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A MORTE DE SÓCRATES SEGUNDO VARGAS LLOSA

A MORTE DE SÓCRATES SEGUNDO VARGAS LLOSA

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA, O ESCRITOR PERUANO MARIO VARGAS LLOSA (1936-)

Gosto da narrativa de Mario Vargas Llosa (1936-). Sem chegar ao estilo oceânico de García Márquez (1927-2014), a prosa do Nobel peruano prende pela dinâmica representação da vida. Discordo, no entanto, da atitude politicamente correta do escritor em face de questões internacionais como, por exemplo, a liberação no uso de drogas, que é, a meu entender, o caminho mais fácil para não resolver a questão. Vargas Llosa termina fazendo eco aos que buscam a solução desse “problema menor” das sociedades contemporâneas, mediante o agravamento das coisas pela via do “liberou geral”. Não: a droga mata, a cocaína é uma desgraça, uma desgraça ainda pior é o crack e um caminho rápido para a narco dependência é a irresponsável liberação da maconha. Estou com o Doutor Laranjeira: a maconha é nociva para o cérebro, embora alguns medicamentos com canabidol sejam necessários para controle da dor, por exemplo. Mas como medicamentos de uso controlado, não como cigarros para lazer das novas gerações e dos portadores de depressão.

Vargas Llosa também rendeu um tributo ao “politicamente correto” ao não ter lido a Vida de Sócrates de Antonio Tovar (1911-1985), publicada por Alianza Editorial nos anos 80 do século passado. A respeito, frisa o escritor peruano: “Um dos problemas da nossa época é que há muitos livros para ler e pouco tempo para fazê-lo. Arrasto desde os anos 80 do século passado a Vida de Sócrates, de Antonio Tovar, da Alianza Editorial, que comprei porque me disseram que era um magnífico livro. Logo me advertiram que o seu autor era um ‘franquista’ e, até esta semana, não o li” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, tradução de Guilherme Ruso, in: O Estado de S. Paulo, 20/02/2022, p. A15].

Antonio Tovar, doutor em Direito pela Universidade Central de Madri e em Filologia Clássica pela Universidade de Berlim, diga-se de passagem, teve um período da sua vida acadêmica ligado ao franquismo. Mas, já na maturidade intelectual distanciou-se da política autocrática do “Caudillo”, tendo de se exilar na Argentina, onde foi professor de Grego e Filosofia nas Universidades de Buenos Aires e Tucumán, tendo feito pesquisas valiosas sobre os mitos indígenas.

Com a honestidade intelectual que o caracteriza, Vargas Llosa emite o seguinte juízo da Vida de Sócrates de Antonio Tovar, que demorou a ler: “É uma obra prima, certamente, e, ainda que o que conta ocorreu 25 séculos atrás, contém muitos ensinamentos para este mundo que poderia despedaçar-se se a Rússia, como parece, invadir a Ucrânia e armar subitamente e sem querer a 3ª Guerra. Assim nasceram a segunda e a primeira, sem que ninguém as planejasse, e sobretudo sem que as suas consequências – os milhões de mortes – fossem previstas”.

Quanto ao infame Julgamento ao qual Sócrates foi submetido por parte do Areópago de Atenas (o Supremo Tribunal da Democracia ateniense de então), frisa Vargas Llosa: “Ninguém sabe exatamente o que aconteceu e por que Atenas, que desde os tempos de Sólon era uma democracia, levou Sócrates a esse julgamento. Foi acusado de perverter a juventude e de ofender os deuses, acusações que não se mantinham de pé porque esse filósofo ou homem santo, que andava pelas ruas descalço provocando discussões por todo lado, não prejudicava ninguém, salvo os invejosos e os ressentidos, roxos de animosidade sobre a sua popularidade e que queriam acabar com ela” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit., ibid.].

