Voltar

ACERCA DO LIVRO "VACA PRETA EM NOITE ESCURA" DE ELIZANDRO PELLIN

ACERCA DO LIVRO

ELIZANDRO PELLIN - VACA PRETA EM NOITE ESCURA (PREFÁCIO DE CLÁUDIA VANESSA BERGAMINI. LONDRINA: EDITORA THOTH, 2021 91 PP.)

“A Literatura – escreveu o padre e professor de Letras da Universidade de Lisboa, Fernando Cristóvão (1929-) – é a antropologia das antropologias”. Isso porque ela espelha o ser humano em toda a sua complexidade, do racional, do instintivo, do material e do espiritual. A Literatura não leva em consideração, necessariamente, o bom senso nem as preocupações éticas. Flagra, no sentir de Nelson Rodrigues (1912-1980), “o homem como ele é”, aquela estranha mistura de espiritualidade, generosidade, cotidianidade, egoísmo, baixaria, elevação quixotesca e imediatismo sanchopanzesco.

Sempre considerei que, para avaliar a ordem axiológica que anima a cultura em qualquer período da história humana, a leitura dos mitos ancestrais e dos clássicos literários é fundamental. Sem ela, teríamos uma carta de apresentação do bicho homem talvez mais aceitável do ponto de vista do políticamente correto, mas necessariamente incompleta, visto que faltaria a componente do contraste que é essencial à humanidade, entre o elevado e o mesquinho, longe da complexidade antropológica que se revela na paradoxal coexistência entre razão e fábula.

A nossa espécie Sapiens Sapiens, que se gaba de ter sobrevivido graças à inteligência e à capacidade de adaptação a novas circunstâncias, superando os primos ancestrais distantes como os Homens de Neandertal, tem uma longa memória mitológica do seu passado de aproximadamente 100 mil anos, anterior em muitos séculos à descoberta do pensamento lógico discursivo pelos gregos do século VI antes de Cristo, os chamados “Pré-Socráticos”. Pressupondo que essa seja a idade do Sapiens Sapiens, o pensamento lógico discursivo só apareceu nos últimos 2.500 anos, sendo que nos 97.500 anos anteriores, os homens mantiveram vivas as suas concepções do Cosmo e sobreviveram, graças a representações de si mesmos e do Mundo geradas pela imaginação, em construções pre-racionais tecidas de figuras plásticas, num pano de fundo de relatos primordiais e de pinturas rupestres que hoje chamamos de Mitos. Eles foram transmitidos de geração em geração pela via oral ou pelas imagens desenhadas, datando de 1.400 anos antes da nossa era os registros escritos dessa memória primordial. Tais registros, materializados nos caracteres cuneiformes que foram descobertos na Mesopotâmia, constituíram a remota origem da nossa Civilização, alicerçada numa linguagem escrita com traços imitando cunhas desenhadas com cálamos em tabelas de barro cozido, que reproduziam os sons da linguagem falada. A descoberta pelos britânicos, em 1925, das Bibliotecas do Crescente Fértil, notadamente a de Nínive, revelou esse processo. Uma palavra, dizem os estudiosos, definia a condição humana: “Amargi”, que significava “Liberdade” e que era entendida como “volta ao seio materno”, datando daí esse mito da Idade de Ouro Primordial, na qual os seres humanos seríamos felizes sem sabermos.

Esse é o grande valor mítico que encontro no livro do meu amigo Elizandro Pellin, intitulado: Vaca preta em noite escura [Prefácio de Claudia Vanessa Bergamini; ilustrações de Sassá. Londrina: Editora Thoth Cult, 2021, 91 páginas]. O meu amigo gaúcho dá vida a esse rico universo de múltiplas culturas que se cruzam na região sul do Brasil, constituídas pelos ancestros italianos, castelhanos, portugueses, alemães, poloneses, indígenas e negros que enriqueceram o convívio humano nessas sociedades, presididas pelo Estado patrimonial luso-brasileiro, erguido como uma “grande família”, na qual o “patotismo” ou a concepção do poder como uma mistura de público e privado constitui uma marca essencial. Deixei isto registrado na minha obra intitulada: A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado gerido como bem familiar [prefácio de Arno Wehling. Rio de Janeiro: Documenta Histórica / Instituto Liberal, 2008, 263 pp].

O Rio Grande do Sul, a antiga Província de São Pedro do Rio Grande organizou-se, ao longo dos séculos XVI a XIX, como um vasto tecido de grupos sociais de diferente origem, que constituíram a fronteira viva da colônia do Reino Português na América do Sul e que, no início do século XIX, se organizou como Império independente da coroa, dando ensejo, no final do século XIX, com a Proclamação da República, ao Estado do Rio Grande do Sul. A sociedade gaúcha tornou-se, ao longo do século XIX, fronteira viva do Império Brasileiro, tendo defendido com afinco os limites da jovem nação perante as tentativas de avanço do antigo e desconjuntado Império espanhol, nas múltiplas Repúblicas que surgiram da implosão da unidade imperial hispânica, sendo a Argentina, o Paraguai e o Uruguai as repúblicas sulinas que se confrontaram com o Brasil imperial. O Rio Grande do Sul constituiu uma fronteira viva, na qual se lutou centímetro a centímetro pela independência e pela integridade territorial gaúcha, em face da gula expansionista dos vizinhos castelhanos. A nossa literatura sulina dá conta dessa heroica gesta patriótica, em obras que se tornaram clássicos como O Tempo e o Vento do grande Érico Veríssimo (1905-1975).

