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CURSO DE INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO - 3ª Aula: "A Ditadura Republicana, o Positivismo e as demais correntes do Pensamento Político"

CURSO DE INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO - 3ª Aula:

ATENTADO CONTRA PRUDENTE DE MORAIS, EM 5 DE NOVEMBRO DE 1897, NO ARSENAL DE GUERRA DO RIO DE JANEIRO. NO CONFUSO EVENTO TERMINOU SENDO ASSASSINADO O MINISTRO DA GUERRA, MARECHAL CARLOS MACHADO BITTENCOURT.

A influência do Positivismo nas características que marcaram a República Velha e a ascensão do autoritarismo no pensamento político republicano são os temas da aula de hoje, organizada com base em textos dos professores Ricardo Vélez Rodríguez, Vicente Barretto e Antônio Paim. Nela os alunos estudarão as origens do messianismo político que influenciou, de maneira preponderante, a instauração do nosso regime republicano, bem como o comportamento e o destino das nossas diversas correntes ideológicas. Uma elaboração atenta em torno das ideias-chave apresentadas, inclusive com a leitura de textos da bibliografia sugerida, é da maior importância para a compreensão e assimilação dos temas apresentados, bem como para o entendimento da evolução posterior do pensamento político brasileiro.

Esta Aula consta de duas partes: I – “A ditadura republicana e o Apostolado Positivista”, redigida pelo professor Ricardo Vélez Rodríguez; II – “Liberalismo, autoritarismo e conservadorismo na República Velha”, da lavra dos professores Antônio Paim e Vicente Barretto.

I – A Ditadura Republicana e o Apostolado Positivista.

Dois itens integram esta primeira parte: 1 – A ditadura republicana e o Positivismo; 2 – A vertente religiosa do Positivismo francês.

1 – A Ditadura Republicana e o Positivismo.

Este texto pretende analisar os principais aspectos que levam à compreensão da Ditadura Republicana, proposta pelo Apostolado Positivista no início da República. Na exposição analisa-se a gênese histórico-ideológica da Igreja Positivista Brasileira, salientando as origens do messianismo político e o conteúdo doutrinário do Apostolado Positivista.

A “Religião da Humanidade”, fundada por Augusto Comte (1798-1857) deita raízes no fenômeno do “messianismo político”, que se consolida na obra e na escola de Claude-Henry de Saint-Simon (1760-1825). Por isso, antes de fazermos uma síntese da “Religião da Humanidade”, que constitui a vertente religiosa do Positivismo e na qual se inspirou a Igreja Positivista Brasileira, convém salientar os traços marcantes do Messianismo Político saint-simoniano. Na sua obra intitulada: Messianismo Político, Jacob Leib Talmon (1916-1980) faz uma completa caracterização do saint-simonismo como doutrina que influenciou, no decorrer do século XIX, nas restantes manifestações do fenômeno messiânico [cf. Talmon, 1956; 1969], que empolgou o pensamento de autores tão variados quanto Augusto Comte, Jules Michelet (1798-1874), Giuseppe Mazzini (1805-1872) e o próprio Karl Marx (1818-1883).

O conde Claude-Henry de Saint-Simon estava animado por um profundo sentimento apocalíptico, que o fazia entrever o nascimento de uma religião universal, que impusesse a organização pacífica da sociedade. À Revolução de 1789 ele tinha assistido passivamente, como observador arguto, em que pese o fato de ter sido eleito, em 1790, como presidente da assembleia eleitoral de sua comuna, o que motivou a renúncia ao título de nobreza. A Revolução Francesa não foi, no sentido do filósofo, evento regenerador, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social.

Na procura de um princípio total que permitisse a explicação racional do universo, Saint-Simon termina professando uma visão determinística do homem. Nesse contexto, a sociedade é concebida como uma “verdadeira máquina organizada”, ou como um organismo que, ao longo dos tempos, criou os próprios órgãos para adaptar-se às diversas situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, nem a Sociedade organicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas fruto do Organismo Social.

Analisando as mudanças ocorridas na sociedade europeia e, particularmente, na França, a partir da Revolução de 1789, Saint-Simon considera que o Organismo Social caminha, inexoravelmente, rumo à organização científica, com a emergência da Sociedade Industrial. Tal sociedade se caracteriza, basicamente, por duas notas: em primeiro lugar, pelo esforço produtivo industrial e objetivo, pois os seus elementos são mensuráveis e tangíveis para todos, e o seu funcionamento é uma questão de precisão e de disciplina de caráter científico. Em segundo lugar, trata-se de uma organização com um grau máximo de integração, o que realça, justamente, o caráter orgânico da sociedade.

Logo após a morte de Saint-Simon, os seus discípulos encarregaram-se, com verdadeiro fervor religioso, de continuar a obra do mestre, instaurando a almejada Igreja. Quatro elementos podemos assinalar em relação à Igreja Saint-simoniana: a sua projeção apostólico-missionária, o componente hebraico, a presença do dogma e o autoritarismo. Convém salientar o componente hebraico da seita saint-simoniana. Os principais membros eram judeus: o primeiro apóstolo, Benjamin Olinde Rodrigues (1795-1851), matemático e banqueiro de uma família de judeus sefarditas da cidade de Bordeaux e o seu irmão mais novo, Eugênio. Outros apóstolos da seita eram os irmãos banqueiros Émile (1800-1875) e Isaac Pereira (1806-1880), Gustave D´Eichthal (1804-1886), o poeta Léon Halévy (1802-1883), Moisés Renaudet e Félicien David (1810-1876).