Tovar diz que Sócrates se defendeu muito mal ao longo do julgamento, com arrazoado desconexo e muitos juízes do Areópago não tiveram outra saída do que condená-lo. “Passou a impressão – frisa Vargas Llosa – que não lhe importava morrer e, até mesmo, buscava ser culpado dessa feroz e absurda acusação”. Algo semelhante, penso eu, ao que ocorreu ao Divino Salvador, Jesus da Galileia, quando, diante do Sumo Sacerdote, Caifás, que presidia o Sinédrio, ficou calado. Tanto diante do burocrata judeu, quanto em frente ao representante do Imperador de Roma, Póncio Pilatos, Jesus guardou silêncio. Só se pronunciou em último termo, quando foi pressionado por Caifás, primeiro e, depois, por Pilatos, a confirmar se, efetivamente era filho de Deus e Rei. Mas fê-lo com imensa humildade, não para se vangloriar nem para escapar ao infame julgamento que, tanto de parte do Sinédrio judaico, como do Pretório de Pilatos, o entregou aos seus algozes. Confessou que era Filho de Deus e anunciou que voltaria “sentado à direita do Pai”, num pano de fundo escatológico que remetia aos últimos tempos.

Sócrates, como Jesus, foi um mau defensor de si mesmo. A respeito do filósofo, frisa Vargas Llosa: “Tovar diz que Sócrates se defendeu muito mal no julgamento, com um discurso desconexo, e a muitos juízes que o julgaram não lhes restou mais remédio que condená-lo. Passou a impressão que não lhe importava morrer e, até mesmo, buscava ser culpado dessa feroz e absurda acusação. Platão, o responsável por sua glória póstuma, não compareceu no dia de sua defesa, pois estava enfermo, e os discípulos presentes sentiam-se confusos e decepcionados pelas coisas que Sócrates disse diante do numeroso tribunal que o julgou” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit., ibid].

Quanto à descrição da morte do herói, o relato de Vargas Llosa, sintetizando a narrativa de Tovar, é simples e emociona: “Fugir era muito fácil e custava pouco dinheiro, assim que seu discípulo Críton, que era rico, lhe fez a proposta, mas Sócrates se negou. Amava demais Atenas, havia combatido nas guerras do Peloponeso contra os jônios, defendendo-a, e logo ensinado, em suas palestras na rua, que as leis da cidade são sagradas e deveriam ser respeitadas. Por outra parte, estava convencido de que as sentenças, ainda que absurdas, deveriam ser cumpridas, pois essa era a vontade dos deuses. Bebeu a cicuta com serenidade e se submeteu às orientações do verdugo – deveria, depois de banhar-se, deitar-se e distender o estômago para que o veneno agisse mais rápido – até que a morte lhe chegou”.

“O que se sabe dele, depois daquela morte, – continúa Vargas Llosa o seu relato – é vago, especulativo e, na verdade, não se conhece exatamente o que ocorreu nessa cidade onde ele nasceu e morreu, e que, quase de imediato após a sua morte, entrou em decadência sem remédio. Tanto que os seus adversários naturais, os espartanos, conseguiram invadi-la” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit., ibid.]. Muito curioso esse apontamento histórico: a cidade que condenou o herói – Atenas, no caso – caiu em poder dos seus inimigos. No caso de Jesus, o mesmo princípio valeu. Alguns anos após a morte do Mestre, os Romanos invadiram Jerusalém e destruíram o Templo, no ano 70.

A respeito de Sócrates e da conjuntura histórica em que morreu, Vargas Llosa tece o seguinte arrazoado: “O que se sabe dele, depois daquela morte, é vago, especulativo e, na verdade, não se conhece exatamente o que ocorreu nessa cidade onde ele nasceu e morreu, e que, quase de imediato após a sua morte, entrou em decadência sem remédio. Tanto que seus adversários naturais, os espartanos, conseguiram invadi-la”.