Por força dessa luta histórica para manter a integridade territorial, os gaúchos ostentaram, desde cedo, um forte caráter patriótico, marca registrada do espírito gaúcho que valoriza sobremaneira as tradições ancestrais. Do ângulo sociológico, a obra de Oliveira Vianna intitulada: O campeador rio-grandense [1ª edição de 1952; 2ª edição de 1974; 3ª edição de 1987] reconstituiu essa magnífica saga que começa com os bandeirantes vicentistas, os quais avançaram para o Sul ao longo do século XVIII, na bacia do Rio da Prata e, graças à formação de currais de gado e de cavalos, foram ocupando a antiga Província de São Pedro, alargando os limites do Reino de Portugal e do Império Brasileiro.

Para a minha dissertação de Mestrado em Pensamento Brasileiro, que cursei na PUC do Rio de Janeiro entre 1973 e 1974, optei, por sugestão do meu orientador, o saudoso professor Antônio Paim (1927-2021), por estudar a vida e a obra de Júlio Prates de Castilhos (1860-1903). Escrevi a dissertação que levava como título: A filosofia política de inspiração positivista no Rio Grande do Sul, que se transformou na obra intitulada: Castilhismo: uma filosofia da República, hoje na terceira edição [2010] pela Editora do Senado Federal. Nessa obra, tive oportunidade de aprofundar na literatura popular gaúcha, que dá conta das críticas levantadas contra a longa ditadura castilhista. A principal manifestação literária dessa crítica foi o poemeto campestre intitulado: Antônio Chimango, escrito em 1915 pelo médico e senador gaúcho Ramiro Fortes de Barcellos (1851-1916), que começa assim: “Ao Rio Grande, Oferta / Velho gaúcho – insaciável / De fazer aos mandões guerra, / Nestas páginas encerra / Por um pendor invencível / Seu amor – incorrigível - / às tradições desta terra”. O poemeto campestre de Ramiro Barcellos constituiu uma espécie de bíblia da literatura popular dos pagos gaúchos, algo semelhante ao que, no contexto da cultura platina, foi El Gaucho Martín Fierro do escritor argentino José Hernández (1834-1886).

Apenas para destacar o caráter de maquiavelismo gaúcho do Antônio Chimango, cito o conselho que o velho pardo Aureliano dava ao Chimango, o ditador Borges de Medeiros (1863-1961): “Quando um erro cometeres / (O que bem se pode dar) / Não deves ignorar / como se sai da rascada: / A culpa é da peonada / O patrão não pode errar!”

Sem mais delongas, passarei a comentar a obra de Elizandro Pellin. Dez contos a integram: 1 – A morte de Laureano Pontes. 2 – Vaca preta em noite escura. 3 – Travessia na enchente. 4 - O senhor do galo prateado. 5 - Experiências circulares. 6 – Furto em libras. 7 – Benzeduras e simpatias. 8 – Tocaia no Rio Central. 9 – O talismã do lenhador Doze Dias. 10 – Presente de aniversário.

Na minha abordagem da obra de Elizandro, me aproximarei dela em dois movimentos: um de análise, outro de síntese. No primeiro, destacarei o itens conceituais que saltaram à minha vista. No segundo, centrarei a atenção no ponto que unifica a narrativa do autor: a sua conversa de gaúcho, para ser compreendida nesse bate-papo despretensioso que é, no Rio Grande, a “roda do chimarrão”, à qual Elizandro sempre convida com essa sua altivez castelhana e italiana de ginete que acaba de descer do cavalo e que inicia um diálogo olho no olho, e com aquela abertura para cálidas trocas de vivências ao ensejo das surpresas da vida. Tudo no bate-papo despretensioso na roda de chimarrão ou no descampado palanque da rua, no encontro fugaz com os amigos.

I – ANÁLISE.

Desenvolverei aqui cinco itens: 1 – Preservação e destruição da natureza. 2 – Estereótipos comportamentais. 3 – Namoros, facadas, enxadadas e morte dançante. 4 – Eflúvios infernais e futuro incerto. 5 – “Vaca preta em noite escura”, comprar e vender por divertimento e o lado lúdico da economia.

1 – Preservação e destruição da natureza.

No conto “Benzeduras e simpatias” encontramos uma referência ao sentimento de preservação da natureza, quando o menino Tato diz para o pai, Jango Briquero, ao descobrir um vulto escuro que se debate no riacho que estão atravessando: “Pai!! Óia lá um peixão!”. O pai, cuidadoso, responde: “É uma traíra, meu fio. Tá choca, ela tá cuidando dos peixinho em roda dela. Veja. Assim é fácil de matar com uma fisga do facão, mas seria covardia. Ela, pra defende os filhote, não sai do lugar e avança em quem chega perto. Tem que respeitá i dexá se criá” [p. 59].