Talmon considera que dois fatores levaram os judeus a procurarem a seita saint-simoniana: em primeiro lugar, o messianismo político apresentado pelo mestre; em segundo lugar, a conciliação que a religião de Saint-Simon fazia entre vida espiritual e sucesso econômico. Esses dois fatores juntavam-se e geravam a esperança de fazer surgir um Estado que congregasse os judeus dispersos e que, ao mesmo tempo, lhes conferisse o papel de elite religiosa e financeira.

Um aspecto que merece ser salientado é o do messianismo que empolgava as comunidades judaicas e que teria influenciado o próprio Karl Marx, através da versão política saint-simoniana. O dogma formava parte essencial da nova religião. Podemos entende-lo em duas etapas que se complementam. Em primeiro lugar, era reconhecida a existência do dogma científico, de caráter intelectual, cuja essência só poderia ser compreendida por uma classe muito reduzida, uma elite ilustrada “eminentemente ativa na ordem especulativa”, que se dedicaria ao estudo das Ciências Sociais e que seria capaz de analisar o dogma científico. Essa elite comporia a “autoridade competente” que estaria incumbida do governo “da opinião”. A essa elite pertenceriam os “savants positifs” em primeiro lugar, e também os industriais. As massas só teriam uma incumbência em relação a essa elite: “renunciar à demonstração” e “aceitar a nova doutrina” como no passado, de uma forma dogmática.

Contudo, o dogma intelectual deve se alicerçar, por sua vez, no dogma religioso, do qual depende, aliás, a aceitação do primeiro por parte do homem total, incluindo o sentimento. Mediante o dogma religioso, ou melhor, através da imposição do mesmo a todas as mentes e vontades, conseguir-se-á a unidade do todo social e a unidade final do universo.

O autoritarismo é a última característica que desejamos salientar em relação à Igreja saint-simoniana. Se o dogma científico deve estar alicerçado no dogma religioso, e se a cada dogma corresponde uma elite que regula o conteúdo dogmático ou doutrinário, é claro que este último deve ter a sua hierarquia. A lei escrita não é necessária O “autêntico líder” é uma lei viva. E isso basta. Todo o problema radica, então, em saber quem é o líder verdadeiro. O critério, absurdamente surrealista, está muito longe do pretendido cientificismo saint-simoniano. “O autêntico líder – frisa Talmon – é aquele que sente a unidade do universo com maior intensidade do que os outros, aquele cuja fé, cheia de afirmação e de amor, lhe dá um poder excepcional, sobrenatural inclusive, para partilhar a sua experiência com os outros. É aquele que tem a capacidade mágica de unir os homens numa fé e num amor estáticos. O líder é, sobretudo, um vidente, um profeta. A sua experiência da unidade universal é tão elevada que o capacita para captar indícios proféticos em relação com o significado da época e a forma futura das coisas. A sua necessidade mais urgente, e a sua missão sagrada, é a de revelar os mistérios que lhe foram descobertos sobre os destinos sociais dos seus contemporâneos”.

Desse caráter divino e místico – absolutamente subjetivo – do líder, deriva o seu autoritarismo. Ele não será indicado por nenhum processo consensual. A sua autoridade é puramente carismática. E se autolegitima. A autoridade impõe-se por si mesma. Nem discute, nem ensina. Obriga, arrasta.

Não poderíamos terminar este item sem mencionar, ainda que rapidamente, as fontes inspiradoras da religião saint-simoniana, bem como o seu efeito mais importante: o totalitarismo. Isso nos dará uma base suficiente para avaliar a verdadeira significação da “Religião da Humanidade” de Comte, bem como a da Igreja Positivista Brasileira. O “Nouveau Christianisme” de Saint-Simon inspira-se na Religião Civil que o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) propôs na última parte da sua obra Du Contrat Social (1762). Partindo do fato da desigualdade humana criada pela sociedade, o filósofo salienta que só no surgimento de uma Religião Civil, que unifique as mentes e as vontades ao redor do Estado, poderá ser conseguida a ordem social e política. Como Rousseau reconhece, ele é inspirado, em parte, pela proposta do poder único e indivisível em mãos do Estado, que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha formulado, um século atrás, na sua obra intitulada: Leviatã, ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil (1651), para superar o estado de “guerra permanente” ou insegurança coletiva.

A pretensão rousseauniana e saint-simoniana de buscar a unidade da sociedade, sob a direção de um poder total, espiritual e temporal, é o nascedouro do totalitarismo hodierno. Por paradoxal que possa parecer – como frisou Talmon na sua obra: As origens da democracia totalitária – o totalitarismo ínsito no messianismo político surgiu, não porque a filosofia da Religião Civil “rejeitasse os valores do século XVIII do individualismo liberal, mas porque, desde o começo, mantinha perante eles uma atitude perfeccionista demais, ao fazer do homem um ponto absoluto de referência. O homem tinha de ser liberado, mas não apenas das suas limitações históricas. Todas as tradições existentes, as instituições estabelecidas e as ordenações sociais, tinham de ser derrubadas e refeitas, com o único propósito de garantir ao homem a totalidade dos seus direitos e a liberdade [cf. Talmon, 1956].

Esse esforço de libertação implicou, historicamente, duas coisas: em primeiro lugar, a declaração de um estado de guerra provisório contra tudo aquilo que impedisse a liberação humana e, em segundo lugar, um “esforço por reeducar as massas, até que houvesse homens capazes de quererem livremente, e com plena vontade, o seu verdadeiro querer”. Esse estado de guerra e esse esforço educador justificam a utilização da compulsão, por parte de uma elite, que suspenderia a liberdade e manteria o estado de guerra, enquanto houvesse alguma oposição e a sociedade não fosse plenamente unificada. O jacobinismo seria, na França, a primeira manifestação dessa violência.