A seguir, Vargas Llosa desenvolve um raciocínio de cunho messiânico: a morte do Mestre deu ensejo a que os seus discípulos apregoassem a boa nova de uma redenção radical do ser humano, a partir da prática da virtude à maneira socrática, não para agradar aos que mandam na cidade, mas para fazer jus à mensagem recebida dos deuses, consistente em agir com fidelidade ao “imperativo interior” da nossa própria consciência. A respeito, frisa o Nobel peruano: “Se não fosse por um filósofo, Platão, e um historiador, Xenofonte, e seus fiéis discípulos que guardaram e difundiram seus ensinamentos, as ideias de Sócrates teriam desaparecido. Ele não tinha apreço pelos livros – na verdade, os detestava, porque isolavam o indivíduo e faziam desaparecer o auditório. Por isso, preferia a palavra falada à escrita. A isso se deve, ainda que não esteja em debate que era um grande e respeitado pensador, não distinguirmos exatamente o que defendia ou atacava, e que reine sobre a sua filosofia muita confusão, pois Platão, que recolheu com cuidado seus ensinamentos, não estava de acordo com ele em muitas coisas e é possível que, inconscientemente, tenha atenuado e até mesmo adulterado sua mensagem” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit.].

A propósito, mais uma semelhança entre o “socratismo” e o “cristianismo”. A essência da pregação de Jesus foi a sua palavra viva. O Divino Mestre, segundo consta do Evangelho, só aparece escrevendo na areia ou sobre a poeira do chão, quando, por exemplo, no episódio da mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos seus acusadores [João, 7:53-8: 1-11]. A respeito, narra o Evangelista: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar a estas. Tu, o que dizes? (...). Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo sobre a terra. Como eles insistissem em lhe perguntar, incorporou-se e lhes disse: ‘Aquele que de vós esteja sem pecado, jogue-lhe a pedra primeiro’. E, se inclinando, escrevia na terra. Eles, ao escutá-lo, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos e ficou ele só e a mulher no meio. Incorporando-se, Jesus disse-lhe: Mulher, onde estão, ninguém te condenou? Disse ela: Ninguém, Senhor. Nem eu te condeno; vai-te embora e não peques mais”. Reza a tradição que Jesus escrevia em terra, nesse episódio, as safadezas dos acusadores... Somente depois da morte e da ressurreição de Jesus, os discípulos começaram a pôr por escrito a essência da sua mensagem, o que deu ensejo aos Quatro Evangelhos, às Cartas do Apóstolo Paulo e aos demais escritos neotestamentários. Socratismo e Cristianismo nasceram como palavra viva e, somente mais tarde, a mensagem básica foi colocada por escrito. Nos dois primeiros séculos da nossa era, aliás, é interessante anotar que alguns dos Santos Padres estabeleceram paralelos entre as figuras de Cristo e de Sócrates, como fez, por exemplo, São Justino (100-165).

Voltando a Sócrates, o escritor peruano destaca que o que ficou dele foi o seu exemplo. “Sua morte – frisa – é muito mais importante que sua vida como a conhecemos. Ao que parece, sua mulher, Xântipe, era para ele mais um estorvo que uma companheira; os testemunhos dos seus discípulos nos dizem que ele mal falava com ela e agia da mesma maneira com os filhos, de modo que, à companhia de sua família, preferia a de seus seguidores, que eram todos homens. Podemos tecer mais uma semelhança entre Sócrates e Jesus. Sem que o Divino Mestre menosprezasse os seus familiares, no entanto, o Evangelista registra o seguinte: “Veio sua mãe com seus irmãos e não conseguiram se aproximar d’Ele por causa da multidão e lhe comunicaram: a tua mãe e os teus irmãos estão aí fora e desejam te ver. Ele respondeu dizendo: a minha mãe e os meus irmãos são estes, os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” [Lucas 8, 19-21]. Um detalhe: na hora derradeira, quando estava agonizando, o Divino Mestre encomenda ao seu discípulo amado João, para que receba Maria em sua casa, como "mãe" [João, 19: 25-27].