Já em “O talismã do lenhador Doze Dias” o sentimento de respeito pela floresta dá lugar a uma atitude agressiva, que não respeita a preservação ambiental. De Luiz Vidal, o personagem central que encarna a personalidade do “brasileiro filho da terra”, o narrador conta o seguinte: “Era lenhador e procurava serviço. Os primeiros desbravadores, há pouco chegados do noroeste do Rio Grande do Sul, penavam na dura labuta tentando vencer a mata virgem – a machado, foice e fogo -, abrindo pequenas clareiras para roças e criação de animais. Luiz Vidal não tardou em ajustar empreitadas. A respeito, escreve Elizandro: “O rapaz erguia um rancho de pau a pique e, sozinho, no eito a ser posto abaixo, punha-se a golpear com singular destreza as gigantes árvores. Suas qualidades no cabo do machado logo se evidenciaram. Assolava um alqueire de mato em apenas doze dias, causando admiração entre os locais, acostumados (a) tardar ao menos quinze dias em semelhante tarefa. Esse diferencial lhe rendeu reconhecimento e o apelido de Doze Dias” [p. 75].

2 – Estereótipos comportamentais.

É rica, na narrativa de Elizandro, a caracterização dos estereótipos comportamentais dos seus personagens, os fundadores gaúchos das cidades que ocuparam a linha fronteiriça do Paraná com a Argentina e o Paraguai, ao longo do século passado. A maior parte das histórias se passa nas cidades de Pranchita e Santo Antônio do Sudoeste, no Paraná, ou nos seus arredores. Os colonos alemães são caracterizados como honestos e bons trabalhadores, mas também como “teimosos”, segundo podemos ler no conto “Presente de aniversário”, no qual o autor afirma de Tilo, um dos moradores do bairro Entre Rios, em 1986: “(...) era a encarnação do estereótipo do alemão teimoso. Muito honesto, trabalhador e bom amigo, tinha uma tendência visceral a defender com birra ferrenha seus pontos de vista, por mais equivocados que fossem” [p. 88].

Já os “brasileiros” não gozavam, inicialmente, de uma reputação muito boa perante os colonizadores gaúchos, provenientes de vários países europeus. A respeito, o autor frisa no conto “O talismã do lenhador Doze Dias” morador de um vilarejo às margens do Rio Santo Antônio: “As terras do local não possuíam títulos formais de propriedade. Quem primeiro chegasse e tomasse posse, era o dono. O grosso dos posseiros era descendente de europeus, predominando poloneses. Também uma ou outra família de origem italiana. Embora todos pobres e sem instrução, lutando para sobreviver e criar numerosos filhos, traziam como arraigado, uma espécie de atávico preconceito em relação aos que chamavam de ‘brasileiros’, cujos critérios de enquadramento incluíam ter pele amorenada ou sobrenome a denunciar raízes portuguesas ou espanholas. Sob esse prisma, Luiz Vidal era ‘brasileiro’. Para ser aceito em grau superior, ao que naquele cosmo se poderia qualificar como ‘peão de acampamento catingando a fumaça’ passaria trabalho” [p. 76].

No entanto, o “brasileiro” Luiz Vidal tinha uma “bela estampa”, sendo também trabalhador e portador de indiscutível carisma e talento musical, qualidades que constituíam “fatores determinantes de aceitação no grupo, com poucas discriminações” [p. 76]. As qualidades artísticas e o carisma faziam com que esse personagem tivesse sucesso com as “polaquinhas jovens”, que ficavam assanhadas “ao vê-lo pontear a viola e cantar com desenvoltura. Punha especial emoção e entonação, quando executava sua moda preferida chamada Seresteiro da Lua, recém-lançada pela então jovem e novata dupla sertaneja Pedro Bento e Zé da Estrada” [p. 77]. Lendo a estória acerca de Luiz Vidal espontaneamente lembro a narrativa de Érico Veríssimo (1905-1975), em O tempo e o Vento, acerca de “um certo capitão Rodrigo”, bonitão, corajoso, alegre e namorador.