A evolução desse projeto de dominação total é o hodierno totalitarismo, cuja única meta consiste, como frisa Hanna Arendt (1906-1975), na “total dominação do homem” e cujos pressupostos são a existência de uma única autoridade, um único estilo de vida, uma ideologia em todos os países e em todos os povos do mundo [cf. Arendt, 1951]. Assim, o expansionismo totalitário é a consequência imediata da dimensão universalista e avassaladora da religião salvadora, que leva a elaborar uma “ideologia total” incompatível com uma concepção matizada e não dogmática da sociedade.

O Mundo Luso-Brasileiro não permaneceu alheio ao influxo do messianismo político de cunho rousseauniano, saint-simoniano e comteano. A geração intelectual de Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894), Antero de Quental (1842-1891), Eça de Queiroz (1845-1900), Miguel Lemos (1854-1917), Teixeira Mendes (1855-1927), Júlio de Castilhos (1860-1903), Demétrio Ribeiro (1853-1933) Getúlio Vargas (1883-1954), etc., foi fortemente influenciada por essa tendência.

Esse influxo da Religião Civil como meio para garantir a estabilidade política, vingou no Brasil e no resto da América Latina, no decorrer dos séculos XIX e XX, deitando os alicerces culturais para a adoção de novas formas de messianismo identificadas com as ideologias totalitárias, ou próximas delas. Nos países em que se desenvolveu a tradição positivista, como no México, no Brasil ou no Chile, o messianismo político percorreu o caminho das “ditaduras científicas”, com todo um embasamento religioso-dogmático; tal o caso, por exemplo, do Castilhismo gaúcho, ou do Porfiriato mexicano. Nos restantes países hispano-americanos, vingaria uma mistura entre a tendência rousseauniana à religião civil e a secular tendência do Estado patrimonial espanhol a se alicerçar na tradição religiosa católica.

2 – A vertente religiosa do Positivismo francês.

Augusto Comte, como o conde Saint-Simon, era consciente de que lhe estava incumbida uma missão providencial. O fato de Comte ter proposto, diretamente, não a institucionalização da sociedade industrial, mas uma mudança mental, o abandono da “direção crítica’, levou ao seu rompimento com Saint-Simon, em 1824. Comte não aceitava que o seu mestre, nesse período, deixasse em segundo plano a reforma teórica do conhecimento e se dedicasse à formação prática da nova elite industrial e científica. Porém, Comte conservou idêntica a inspiração salvadora que lhe incutira Saint-Simon.

Na parte cientificista de sua obra, Comte propõe a regeneração social a partir de uma reestruturação do saber e da mente humana. Essa necessidade foi compreendida pelo filósofo desde cedo (1819). Segundo ele, a Humanidade passara por três estados, ao tentar conceber a realidade do mundo e da vida. Esses três estados, ou atitudes espirituais, foram o teológico (em que dominam as forças sobrenaturais), o metafísico (caracterizado pela crítica vazia e pela desordem espiritual, fruto do liberalismo) e o positivo (que supera as explicações insuficientes do mundo, mediante a substituição das hipóteses religiosas ou metafísicas pelas leis científicas). Nesta fase, Comte salientava que o poder material pertence aos industriais e o espiritual aos sábios (seguindo nisto a orientação saint-simoniana). Aos sábios, que cultivam o saber positivo, competem a reorganização e a direção última da sociedade. Essa distribuição de incumbências, assinalada por Comte, tem uma fundamentação racional: o atento estudo da marcha da civilização mostra que a anarquia espiritual “precedeu e produziu a temporal”.

A luz que ilumina, tanto a Saint Simon quanto a Comte, para empreender a reforma da sociedade e fazer a divisão do trabalho, é semelhante: a secreta razão incluída na marcha da civilização, captada por eles. Porém, os resultados desse primeiro passo são diferentes. Para Saint-Simon, a reorganização da sociedade seria efetivada através de um esforço prático, mediante a instauração da sociedade industrial. Já para Comte, tem prelação a preparação dos espíritos. O seu primeiro passo será, portanto, pedagógico.

Em que pese o fato de Comte não utilizar, nesta primeira fase, uma linguagem messiânica, como a que empolgava a Saint Simon desde o início dos trabalhos, é palpável, porém, o caráter salvífico da regeneração social proposta por eles: Só o espírito superior (Comte) e os cientistas positivos conhecem o caminho para salvar a sociedade da crise em que afunda. E a sua missão obedece a um destino inexorável: a marcha natural da civilização, que determina “para cada época, independentemente de qualquer hipótese, os aperfeiçoamentos que deva experimentar o estado social, quer em todos os seus elementos, quer em seu conjunto. Só esses se podem executar, e se executam, necessariamente, com o auxílio das combinações feitas pelos filósofos e pelos estadistas, ou apesar de tais combinações. Todos os homens que exerceram uma ação real e durável sobre a espécie humana, quer no temporal, quer no espiritual, foram guiados e sustentados por esta verdade fundamental, que o instinto ordinário do gênio lhes fez entrever, embora não (a) tivessem, ainda, estabelecida, por uma demonstração metódica (...)”. Como em Saint-Simon, portanto, o plano salvífico da sociedade desenvolve-se dentro de uma visão determinística do homem, em que a ação humana não vale senão na medida em que se exerça “no sentido da força da civilização”, “quando se propõe a operar mudanças impostas por essa força. A ação é nula ou, pelo menos, efêmera, em qualquer outra hipótese” [Comte, 1972: 56 seg.].

