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ABORTO CONSTITUCIONAL NA FRANÇA

ABORTO CONSTITUCIONAL NA FRANÇA

PARIS - OS MEMBROS DA CONVENÇÃO NACIONAL (1789) ENTREGAM TODOS OS PODERES AOS MEMBROS DO DIRETÓRIO QUE, INSPIRADO EM ROUSSEAU, PASSOU A LEGISLAR COM UM PODER TIRÂNICO E ABSOLUTO. MONUMENTO QUE ORNA A GALERIA PRINCIPAL DO PANTEÃO NACIONAL, EM PARIS. (FOTO: R. VÉLEZ, JAN 2024 - ÁLBUM DE FAMÍLIA).

O comentarista Paulo Polzonoff, de cujas crônicas gosto, na Gazeta do Povo, de Curitiba, no seu comentário de hoje escreve, referindo-se à nova decisão do Legislativo francês que torna o aborto um direito garantido pela Constituição desse país: “Sai Rousseau, entra Maomé”. Não concordo com Paulo, primeiro, porque não era necessário introduzir Maomé na discussão, lhe conferindo um papel de legislador que certamente não é dele. Segundo, porque com a decisão tresloucada do Legislativo francês, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) não sai para que em seu lugar entre o pai do Islamismo, Maomé. E Rousseau não sai, porque sempre esteve dentro da mentalidade cartorial da sociedade francesa, por ter sido ele o inspirador do constitucionalismo francês, inclusive daquele que inspirou a 5ª República. Era essa justamente a crítica que um homem sensato como Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) fazia à França: deu importância demais ao filósofo Rousseau e ele se tornou o pai das desgraças francesas, desde a guilhotina até o liberou geral em face do aborto.

O grosseiro erro de Rousseau em matéria de direito constitucional foi ter pensado a soberania do povo como algo ilimitado, quando deveria ser algo limitado. Soberania ilimitada converte o governo em um poder incontrolável sobre a vida dos cidadãos (como aliás, está convertendo o poder da nossa Suprema Corte em algo de tirânico e inaceitável). A soberania não se pode estender sobre todos os aspectos da vida do cidadão, sem torná-lo um servo dos que mandam. A soberania, pensava Benjamin Constant, deveria ser algo essencialmente limitado aos aspectos passíveis de legislação do Estado sobre o indivíduo, que evidentemente não são todos (as questões de foro íntimo, a vida do espírito, a religião, o pensamento, a consciência, a vida privada, são intocáveis pela legislação).

Tudo no Brasil se tornou matéria de legislação estatal e de regulamentação pelo Estado cartorial. Essa é a crise da nossa cultura patrimonialista. Já o professor Miguel Reale (1910-2006) alertava para isso há cinquenta anos atrás. Quando tudo é matéria de direito administrativo, sai pela porta dos fundos o direito civil.

É lamentável que a sociedade francesa tenha atribuído tanto poder ao Estado. E é lamentável também, que na esteira desse tresloucado estatismo estejamos a sofrer, também, com as providências cartoriais dos burocratas sobre nós, em aspectos em que não deveriam entrar, a começar pela liberdade de pensamento e expressão.