Não bastassem esses predicados, Doze Dias tinha também características mitológicas que lhe conferiam estranhos poderes como corpo fechado e coragem de sobra, que o levavam a pregoar: ”Nem faca e nem bala me pega!”. Afloravam esses predicados míticos quando Doze Dias se embriagava. Então, como frisa o narrador, “Bravateava, batendo forte o punho cerrado no peito. A camisa desabotoada da metade para cima, deixava à mostra no peito uma espécie de talismã, pendente num tento de couro cru já sovado, responsável, segundo dizia, por fechar seu corpo e impedir (que) armas dos inimigos o atingissem. Era um objeto de tamanho e forma da parte côncava de uma colher grande, enegrecido pelo tempo, vazado por símbolos místicos. Não raro golpeava no balcão com a guaiaca, em tom desafiador, como a medir a coragem dos presentes. Nunca ninguém se atreveu a aceitar as provocações. Não cruzava porteiras ou portões, mesmo abertos, preferindo sempre saltar a cerca, e, somente depois (de) fazer alguns gestos cerimoniosos, entremeados de resmungos e palavras ininteligíveis. Seria para impedir que seu encanto de invulnerabilidade se quebrasse. Semelhante comportamento, em meio aos simplórios e crédulos colonos, católicos fervorosos, os fazia crer que o rapaz tivesse algum pacto com forças sobrenaturais” [pp. 77-78].

O final trágico do namorador jeitoso e provocante Doze Dias, assemelha-se ao assassinato do também “brasileiro”, o índio Pedro Missioneiro, que em O tempo e o Vento teve a ousadia de namorar e engravidar a bela Ana Terra, ancestral do Capitão Rodrigo. Finais semelhantes para histórias gêmeas! Um belo leitmotiv compartilhado por dois escritores gaúchos: o grande Érico Verissimo e o meu amigo Elizandro Pellin!

Outra figura típica dos relatos de Elizandro é o herói que enfrenta, corajoso, as forças cegas da natureza. Puli Medeiros era um personagem com esse predicado, “da mesma estirpe dos famosos pistoleiros Tadeu e Titão Medeiros, temidos na fronteira sudoeste”, segundo afirma o autor no conto intitulado: “Travessia na enchente” [p. 33]. Elizandro conta que “chovia em cântaros e o Rio Santo Antônio transbordou e se estendeu longe, fora do leito, normalmente estreito, mas com partes de barrancas altas e de difícil acesso. A bodega de meus pais ficava bem próxima da confluência da sanga São José com a margem direita do rio Santo Antônio, hoje passo de São José, era separada da residência da família por um curto corredor. Então único entreposto nas cercanias do lado brasileiro, sortida de produtos básicos destinados aos moradores da selva missioneira argentina, na grande maioria brasileiros em situação irregular – não raro com contas pendentes na justiça deste lado -, além de alguns paraguaios. Argentinos propriamente ditos eram pouquíssimos” [pp. 34-35].

Em meio à chuva torrencial, Puli Medeiros, morador da Argentina e vestindo apenas um minúsculo calção chegou todo empapado à bodega dos Pellin. Contou que atravessou o caudaloso rio Santo Antônio com o nobre propósito de comprar uma garrafa de cachaça “Oncinha”, para mitigar o frio enregelante. “Os presentes se entreolharam com caras que variavam entre incrédulos, admirados e duvidosos – conta Elizandro -. Afinal, quem em sã consciência arriscaria semelhante empreitada, com altíssimo risco de ser tragado pelas revoltas águas, ou mesmo enroscar-se nos espinheiros e sucumbir, pela barata recompensa dum prosaico golito de caña?? Pois o Puli arriscou!!”. E continua o contista: “Pediu uma 'Oncinha', fazendo questão que fosse de casco escuro, pagou com dinheiro também encharcado. Com um pedaço de barbante, amarrou com força o gargalo da garrafa e arrematou com duas voltas bem apertadas ao redor da cintura. Despediu-se, pronto para retornar ao seu rancho do lado argentino” [pp. 34-35].

O nosso narrador, então criança de mais ou menos sete anos, suplicou à mãe que lhe permitisse ver o Puli atravessar a nado o rio. Elizandro escreve a respeito: “Aparentando tranquilidade, Puli se posicionou a uns cinquenta metros acima de onde pretendia ganhar a margem do lado oposto. Observou a movimentação da água, e quando julgou ser o momento ideal, lançou-se de ponta cabeça. Emergiu metros abaixo, bufando, no meio do turbilhão. Com vigorosas e hábeis braçadas, demonstrando singular agilidade, seguiu se esquivando dos obstáculos, rumando para a esquerda enquanto descia veloz ao sabor da correnteza. Alcançou a margem argentina mais ou menos no ponto que havia planejado, agarrou-se nuns galhos de Sarandi e, num último esforço, alçou pé em terra firme, exibindo orgulhosamente a garrafa intacta na cintura. Soltou um estridente ‘IIIhuuhuuuu!!!!’, acenou e desapareceu no meio do mato sombrio. Voltei para casa admirado, ansioso para relatar o fato aos meus pais” [p. 35].

Morrer na cama de velhice e de morte morrida não seria, certamente, a última imagem que o Puli viveria no final da sua história. Elizandro narrou assim o fim aventureiro e trágico do seu herói: “Infelizmente, anos depois, o jovem Puli Medeiros teve a cabeça esmigalhada e morreu instantaneamente durante o capotamento de uma caminhonete Ford Cien, na qual subira na carroceria como caroneiro. Por trágica coincidência, o acidente aconteceu justamente na ‘Ruta Costera’ argentina que margeia o rio Santo Antônio. Em memória de Puli Medeiros e tantos outros rudes e audaciosos habitantes da região fronteiriça dos tempos de minha infância, este simplório relato” [p. 35].

