
CAPA DA OBRA DE RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ INTITULADA: "CASTILHISMO - UMA FILOSOFIA DA REPÚBLICA" (1ª EDIÇÃO. PORTO ALEGRE: EST / CAXIAS DO SUL: UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL, 1980, 132 PP.
Nasci em 15 de Novembro de 1943. Quando cheguei ao Brasil, em 1973, para cursar o Mestrado em Pensamento Brasileiro oferecido pela PUC do Rio, o meu aniversário converteu-se em festa nacional. 15 de Novembro, na Colômbia, é uma data comum. Já no Brasil, como sabemos, é a data comemorativa da fundação da República.
Como escolhi para tema da minha dissertação de Mestrado o Castilhismo, sob a orientação do saudoso amigo Antônio Paim (1927-2021), passei a conhecer mais de perto as particularidades de que se revestiu a República nestas terras, particularmente no Rio Grande do Sul, que foi a semente mais radical de onde surgiu a grande árvore republicana. Assim, o Castilhismo passou a formar parte das minhas preocupações intelectuais, notadamente porque deu ensejo a um modelo heterodoxo de República cientificista, onde o fator educacional não era considerado essencial, mas apenas tributário da realidade de um Estado mais forte do que a sociedade, que enquadrava compulsoriamente os cidadãos nas suas matrizes “técnicas”.
O curioso é que, na Universidade Externado da Colômbia onde trabalhava, em Bogotá, vingaram as ideias positivistas, pois os fundadores eram seguidores das doutrinas sociológicas de Augusto Comte (1798-1857). O reitor dessa instituição, o coronel e jurista Ricardo Hinestrosa Daza (1874-1963), amigo do meu avô materno, o general Amadeo Rodríguez (1886-1959), foi responsável pelo nome com que fui batizado. A minha mãe, Victoria, tinha prometido ao velho amigo que a criança que carregava na barriga, se fosse menino, levaria o nome dele.
Tinha se enraizado, no meu país natal, (como, aliás, em outros países hispano-americanos: a Argentina, o Chile, o Peru, o Paraguai, o Uruguai e o México), a vertente do Positivismo Ilustrado. Daí por que para os fundadores do Externado da Colômbia, o estudo do Positivismo era fundamental, embora a idéia de uma Universidade positivista fosse, do ângulo da lógica, uma “contradictio in terminis”, dado o preconceito do pai do Positivismo, Augusto Comte, face à institucionalização do ensino. Este, na variante ortodoxa do comtismo, deveria ser um ato livre da sociedade. Como diziam os castilhistas da primeira geração: “ensine quem quiser, quando puder e como puder”. Distante estava Comte da tradição cartorial do Patrimonialismo Modernizador brasileiro, que já desde a instauração das primeiras entidades educacionais no Brasil da era colonial, partiu para regulamentá-las institucionalmente. A mais antiga delas, a Real Academia Militar do Rio de Janeiro, criada em 1810 pelo Conde de Linhares, dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), inspirava-se no cientificismo da era pombalina e foi a primeira sede educativa a se abrir ao estudo do positivismo, ao longo do século XIX. Até a formação de padres, no Seminário de Olinda, foi formatada na trilha do cientificismo, haja vista que daí saíram figuras que defendiam o despotismo esclarecido calcado nas matemáticas, como por exemplo frei Caneca (1779-1825), que pregava, na linha da ciência aplicada de Pombal, uma estranha “geometria política”. “Perde-se o Brasil”, proclamava do alto do púlpito o padre carmelita, “por falta de geometria”.
A ideia da representatividade pode ser considerada como a mais característica do liberalismo político, sintetizado inicialmente por John Locke (1632-1704) no seu Segundo Tratado sobre o Governo. Mas tal ideia estava ausente do Positivismo, que considerava o regime parlamentar um regime “para lamentar”. A fonte que legitimava o poder não era o voto que refletisse os interesses materiais dos cidadãos, mas o saber. Os positivistas tentaram, no Rio Grande do Sul, institucionalizar o comtismo, ensejando a “Ditadura Científica” do Executivo sobre os outros poderes e a sociedade. Getúlio Vargas (1883-1954) levou o modelo castilhista para o plano nacional, com a pregação de que a República deveria ser caracterizada como “Reino da Virtude”, que propendia pelo “equacionamento técnico dos problemas”. O principal problema, para os liberais, era como garantir eleições limpas. Getúlio, no poder, deu uma resposta a esse problema, promulgando o Código Eleitoral de 1932, que instaurava a Justiça Eleitoral, comprometida com a “realização técnica das eleições”, salvaguardando as prioridades fixadas pelo Presidente da República que buscava, sobretudo, manter a “continuidade administrativa”. Getúlio que, como Intendente da Polícia no Rio Grande do Sul, tinha organizado tecnicamente a máquina eleitoral para garantir essa continuidade, fez o mesmo no plano nacional e se aboletou definitivamente no poder, de onde “só sairia morto”, no dizer de um dos seus auxiliares castilhistas, o gaúcho Osvaldo Aranha (1894-1960).
Arthur Ferreira Filho (1899-1996), na sua História Geral do Rio Grande do Sul [Porto Alegre: Globo, 1958: p. 149] sintetizou admiravelmente a concepção castilhista da República como “regime da virtude”. (Para Castilhos) “a República era o reino da virtude. Somente os puros, os desambiciosos, os impregnados de espírito público deveriam exercer funções de governo. No seu conceito, a política jamais poderia constituir uma profissão ou um meio de vida, mas um meio de prestar serviços à coletividade, mesmo com prejuízo dos interesses individuais. Aquele que se servisse da política para seu bem-estar pessoal, ou para aumentar a sua fortuna, seria desde logo indigno de exercê-la. Em igual culpa, no conceito castilhista, incorreria o político que usasse das posições como se usasse de um bem de família. (...). Como governante, Júlio de Castilhos (1860-1903) imprimiu na administração rio-grandense um traço tão fundo de austeridade que, apesar de tudo, ainda não desapareceu”.
Com o correr das décadas, a austeridade dos líderes autoritários foi sendo esquecida e ficou apenas, como herança, a ditadura “científica”. Nos dias que correm, a República brasileira vê-se assombrada por dois demônios: o autoritarismo ancestral que frequenta hoje os gabinetes dos Ministros do STF e do TSE, aliado ao pouco apreço pela saúde das contas públicas. A mais clara manifestação dessa perda do rigor de antanho foi a libertação – por esses altos Tribunais - do ex-presidente Lula, que tinha sido acusado e condenado justamente por corrupção, tendo sido liberado da cadeia para que pudesse participar da corrida presidencial.
A nossa República, do “reino da virtude” conservou o viés autoritário que Castilhos lhe imprimiu, mas perdeu a sensibilidade ética em face do dinheiro público. Neste “presidencialismo de coalizão” que ainda vivemos, o fiel da balança passou a ser o denominado “Centrão”, que busca o dinheiro público como as birutinhas de aço vão atrás do ímã que as atrai. O herói passou a ser o novo Macunaíma dos trópicos, Lula (1945-), “o herói sem nenhum caráter”, parafraseando e tornando realidade o subtítulo da genial obra de Mário de Andrade (1893-1945), na sua ficção de 1928.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter. 1ª edição. São Paulo: Cupolo, 1928.
FERREIRA FILHO, Arthur. História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1958.
LOCKE, John. Two Treatises of Government. (Edição crítica, Introdução e Notas de Peter Laslett). Londres / Chicago / New York: Mentor Books, 1965.
PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Castilhismo: uma filosofia da República. 1ª edição. Porto Alegre: EST / Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980.