A questão da liberdade, quando considerada em si mesma, sem referência ao contexto da marcha da civilização, é um problema metafísico. Só tem sentido falar da ação do homem em relação ao processo supra-individual. Em termos comteanos será mais livre aquele que se entregar mais conscientemente ao processo impessoal da evolução da realidade. À luz da segunda fase, essa entrega revestir-se-á de caracteres místicos. Na fase religiosa da sua obra, Comte entende a regeneração definitiva da sociedade como decorrente da implantação da “Religião da Humanidade”. Formulada por ele a partir de 1845, quando do nascimento do filósofo para o “reino do coração”, ensejado pelo doloroso e platônico amor por Clotilde de Vaux (1815-1846). Em 1849, Comte instituiu uma Igreja propriamente dita e adotou o calendário positivista.

John Stuart Mill (1806-1987), na sua obra intitulada: Comte e o Positivismo explicita, claramente, a finalidade que Comte perseguia com a sua “Religião da Humanidade”: garantir a unidade e a sistematização da vida humana. Em outros termos, fora do projeto totalizante da religião comteana, perde sentido a vida humana. A felicidade é questão de inserção incondicional do indivíduo no todo social, “num destino comum”. Stuart Mill frisa que “Comte sempre volta a este tema e argumenta que esta unidade ou harmonia entre todos os elementos da nossa vida não resulta consistente sob o predomínio das tendências pessoais, devido a que essas nos arrastam em diferentes direções; somente pode resultar da subordinação de todas elas aos sentimentos sociais, que podem ser levados a atuar numa direção uniforme, graças a um sistema comum de convicções, mas que diferem de iniciações pessoais; a vida social constitui uma restrição perpétua sobre as propensões egoístas” [Mill, 1972: 158-159].

Stuart Mill frisa, aliás, que no projeto comteano achamos as condições necessárias para constituir uma autêntica religião, em que pese o fato de não explicitar a existência de Deus. Trata-se, como em Rousseau ou em Saint-Simon, de uma religião leiga ou civil, cujas características seriam estas: a) “Deve existir um credo ou convicção que reclame autoridade sobre o conjunto da vida humana”; b) devem-se dar “uma crença, ou série de crenças, adotadas, deliberadamente, que respeitem o destino humano e o dever, ao qual o crente reconhece interiormente que se devem subordinar todas as ações”; c) tem que haver “um sentimento conectado com esse credo, ou capaz de ser invocado por ele, suficientemente poderoso para dar-lhe, de fato, a autoridade sobre a conduta humana, em relação à qual estende, em teoria, as suas reivindicações”; d) por último, é necessário “que este sentimento cristalize, tanto quanto possível, ao redor de um objeto concreto; de preferência, um realmente existente, apesar de, em todos os casos mais importantes, somente presente de forma ideal” [Mill, 1972: 152].

Esse objeto concreto, no caso da “Religião da Humanidade” é, segundo Mill, a espécie humana, “concebida como um todo contínuo, incluindo o passado, o presente e o futuro. Esta grande existência coletiva, este ‘Grand Être’, como é chamada, tem, segundo argumenta Comte, com força, a vantagem em relação a nós, de que necessita realmente dos nossos serviços”, que consistem em fazer o mais possível “para amar e servir a esse outro Grande Ser, cuja inferior Providência tem-nos dado todos os benefícios que devemos aos trabalhos e às virtudes de gerações anteriores” [Mill, 1972: 152-153].

Da mesma forma que em Saint-Simon, a religião comteana apela para o sentimento, como a mola que consegue movimentar o homem no processo da unidade social, bem como controlar os ímpetos desordeiros da razão. A mulher (depositária do poder espiritual doméstico) e os proletários (aqueles que, não possuindo acumulação de dinheiro, vivem do salário do trabalho diário) estão mais próximos do sentimento do que os outros componentes da sociedade e junto com o clero da Igreja Positivista.

Um positivista liberal como Stuart Mill, ficou muito impressionado com o autoritarismo da Igreja comteana. Eis a forma em que o filósofo inglês tipifica, com certa ironia, essa situação: “Ao ser devedores por completo à Humanidade da educação a que devemos as nossas aptidões mentais, estamos vinculados, em troca, a consagrá-las inteiramente ao seu serviço. Convencido de que isto deve ser assim, só falta a Comte dar um passo para concluir que o Grande Pontífice da Humanidade tem que se dedicar para que assim seja; porém, ao fundamentar esse propósito, organiza um complicado sistema, visando à supressão total de todo pensamento independente. Como o corpo sacerdotal receberá a todos em seu seio, excetuando aqueles que forem considerados intelectualmente, ou seja moralmente, dessemelhantes com a sua vocação, é de supor que todos os mestres rivais serão desacreditados. Dentro do mesmo corpo, o Grande Sacerdote tem em suas mãos a possibilidade para garantir que não haverá ali opiniões nem exercício mental que ele não aprove; porque só ele decide os deveres e o lugar de residência de todos os seus membros, podendo inclusive expulsá-los do corpo. Antes de eleger este governo, sentimos uma curiosidade natural por conhecer de que forma será exercido. A Humanidade teve até agora um Pontífice, cujas qualidades mentais para o cargo não serão, provavelmente, superadas amiúde: Comte mesmo” [Mill, 1972: 184-185].