3 – Namoros, facadas, enxadadas e morte dançante.

“El tango – escreveu o famoso romancista argentino Ernesto Sábato (1911-2011) - es un pensamiento triste que se baila”. E do primo nortista do Tango, o célebre ”Corrido” mexicano, poder-se-ia dizer que é uma “ferida sangrante que se canta”. Em ambas as toadas há paixões, tiros, sangue, facas e morte. Pois bem: no conto de Elizandro Pellin intitulado: “A morte de Laureano Pontes”, encontramos essa mise-en-scène trágica e sanguinolenta. O pano de fundo do drama nesse fim de mundo do Paraná com a Argentina era “o som da gaita e do violão, entremeado com gargalhadas e vozerio” que “ecoava distante nas matas às margens do Rio Santo Antônio”. Os componentes trágicos da cena não eram só os tradicionais: a música, o álcool, a dança e as facas, mas receberam um reforço improvisado no item armamento: a enxada.

”À porta – narra Elizandro -, achava-se o cobrador de entradas, que também fazia as vezes de segurança, sentado num cepo, fumando grosso palheiro. Dentro, no lado oposto aos músicos equilibrados sobre uns caixotes à guisa de palco, ficava a copa, tendo por balcão uma tábua acomodada sobre tocos e dois atendentes vendendo cachaça e cerveja à temperatura ambiente. A algazarra do lado de fora foi interrompida, quando se ouviu forte tropel e surgiram dois cavaleiros, de pronto reconhecidos. Era o temido Laureano Pontes, famoso por bandido e buscador de confusão, montado num tobiano marchador bem encilhado, ladeado por seu genro, Placídio Lara, também mal falado, num fogoso rosilho escarceador” [p. 18].

A onda de temor levantada pela presença de Laureano Pontes era mais fundada no “ouvi dizer” do que especificamente em fatos comprovados. Mas com a fama de briguento e bom de pontaria, acompanhada pelo “se diz” de que viera de Santa Catarina como fugitivo da justiça e dos inimigos, a áurea de terror de Pontes era enorme. Juntava-se a essas estórias o fato de que andava sempre bem armado e bem montado, “bebendo e gabando-se pelas bodegas”. Vale aqui o velho adágio recordado por Elizandro: “Quem faz a fama deita na cama”.

O genro de Laureano, Placídio Lara, que já estava alto de álcool, ao escutar a execução do vaneirão Chico Guedes, da famosa gaiteira Jeanette “a rainha do acordeón”, escolheu uma prenda e saiu dançando apertado, “exibindo ostensivamente uma enorme faca Coqueiro atravessada na cintura”. O par dançante, evidentemente, converteu-se no centro dos olhares. “Ocorre que a parceira escolhida era casada – frisa Elizandro -. O marido, um jovem moreno, feições de bugre e bigode ralo, de nome João Maria, observava a cena incomodado e inquieto, postado em pé ao lado da copa onde seu pai Teodoro Ferreira era um dos garçons. O casal seguiu rodopiando sem parar durante três ou quatro marcas. O varão segurava a cintura da dançarina com ambas as mãos, que insistiam em escorregar para as nádegas, sem qualquer reprimenda ou demonstração de desconforto pela moça” [p. 20].

As premissas do entrevero estavam colocadas. Para piorar as coisas, terminada a dança, o dançarino paquerador deixou a parceira no seu lugar e voltou para a copa e continuou bebendo ao lado do comparsa Laurentino Pontes que bebia também, isolado e sério. Pediu uma cerveja e, com dois copos, encheu-os e colocou-se na outra ponta do balcão, dirigindo-se ao marido da moça, João Maria, dizendo-lhe em tom imperativo: “Tome um gole!”. João Maria respondeu que não queria. Como resposta, Placídio Lara lhe disse: “Quem não dança não bebe, intão paga cerveja!” João Maria respondeu, altivo: “Pagar com que!?” Placídio Lara então gritou: “- Seu carniça! Não presta pra nada e ainda é mitido a valente!”.

“Mal terminou a frase – escreve Elizandro – e João Maria investiu de faca em punho sobre o ofensor, que se esquivou com destreza manoteando sua coqueiro. Ouviram-se gritos apavorados do mulherio e a música parou de supetão. O povo estourou em disparada rumando à porta, derrubando o que havia na frente, uns sendo pisoteados, outros saltando pela janela, enquanto os rivais, em guarda, olho no olho, se movimentavam em círculo, como a estudar o adversário e traçar a melhor estratégia, como galos de rinha num início de combate. Então se entreveraram, fazendo retinir o choque das armas brancas misturado ao fragor da turba em debandada. Placídio Lara granjeou pequena vantagem sobre seu adversário, fazendo-o saltar para o terreiro acossado por saraivada de golpes que eram rebatidos já com dificuldade. Laureano Pontes surgiu logo atrás, de punhal na mão direita e rabo de tatu na esquerda, seguro pela ponta para golpear com a argola, na clara intenção de também atacar João Maria” [pp. 20-21].