A respeito de Sócrates e em relação à tradição filosófica grega, escreve Vargas Llosa: “O pouco que sabemos dele é que era um grande questionador, até mesmo um provocador, que desafiava os seus adversários para conseguir dirimir com eles as suas diferenças e transmitia os seus ensinamentos a pequenos círculos de adeptos, evitando grandes aglomerações, pelas quais tinha desapreço. Pregava o respeito e a adoração aos deuses e tratava a todo custo de conhecer a si mesmo, de maneira exaustiva e sem ocultar de ninguém seus defeitos; pelo contrário, exibindo-os. Graças a estas discussões públicas, fez-se popular, ainda que alguns atenienses o tomassem por doido. Ao mesmo tempo, tinha muitas dúvidas sobre si mesmo, uma grande desconfiança sobre o próprio talento, de modo que seus ensinamentos as renovavam e desmentiam de tempo em tempo. O fator realmente exemplar nele teve a ver mais com sua morte do que com sua vida. Esse é o maior exemplo que nos deixou” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit.].

Pouca gente conseguiu imitar o estilo socrático, notadamente nestes cinzas tempos de grandes descontentamentos e guerras aniquiladoras. A propósito escreve o Prêmio Nobel: “Quantos contemporâneos foram capazes de imitá-lo? Muito poucos. Ou tratou-se de pobres diabos, como Hitler, que se matou quando todas as portas se fecharam para ele e se apresentou um final mais grave e delongado que o suicídio. Nem sequer Stalin e outros bandidos seguiram seu exemplo. Na longa história dos militares golpistas que arruinaram o Peru e o saquearam, quase não há suicidas, e creio que se pode dizer o mesmo do restante da América Latina. Como Batista, Somoza, Perón e o restante de tiranetes se forraram bem de dólares que os estavam esperando na porta da cadeia, para assegurar-lhes uma velhice tranquila”.

O escritor peruano alarga a sua reflexão à Europa Ocidental e considera que as coisas nesse contexto não foram muito diferentes. “Os desastres de sua história são abundantes – frisa - e quase não há suicidas entre seus dirigentes. Os que tiram a própria vida costumam ser bandidos, empresários em bancarrota, pessoas desesperadas que fogem da miséria e da fome. Sócrates não tinha problemas econômicos; pelo contrário, seus discípulos arcavam com seus gastos e de sua família, ainda que ele comesse muito pouco e não bebesse quase nada. Tinha um amor desmedido por Atenas, sua cidade natal, e acreditava que ela e todas as cidades mais importantes do mundo desenvolviam paralelamente sua existência real, como um duplo ou fantasma, ainda mais importantes que elas mesmas, e a quem os cidadãos deviam lealdade” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit.].

No final do seu belo artigo, Mario Vargas Llosa, pergunta pelo exemplo que Sócrates deixaria para o mundo de hoje, especialmente aos jovens. E responde: “De que, em certos casos, a morte vale mais que a vida, sobretudo quando se trata de servir a esses deuses ocultos que dirigem a vida humana, ou de dar um exemplo de desprendimento aos viventes. E, principalmente, o da dignidade com que se conformou em respeitar leis (em) que certamente não acreditava porque o mundo, ou, pelo menos, a cidade, deveria ter uma ordem que a fizesse funcionar, uma estrutura à que os mortais deveriam obedecer, ainda que fosse contra os seus interesses pessoais, pois era a única maneira para a civilização substituir a barbárie e a humanidade ir aprendendo e superando-se a si mesma, até alcançar aquela dignidade moral que nos faria superiores. Isso certamente não é válido hoje, pois graças às suas bombas atômicas, um punhadinho de países poderia fazer desaparecer todos os mortais e acabar com o planeta que habitamos. Sócrates, quando bebeu a cicuta, não conseguiu imaginar que, um dia, o mundo seria mais frágil e vulnerável do que aquele que, 25 séculos atrás, chamavam de civilização” [Vargas Llosa, “A morte de Sócrates”, art. cit.].

Uma palavra para terminar esta breve resenha do artigo de Vargas Llosa. O pensamento socrático fecundou a filosofia ocidental com a sua meditação sobre a moral. Esta, como no cristianismo, ancora no interior do indivíduo, é fruto da sua consciência e da sua responsabilidade. Foi, certamente, Immanuel Kant (1724-1804) quem explicitou, de forma sistemática, essa saga nas suas obras dedicadas à ética e à política, notadamente A paz perpétua (1795).