A religião comteana é, podemos concluir, uma nova manifestação do messianismo político. Apesar de Comte reconhecer uma aparente separação entre os poderes espiritual e temporal, ao assinalar as suas funções, contudo, polariza toda a organização e a atividade sociais ao redor do segundo, configurando, assim, um modelo totalitário em que o homem é inexoravelmente programado desde cima. O vértice da pirâmide será, logicamente, o Sumo Sacerdote da Humanidade, identificado com o próprio Comte.

Se bem é certo que o sistema comteano não desabrochou num modelo prático de governo, deitou, porém, os alicerces para as ditaduras científicas e as ideias autocráticas que vieram florescer deste lado do Atlântico. Discípulos de Comte seriam, no Chile, os irmãos Juan Enrique e Jorge Lagarrigue (1854-1894); os mexicanos Justo Sierra (1848-1912), que orientou o ensino no sentido do positivismo e José Yves Limantour (1854-1935) que, como ministro da Fazenda, impôs uma administração ditatorial da economia; no Brasil, o autocratismo comteano materializou-se na Constituição gaúcha de 1891, redigida por Júlio de Castilhos e que ensejou ampla experiência ditatorial no Estado sulino, até 1930 [cf. Vélez, 1980].

II – Liberalismo, autoritarismo e conservadorismo na República Velha.

Esta segunda parte consta dos seguintes itens: 1 - As correntes do pensamento político republicano; 2 – Liberalismo e inovações na Constituição de 1891; 3 – Autoritarismo doutrinário; 4 – Conservadorismo católico; 5 – A herança política da República Velha.

1 – As correntes do pensamento político republicano.

No governo constituído após a proclamação da República participaram, pelo menos, três correntes: os liberais, os positivistas e os militares. Eram facções sem maior formação doutrinária, mas em cujo seio apareceram grupos exaltados, por isto mesmo denominados de jacobinos. O chefe do governo, Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), conceituado militar, achava-se distanciado de todo radicalismo, mas não tinha qualquer compromisso com um projeto democrático e nem se pode dizer que existisse tal, em seu delineamento global.

A hegemonia estava com os positivistas, embora não se achassem unidos quanto às características que deveriam imprimir ao novo regime. Essa hegemonia se expressava, sobretudo, pela presença de Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) à frente do Ministério da Guerra. O prestigiado líder militar, embora positivista confesso, não tinha boas relações com o Apostolado. Este, contudo, achava-se representado no Ministério por Demétrio Ribeiro (1853-1933), que assumiu, por pouco tempo, a pasta da Agricultura.

A Constituição de 1891 deu, aos liberais, um instrumento aglutinador permitindo-lhes elaborar o que Nelson Saldanha (1933-2015) denominou de pensamento político oficial. Assim, pelo menos ao longo das três primeiras décadas republicanas, o liberalismo corresponde à doutrina política oficial. Mas a prática do regime era francamente autoritária, consistindo, basicamente, no abandono da representação.

A prática republicana criou uma situação inteiramente nova. Passa a primeiro plano o conflito entre grupos cujo interesse próprio resume-se em apossar-se do patrimônio constituído pelo Estado. E mais: essa conquista, ao nível das antigas Províncias, revela-se, de pronto, insuficiente. É necessário assegurar a posse do Executivo central. Para apaziguar esse conflito inventou-se a “política dos governadores” ou o chamado “café com leite” (alternância de São Paulo e Minas Gerais na suprema magistratura).

Nas antigas Províncias (agora chamadas de Estados) não surgiram atividades econômicas capazes de manter alta rentabilidade durante largo período, a exemplo da cafeicultura, agora radicada basicamente em São Paulo e Minas, ensejando o aparecimento de novos grupos sociais e assim contribuindo para tornar mais diversificada a sociedade. Deste modo, o ideal de progresso, que se inscrevera na nova bandeira que o regime republicano dera ao país, ficara circunscrito a São Paulo. Os recursos públicos mal permitiam a modernização da Capital da República.

E quanto à ordem esta só se mantinha mediante a sucessiva decretação do estado de sítio e a intervenção naqueles Estados politicamente mais fracos. Na medida em que a prática autoritária se generaliza, os liberais vão, paulatinamente, circunscrevendo sua plataforma à defesa das liberdades democráticas. Não lhes ocorre sequer a necessidade da diversificação partidária – o regime era de partido único, o republicano, estruturado a nível estadual – salvo em 1926, quando se cria em São Paulo o Partido Democrático. Os liberais sofrem, também, a influência positivista e acabam minimizando o papel da doutrina da representação. À prática autoritária irá se sobrepondo o autoritarismo doutrinário, no seio do qual se destaca o Castilhismo.

A corporação militar consegue se modernizar e se profissionalizar. A par disto, contudo, em seu seio continuam tendo curso as doutrinas que lhe atribuem papel especial na obtenção do progresso material do país. Esse ideal ganha corpo no chamado tenentismo, que enseja insurreições militares em 1922 e 1924, e acaba desembocando na Revolução de 30.

Além de não ter sido capaz de formular, com clareza, uma doutrina da representação, de base republicana – isto é, dissociada dos institutos da Monarquia e do Parlamentarismo, presentes na obra doutrinária do século XIX – contribuiria para a perda de terreno de parte dos liberais, o seu apego à doutrina do liberalismo econômico. Na Europa, essa doutrina seria substituída pelo Keynesianismo, mas somente no período posterior à crise econômica de 1929. No Brasil, a plataforma intervencionista seria concebida por um teórico positivista – Aarão Reis (1856-1936) – e incorporada à prática política instaurada por Getúlio Vargas após a Revolução de 30.