O velho e franzino Teodoro Ferreira saiu então em defesa do filho, com o primeiro objeto ameaçador que encontrou: uma enxada. “Sem tempo para conjecturas ou negociações, com o filho prestes a sucumbir acossado pelos temidos desordeiros, talvez o coração de pai tendo sido a mola propulsora da coragem e determinação que se apossaram de Teodoro Ferreira. No primeiro golpe, atingiu em cheio Placídio Lara, no lado direito do pescoço, tombando-o desfalecido e já fora de combate” [p. 22].

Laureano Pontes, que tinha saído para vingar o genro, retrocedeu para se posicionar melhor, mas enroscou as esporas no chão irregular, caindo de costas. A enxadada de Teodoro abriu-lhe a cabeça, deixando-o moribundo. Teodoro Ferreira e o filho João Maria fugiram do local. O povaréu, passado o entrevero e o combate, foi aparecendo aos poucos. Placídio Lara ficou desacordado mas não morreu, tendo sido assassinado a tiros, anos depois, por um parente em Santa Catarina.

O contista termina a sua narrativa da seguinte forma: “Repetiu-se às margens do Rio Santo Antônio a universal e recorrente história de Davi e Golias, onde o suposto fraco, em improvável façanha, sobrepuja o forte” [p. 23].

4 – Eflúvios infernais e futuro incerto.

A violência entre os humanos perpassa o ambiente e se impregna nos rinhadeiros. A brutalidade institucionalizada pelos donos do poder escoa dos coliseus dos alados, de forma semelhante – a história se repete como farsa, segundo dizia Augusto Comte (1798-1857) – a como os gladiadores romanos faziam as delícias do povão e dos corruptos membros da corte imperial no Coliseu. O ar do rinhadeiro era irrespirável e estava mais para enxofre infernal do que para brisa matinal.

Elizandro descreve vivamente esse ambiente contaminado pelo ódio, pela cachaça, pela ganância e pelo suor: “O ambiente impregnado de um odor bastante característico àquelas espécies de pequenos coliseus para gladiadores alados. Resultava o eflúvio da mistura de cachaça curtida com mentruz e arruda, sangue dos galos feridos e baba dos treinadores, que enchiam a boca com a infusão para borrifa-la em cusparadas sobre o pescoço e coxas de seus combatentes – sempre engolindo a sobra -, cujas penas tosadas punham à mostra a pele de um vermelho vivo, a dar ares de guerreiros às imponentes aves” [p. 37].

Não era ambiente para crianças. Mas, como os tempos eram outros, havia um grupo nutrido de pirralhos entre os quais sobressaía Gringuinho, um menino franzino que, aos seus dez anos de idade, sabia tudo acerca das rinhas. Assistia a elas por pura diversão, não por ressentimento, pois era uma criança normal com uma família que, embora pobre, era estruturada e lhe permitia gozar dos cuidados dos pais e da convivência com irmãos e parentes. Ao ensejo das rinhas, Gringuinho ganhava uns trocados como engraxate e até recebia sorvetes de presente das prostitutas, que rondavam a festa dos alados briguentos em busca de fregueses. Os torneios não eram clandestinos e movimentavam o comércio local de hotéis e restaurantes, sendo frequentados até por policiais fardados.

No evento relatado por Elizandro, “reuniram-se desde os mais simplórios entusiastas, até a nata dos galistas da região sul” [p. 39]. Um grupo vindo de Santa Catarina sobressaía, integrado por três sujeitos de boa pinta, bem vestidos e com aparência de ricos. “Um deles, com cara de poucos amigos, carregava a tiracolo uma pequena bolsa marrom, abarrotada de dinheiro vivo para as apostas, que fazia questão de ostentar. Os formidáveis galos do trio, à medida que se apresentaram, foram vencendo com facilidade, alçando seus donos ao posto de celebridades do torneio” [p. 39].

A festa dos gladiadores alados transcorria de forma previsível, com o trio de apostadores catarinenses embolsando todas as apostas. “Lá pelas tantas – conta o narrador – formou-se parelha, tendo por contendores um dos galos dos catarinas, de plumagem osca, e um prateado, pertencente a um senhorzinho gordo, grisalho, de humilde aparência, há horas sentado desapercebido à beira do tambor. Bebia quieto sem que lhe dessem maior atenção. Causava impressão de não atinar com o que estava fazendo” [p. 39].

Gringuinho, contrariando as lógicas expectativas do triunfo do galo osco dos catarinas, decidiu, por pura compaixão, torcer pelo galo prateado do senhorzinho, que já apanhava feio do seu contendor, até o ponto de a espora afiada deste ter fisgado o olho esquerdo do prateado. “O alarido da torcida rompeu forte. Os donos do osco levantaram-se quase ao mesmo tempo, como que impulsionados por molas, vibrando. Um deles, de vasto bigodão negro, em altos brados, desafiou: - Dez mil que ganha o osco!! Não parecia ser um bom momento para alguém topar a aposta. Da plateia ninguém se manifestou” [p. 40].

