é favorável à sua aventura belicista. O jornalista Lara Mesquita cita artigo assinado por Yu Jianrong, intelectual popular nas redes sociais chinesas, segundo o qual “No tempo da Guerra Fria o PIB da União Soviética era de pelo menos 50% do dos Estados Unidos. Hoje, com um PIB de 1,7 trilhão de dólares, a Rússia é menor que a economia da província de Guangdong. O orçamento da Federação Russa de 330 bilhões de dólares para 2021 é metade do orçamento de 705 bilhões do Pentágono. Para manter a fidelidade da Bielorrússia, com menos de 10 milhões de habitantes, Putin injeta de 10 a 20 bilhões de dólares por ano naquele país. Não tem condições de fazer o mesmo com a Ucrânia e seus 44 milhões de habitantes (...) A Rússia não pode vencer essa guerra. Ela custa 8 bilhões de dólares por mês. Os ucranianos destroem todos os dias tanques e aviões de centenas de milhões de dólares com mísseis individuais que custam apenas algumas dezenas de milhares fornecidos pelo resto do mundo e pela Nato. Não existe mais uma União Soviética nem Ocidente contra o Leste, só existe um jogo econômico global complexo. O tempo não é aliado da Rússia. Esse é o poder da globalização e a Rússia não tem a opção de resistir-lhe” [in: Fernão Lara Mesquita, “A guerra de Putin vista da China”, art. cit.].

Talvez o fator que terminará se impondo – caso não haja uma tresloucada e suicida aventura nuclear no cardápio das retaliações de Putin contra a OTAN – será a variável econômica. O Prêmio Nobel de Economia de 2008, Paul Krugman escreveu recentemente sobre os motivos pelos que a China não se arriscaria demais salvando a economia russa. O motivo principal seria a integração da China com a economia global. A respeito, frisa Krugman: “Mesmo que a China não tenha aderido às sanções, o país é profundamente integrado à economia mundial. Isso significa que bancos e outras empresas chinesas, da mesma maneira que as corporações ocidentais, poderão adotar auto sanções - ou seja, ficarão relutantes em fazer negócios com a Rússia por medo de reações negativas de consumidores e agências reguladoras nos mercados mais importantes” [in: Renato Vasconcelos, “Xi quer laços com Rússia, mas sem afetar a China”, O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 2022, pp. A22-A23].

C – O plano A de Putin, de invadir Kiev, não deu certo. No entanto, não pode dar certo o seu Plano B, de ocupar o sul da Ucrânia, deixando-a sem uma saída para o mar.

Este alerta foi feito pelo Prêmio Nobel de Literatura Fareed Zakaria. A respeito das providências que os países ocidentais, sob a liderança norte-americana, deveriam tomar face à agressão da Rússia contra a Ucrânia, o mencionado autor cita o pedido feito pelo almirante aposentado James Stavridis, ex-comandante supremo aliado da OTAN: “Deem à Ucrânia aviões de combate e sistemas de defesa aérea, ajudem o país com ataques cibernéticos e deem mísseis antinavio para afundar embarcações russas no Mar Negro”.

A respeito da difícil situação que os ucranianos enfrentam no combate contra a Rússia no Mar Negro, frisa Zakaria: “Os EUA destinaram cerca de US$ 16 bilhões em ajuda à Ucrânia desde a invasão. Enquanto isso, espera-se que o mundo pague US$ 320 bilhões à Rússia este ano por sua energia. As sanções econômicas não obrigarão Putin a dar fim à guerra enquanto essa brecha escancarada existir. A única pressão que forçará a Rússia a negociar é a derrota militar – no sul. O plano A de Putin [de ocupar o norte da Ucrânia, a partir de Kiev] falhou, mas não podemos deixar seu plano B ter sucesso” [Zakaria. “O Plano A de Putin na Ucrânia fracassou”. In: O Estado de S. Paulo, 16/04/2022, p. A17]. Manterão os países livres do Ocidente a sua pressão sobre a Rússia? Esperar para ver.

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