Em síntese, durante os quarenta anos da República Velha assiste-se, de um lado, ao ocaso do liberalismo – que pareceria tão forte, já que impusera ao País a Constituição de 1891 e assumira as rédeas do pensamento político oficial – e, de outro, à confluência da prática autoritária no sentido da Doutrina Castilhista. O novo ciclo, onde Vargas seria figura central, já tem lugar sob a égide do autoritarismo doutrinário, cujo núcleo fundamental será constituído pelo Castilhismo.

Na República Velha ocorre, igualmente, a plena configuração do conservadorismo católico, que não chegou a estruturar-se sob o Império. Esse conservadorismo, que muitos estudiosos preferem chamar de tradicionalismo, iria nutrir a principal vertente do movimento integralista, aparecido após 30. Surgem, também, as primeiras correntes socialistas.

2 – Liberalismo e inovações na Constituição de 1891.

A Declaração de Direitos está redigida de modo muito assemelhado ao que dispunha o título da Constituição de 25 de março de 1824, relativo às “garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros”. As inovações da Constituição republicana dizem respeito: 1º às decorrentes da eliminação da nobreza; 2º às que advieram da separação da Igreja do Estado.

No que respeita à liberdades públicas (de imprensa, de reunião e de associação, etc.) as duas Cartas apresentam disposições idênticas. Quanto aos princípios gerais da aplicação da justiça, os dois estatutos são bastante assemelhados. A Constituição de 1891 introduz o habeas-corpus, que se constituía numa das grandes conquistas resultantes da vigência do sistema representativo, com vistas a assegurar a efetiva garantia da liberdade fundamentada em lei.

A Constituição optou pela forma presidencialista do exercício do Poder Executivo e, simultaneamente, pela descentralização dos poderes da União mediante a transferência de múltiplas atribuições aos Estados. As duas tendências eram francamente contrárias, não se conciliando nem na Carta Magna, nem no seu exercício.

Ao presidencialismo deu-se uma configuração que o contrapunha, frontalmente, ao Parlamento. Restava a alternativa de eliminar, apenas, os institutos que haviam sido estruturados para conjugar a preservação da figura do Monarca e a introdução do sistema representativo, com o Poder Moderador e o Conselho de Estado, mantendo-se o Conselho de Ministros e sua confirmação pelo Parlamento. Não havia como identificar o Legislativo com o regime monárquico, mas a verdade é que a maioria dos espíritos inclinava-se por um poder central forte, sem o imperativo de conviver com o Legislativo. De sorte que essa preferência constitucional pelo presidencialismo não pode ser atribuída, apenas, ao desejo de copiar instituições adotadas universalmente na América, com a única exceção do Brasil, mas igualmente com o propósito de configurar o Executivo, tão próximo quanto possível, do ideal da “ditadura republicana” preconizada pelos positivistas.

A ideia federal era igualmente alimentada pelos positivistas, que chegaram a popularizar a doutrina das “pátrias brasileiras”. Contudo, inseria uma cunha no Executivo Central e debilitava-o na luta contra o Legislativo. O quadro constitucional deixava aberto o espaço para a continuação da luta entre liberais e positivistas.

A propósito das inovações inseridas na Constituição de 91, quando confrontada com a de 1824, Nelson Saldanha teria oportunidade de observar o seguinte: “A combinação doutrinária era mais coerente do que a Carta de Pedro I, mas em compensação, a estrutura geral do Estado passava a ser mais complexa. O unitarismo imperial se mudava, expressamente, num federalismo”.

A estruturação deste, na ordem constitucional, implicava algumas questões técnicas especiais. Aos Estados-membros se atribuía uma autonomia que não chegava a nível de poder “soberano”; duplicavam-se os planos normativos, com uma correlata hierarquia para as leis; distribuíam-se as competências da União e dos Estados, no plano legislativo e no tributário, tudo dentro do modelo norte-americano e embasado na metodologia do direito público respectivo. E Rui Barbosa, embora chegasse a advertir, num dado momento, contra o exagerado apetite federalista que tomava conta dos espíritos, fazia isso, justamente, por notar que nos Estados Unidos um contra- movimento centralizador começava a se robustecer.

Havia, como novidade política, o presidencialismo, já que a Federação e a República eram aspirações com passado longo. O modelo norte-americano era presidencialista, e o eram, também, as Repúblicas da América Latina – algumas já denominadas, pelo Castilhismo, de truculentas e imaturas -. Por outro lado, tratava-se de contrapor, o mais possível, a nova ordem ao que se tinha como “parlamentarismo” do período imperial. E não faltaram motivações concretas para que a instituição do presidencialismo, realmente um regime que confere, ao Chefe do Estado, atribuições governamentais enormes, se tornasse, aos poucos, uma forma peculiar de personalismo político. Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) argumentava, entre outros, que a ordem federal exigia o presidencialismo. Mas foi com Campos Salles (1841-1913) que a ideia presidencialista adquiriu realidade mais incisiva e mais contundente, fazendo da chefia do Executivo um centro de forte poder pessoal, embora constitucionalmente respaldado, e reduzindo a presença política dos Ministros a um papel funcional, a que cabia lealdade e competência, dentro de um programa centralizado no Presidente e por ele efetivamente liderado. Pode-se dizer, entretanto, que o federalismo, que correspondia à reclamação de diversas gerações liberais, e que foi pensado por Rui Barbosa (1849-1923), nunca foi plenamente posto em prática no Brasil, confundido nesta mesma fase com as caudilhagens locais, em nome de uma maior “eficiência” política.