Surpreendendo a plateia, o senhorzinho do galo prata topou a parada: “-É comigo! Tá jogado! Irradiaram novos cochichos, sempre condenando a aparente loucura da aposta”. O catarina da bolsa com notas à mostra lançou novo desafio dobrando o prêmio. O dono do galo prata, fixa a mirada na rinha, topou. “O imponderável, esse intrometido – frisa Elizandro -, vez ou outra se veste de gala para cintilar a completa imprevisibilidade dos fatos da vida. Pois nesse dia escolheu uma briga de galos. O valente prateado, torto e apanhando, numa obstinada resiliência abaixo do tempo feio, não dava sinais de se dar por vencido, frenteando seu duro oponente. E foi num contragolpe que suas esporas subiram com endereço certo, atingindo em cheio a raiz do bico do adversário, que no estouro seco da pancada soltou um curto e tônico cucurico de dor, acusando o golpe. A arquibancada quase foi abaixo. O bico quebrado do galo osco ficou à mostra, brotando abundante um veio de sangue a gotejar copioso e insistente. (...). Os expectadores começavam a se impacientar com a cena, num crescente burburinho de comentários. -Já ganhou o pratiado! Não deixem judiar mais do osco! Rompeu uma voz da assistência. Foi quando o juiz da disputa interrompeu a rinha e, diante do óbvio, declarou vencedor o galo prateado” [pp. 42-43].

Gringuinho ficou feliz e muito aliviado diante das surpresas da jornada. O nosso narrador termina a história de forma alegre e tirando uma lição filosófica: “Na sequência das surpresas do dia, o ganhador anunciou em voz alta que daria mil cruzeiros para cada criança presente. Como havia recebido apenas muitas cédulas de cinco mil cruzeiros – daquelas que tinham a efígie do ex-presidente Castelo Branco – indicou como assistente um rapaz que estivera ao seu lado durante a rinha, entregando-lhe um maço para ser distribuído, uma nota para cada grupo de cinco meninos. (...). Gringuinho ficou sem saber o nome dos catarinenses e do senhor do galo prateado e nunca mais os viu. Restou daquela tarde o aprendizado de que as aparências não são confiáveis e o futuro é incerto” [p. 43].

5 – “Vaca preta em noite escura”, comprar e vender por divertimento e o lado lúdico da economia.

A Economia, de acordo com as suas raízes gregas oikía (=casa) e nómos (=lei) constitui “A Lei da Casa”, que se deve entender como “não gastar mais do que se tem”. Ora, como quem cuida das contas domésticas é, geralmente, a mulher, a “economia” nos gastos domésticos é, antes de mais nada, uma preocupação feminina. A mulher enquadra, no lar, o marido e os filhos para que economizem e não gastem demais. Gastos superlativos correm por conta das aventuras de pai e filhos. Claro que há mulheres gastadoras. Mas a exceção confirma a regra.

Os exemplos históricos das gastadoras são muitos. O Imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821) se queixava da gastança da Imperatriz Josefina (1763-1814) com roupas, perfumes e joias. Mas, em compensação, a sogra de Josefina, Maria Letícia Bonaparte (1750-1836) não se cansava de imprecar contra filhos, filhas e noras por conta da irresponsabilidade com as contas do lar. Dizia: “vocês vão terminar na miséria, de nada tendo adiantado os altos cargos ocupados em vida à sombra do Imperador!” Ainda na corte de Paris, Letícia procurava poupar gastos exagerados com comida, bebidas e roupas. Hoje seria uma aliada incondicional do TCU.

A visão doméstica da Economia, no entanto, não prevaleceu no mundo do pensamento econômico. O economista e filósofo holandês Bernard de Mandeville (1670-1733), na sua obra: Vicios privados, virtudes públicas (1714), considerava que se todos fossem sóbrios feito monges, a economia definharia e todo mundo ficaria pobre. Os vícios de alguns (vaidade, poder, luxo, gastança) são molas para a economia a qual, com o seu dinamismo, beneficia a sociedade como um todo. A inveja feminina potencializa a indústria da moda e dos perfumes. Nessa linha de pensamento, lorde John Maynard Keynes de Tilton (1883-1946) que com as suas obras: O fim do laissez-faire (1926) e Teoria geral do emprego, do juro, e da moeda (1936) salvou o capitalismo das crises cíclicas, considerava que os excessos econômicos dos ricos podem, se bem taxados com impostos, potencializar a economia em recessão. A Economia, para Keynes, era mais um jogo semelhante ao pôquer do que uma ciência matemática, por exigir dose especial de gosto pelo risco.