3 – Autoritarismo doutrinário.

A emergência do estilo autoritário do exercício do poder é contemporânea da República. Esse autoritarismo caracteriza-se, de início, pelo empenho em postergar a situação de exceção, adiando ao máximo a institucionalização do novo regime. Os positivistas reivindicam, abertamente, a implantação de uma ditadura, e sua pregação encontra ressonância cada vez maior no seio dos militares. Pululam as entidades paramilitares (os chamados batalhões republicanos ou patrióticos). A resistência a esse estado de coisas é identificada com os propósitos de restauração monárquica.

Contudo, os liberais conseguem obter a convocação da Assembleia Constituinte e a aprovação de uma Carta democrática, tendo sido derrotadas as tentativas dos positivistas de promover uma Constituição ditatorial. Estes refluem para o Rio Grande do Sul, onde Júlio de Castilhos consegue promulgar uma Carta positivista, em 1891, consumando a extinção do Legislativo e enfeixando todos os poderes em mãos do Chefe do Executivo. Semelhante projeto radicalizante leva à unificação dos liberais e o Rio Grande do Sul é arrastado à guerra civil por vários anos.

Na primeira crise grave com o Legislativo, o marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), que fora confirmado na Presidência da República, dissolve o Congresso, sendo derrubado pelo golpe de Estado desfechado por Floriano Peixoto (1839-1895), vice-presidente. A emergência dos militares à cena política – culminando o processo iniciado após o término da Guerra do Paraguai – acarreta o agrupamento de parte da intelectualidade em torno de bandeiras antimilitaristas. Insinua-se que a República com que todos sonhavam – e que seria inerente à índole do povo brasileiro – estava frustrada devido à ingerência militar, que se fazia em desrespeito frontal à Constituição.

Em vista dessa compreensão, criou-se uma expectativa amplamente favorável à eleição de um Presidente civil, Prudente de Moraes (1841-1902), no quinto aniversário da proclamação da República. O simples afastamento dos militares não trouxe, como se esperava, a paz política, em busca da qual empenhar-se-ia o novo governo. A suposição de que a República seria o governo de todo o povo e, por essa via, a despreocupação com a sociedade civil e sua organização política, impediam que a elite liberal compreendesse a natureza real do conflito, que entretanto iria expressar-se, de modo claro, sob Prudente de Moraes.

Ao término do penúltimo ano de mandato do primeiro presidente civil (1896) a disputa marcha para configurar-se, abertamente, como um conflito entre o Congresso e o Presidente. Prudente de Moraes não parecia supor que poderia solucioná-lo em seu favor, mas se dispôs a tenta-lo quando do atentado de que foi vítima e que levaria à morte o seu Ministro da Guerra, Marechal Machado Bittencourt (1840-1897). Obtendo o estado de sítio, decretado pelo Congresso, Prudente de Moraes desencadeia a reação sem qualquer preocupação com a ordem legal. As ruas passam das mãos dos “jacobinos” para as dos “reacionários”. Calam-se os jornais da oposição. A respeito desses confusos eventos, escreveu José Maria Belo (1885-1959) na sua História da República: “O inquérito policial inclui entre os cúmplices do crime político alguns congressistas mais ardorosos, como Pinheiro Machado, preso a bordo de um navio de guerra, Barbosa Lima, antigo governador de Pernambuco e Alcindo Guanabara, jornalista, deportado logo depois, entre outros presos para a ilha de Fernando de Noronha. As imunidades parlamentares valiam tanto quanto na era de Floriano” [Belo, 1972: 155].

Não se tratava, pois, de contrapor civilismo e militarismo. A opção seria, certamente, retomar a tradição imperial e tentar organizar politicamente a sociedade. Mas esse caminho nem sequer seria cogitado. O sucessor de Prudente de Moraes, Campos Salles (1841-1913) é que iria encontrar a fórmula de disciplinar essa disputa, através do que se convencionou denominar de “política dos governadores” [cf. Vélez, 2015: 4-44]. O supremo mandatário seria escolhido entre os governadores dos Estados e respeitaria, plenamente, a autonomia estadual. Para governar sem maiores percalços, precisaria contar com a submissão do Governo. A fim de assegurar semelhante desfecho, Campos Salles estabeleceu que o reconhecimento do mandato parlamentar, simples formalidade para dar posse aos parlamentares eleitos, seria efetivado pela Mesa em exercício na Legislatura anterior. Alegaria mais tarde que tomou essa providência para evitar “a hipótese aterradora de uma duplicata de Câmaras”, na sessão legislativa de 1900, tamanha a disputa entre os dois grupos mais poderosos, chamados de “republicanos” e “concentrados”, partidários, respectivamente, da situação (identificada com o statu quo assinalado pelos interesses dos governadores), ou da oposição (que nunca ameaçaria a estabilidade daqueles).

As eleições para os cargos legislativos passaram, em consequência, a ser simples formalidade, necessária à efetivação do ato decisivo que era o reconhecimento. Somente seriam empossados aqueles candidatos que se ajustassem aos interesses das oligarquias estaduais, sem levar em consideração as ideias dos candidatos ou o número de votos alcançados nos pleitos. Os desafetos, seriam “degolados”, ou seja, os seus votos não seriam sequer contabilizados.