O conceito de economia para Gelson Pellin, pai do nosso narrador, e para os seus amigos era eminentemente lúdico, à maneira do pré-socrático Heráclito de Éfeso (540-470 AC) que, fustigado pelos concidadãos pela misantropia e a sua pouca habilidade com o dinheiro, decidiu dar uma lição aos seus gozadores. Durante uma longa estiagem na qual a colheita de azeitonas foi à míngua, comprou todas as prensas para esmagar esses frutos na sua cidade e, na primeira colheita após a estiagem, era o único que podia produzir o invejado azeite, tendo ficado rico. A lição que tirou o sábio filósofo foi: a habilidade para ganhar dinheiro não é a coisa fundamental na vida, na qual tudo passa, mas um filósofo é capaz de superar o desconhecido, no entanto, justamente porque as suas preocupações intelectuais o projetam para um futuro imprevisível, garantindo assim o valor humanístico da reflexão, que se defronta com os imponderáveis da existência.

A compra da vaca preta em noite escura foi apenas um divertimento. Estava mais para gincana do que para transação comercial. A propósito do lúdico negócio, escreve Elizandro: “Duma feita, meu pai Gelson Pellin, que adorava um ‘briquezinho’, comprou, sem ao menos ver, uma vaca. Apenas lhe foi informado pelo vendedor, um amigo gendarme de nome Ramalho, que a vaca era preta, gorda e pesava mais ou menos xis quilos. O bicho estava numa chácara na Argentina, bem próxima do rio Santo Antônio, divisa com nosso país. O negócio foi fechado quando já estava escurecendo. Pago o preço e para aproveitar a informação privilegiada de que a gendarmeria não estaria no pique naquela noite, meu pai solicitou a seu compadre Nerso dos Santos, que chibeasse o ruminante pro Brasil, no que foi prontamente atendido” [p. 26].

Conta Elizandro que o cumpadre Nerso trouxe a vaca preta da Argentina até a casa do Gerso, tendo-a deixado amarrada no fundo do lote. Quando ele e o filho foram verificar, ainda nessa noite, não encontraram o bicho. Aí começou uma correria que começou na escuridão da noite sem luar, estendeu-se pela manhã seguinte e somente foi terminar no decorrer da tarde. Os buscadores da vaca preta iam seguindo o fusquinha azul de Gerso e levando o laço para amarrar o bicho quando aparecesse. As coisas estavam tão desarranjadas em termos de negócio, que o cumpadre Nerso que “de vaca não sabia se mugia ou relinchava”, tinha esclarecido que se tratava de uma vaca “preta, mocha e co’as guampinha virada para cima”. Não vou aqui repetir a hilariante história. Deixo que o leitor se divirta com as idas e vindas do grupo, com a denúncia feita na TV acerca do furto da vaca e com as troças de que os involucrados no falso crime foram vítimas da parte do grupinho de taxistas gozadores da cidade, que presenciaram as idas e vindas do fusca azul seguido pela troupe de vaqueiros voluntários. O que fica claro da leitura do conto é que a compra da vaca tudo foi menos um negócio. Tratou-se, de início ao fim, de um divertimento entre amigos gozadores.

II – SÍNTESE.

Como frisei atrás, centrarei neste item a atenção no ponto que unifica a narrativa do autor: a sua conversa de gaúcho. Concordo com as palavras da professora doutora Claudia Vanessa Bergamini no Prefácio à obra de Elizandro: “Minha atenção ficou presa nesses elementos orais, e senti ao ler que o narrador parece estar sentado diante do leitor, com sua cuia de chimarrão em mãos, falando sobre uma travessia de rio; sobre dois valentões que, no fundo, não eram tão valentões assim; sobre dois meninos desbravando a cidade maior para onde migraram, a fim de estudar. As personagens dos contos são vivas, realizam a performance, aqui entendida dentro da concepção [do medievalista suíço] Paul Zumthor (1915-1995), pela fala deliciosamente oral. Os contos de Vaca preta em noite escura confirmam a ideia [da professora da USP] Nádia Gotlib, em sua Teoria do Conto, de que essas narrativas são construídas através dos tempos e permanecem. De tal modo, desejo que a leitura destes textos seja a você, leitor, um momento de descoberta de um lugar do Brasil ainda pouco descrito em textos literários, o sudoeste do Paraná (...)”.

Por força dessas “experiências circulares” que a vida nos depara, após ter morado em São Paulo, vindo como imigrante de Medellín, na Colômbia, terminei fixando residência aqui, em Londrina, onde, nos idos de 1981, concursei na UEL e comprei um apartamento no conjunto Castelo Branco, na vizinha Cambé, exatamente no mesmo bairro onde, dez anos depois, em 1991, o pai de Elizandro deixou o filho e o parceiro de estudos dele, Flávio César Scopel, vindos do sudoeste do Paraná. Se bem pouco tempo depois saí daqui para outros mundos, no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora, fiquei marcado pela experiência em terras londrinenses. Após me aposentar, em 2013, voltei para Londrina, a fim de fincar raízes de vez nesta abençoada “terra vermelha” e conhecer o amigo gaúcho Elizandro Pellin, com quem vou frequentar, ainda, muitas rodas de chimarrão, para jogar conversa fora sobre a “Vaca preta em noite escura” e outras aventuras literárias.