A solução ensejada pela política dos governadores era, entretanto, demasiado precária, segundo evidenciaria o próprio curso histórico. Nesse quadro, a prática autoritária era instada a evoluir, no sentido de se constituir em autoritarismo doutrinário, que se desenvolveria segundo dois grandes eixos, o primeiro dos quais seria o castilhismo. Esta doutrina inspirava-se em Augusto Comte. Tenha-se presente que os positivistas, nem antes, nem no período que se seguiu até 1930, chegaram a conceber um arcabouço institucional consentâneo com as Instituições Republicanas, à luz da Constituição de 1891. Predominavam indicações de caráter retórico muito distanciadas de uma plataforma coerentemente elaborada. Esta foi a magna herança deixada por Júlio de Castilhos ao longo da primeira década republicana, após a promulgação da Carta gaúcha de 1891. A esta seguiram-se diversos outros documentos legais – relativos à estruturação do Executivo à responsabilidade do chefe do governo, ao sistema eleitoral, etc. –

A questão central que então se discutia resumia-se em saber se o regime sul-rio-grandense poderia ser enquadrado dentro do sistema representativo. Os castilhistas, com grande sucesso, iriam evitar qualquer discussão da ideia mesma de representação, buscando trava-la em torno do que seria a essência do regime, se a eleição dos mandatários, ou a elaboração das leis pelo Parlamento. Augusto Comte ensinara que o Governo havia se tornado uma questão de competência, tendo proposto uma nova doutrina, cujo cerne consistia em afirmar que o poder vem do saber. O saber de que se tratava era o do estado positivo, último estágio a ser atingido pela Humanidade. Aceitando semelhantes pressupostos e se considerando não somente competente, mas portador de intenções absolutamente puras, Castilhos pressupunha que o Governo estava, com ele, a serviço do aprimoramento moral da sociedade. A peculiaridade do Castilhismo residia na suposição de que a posse do poder e as “intenções puras” do governante constituíam condição suficiente, para educar a sociedade na busca do bem comum. Este deixava de ser barganha entre interesses individuais, sustentados por grupos diversificados, e passava a ser considerado como efeito do saber científico dos governantes.

Deve-se reconhecer que os Castilhistas lograram amplo sucesso no propósito de escamotear a discussão do essencial. O que caracteriza o sistema representativo é a eletividade do mandatário e não as funções do Poder Legislativo. Esse foi o cerne ao redor do qual girou o debate. Não se avançou a tese – a rigor, indutiva, porquanto tautológica – de que o sistema é representativo porque se apoia na representação de interesses dos eleitores, o que teria levado à identificação da natureza da representação, ao reconhecimento da diversidade de interesses em qualquer sociedade. Os interesses dos cidadãos perderam os direitos de cidadania e foram expulsos para o limbo da imoralidade.

A partir dessa plataforma, que é o essencial do Castilhismo, seus seguidores iriam detratar o sistema parlamentar (batizado de “para lamentar”); a tripartição e independência dos poderes, aceitos apenas pelos que “permaneceram embalados ao ritmo da Marselhesa” e acusariam os seus desafetos liberais de pretenderem entregar os governos “aos azares da opinião flutuante” e, sobretudo, do voto. O Castilhismo constitui, pois, uma doutrina que foi formulada como alternativa para o sistema representativo e tornou-se, de fato, o substrato para o Estado Novo, desde que, à sua frente, encontravam-se homens formados sob o sistema imperante no Rio Grande do Sul, a começar por Getúlio Vargas, que ampliou as funções da “ditadura científica”, a fim de tornar efetiva a intervenção direta do Estado na economia. O Castilhismo constitui, por essa razão, o mais importante segmento do autoritarismo doutrinário, estruturado já na primeira fase da República.

Nas primeiras décadas republicanas surgiu, igualmente, um segundo eixo do autoritarismo doutrinário, destinado a alcançar significativos desdobramentos no futuro. Trata-se daquela vertente que Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019) iria batizar de “autoritarismo instrumental”, consistindo numa espécie de autocratismo que não se propunha substituir o sistema representativo, a exemplo do Castilhismo, mas de apenas aplicar-se transitoriamente, com vistas a preparar a sociedade para o exercício da democracia representativa. Essa doutrina demoraria várias décadas para desabrochar plenamente, mas aparece, em sua formulação inicial, na obra de um pensador da República Velha, Alberto Torres (1865-1917). Este era um jovem de vinte o poucos anos quando da proclamação da República, mas assume, desde logo, uma posição de liderança no Estado do Rio de Janeiro onde, em seguida ao golpe de Floriano Peixoto, seria convocada uma segunda Assembleia Constituinte (eleita em 31 de janeiro de 1892), tendo sido anulada a Carta promulgada no ano anterior.

Alberto Torres tem uma atuação destacada na elaboração da nova Carta, como deputado estadual e membro da Constituinte. Em 1894 é eleito para a Câmara Federal. Exerceu o mandato de presidente do Estado do Rio de Janeiro, no período de 1898 a 1900. Em abril de 1901, era indicado por Campos Salles para integrar o Supremo Tribunal Federal. Embora partidário do sistema representativo com os integrantes da facção liberal, Torres entendia que o principal deveria consistir no fortalecimento do Executivo. A liderança liberal, como vimos, estava mais preocupada com a independência dos poderes, especialmente com a intangibilidade da Magistratura, na esperança, talvez, de que esta acabasse por exercer uma espécie de magistério moral, impedindo que a luta descambasse para o arbítrio e a ilegalidade. No seu momento histórico, as ideias de Alberto Torres não suscitaram maior interesse. Nos anos trinta, entretanto, passaram a ser estudadas com grande entusiasmo.

Outra componente dessa variante do autoritarismo seria a doutrina do intervencionismo econômico, desenvolvida por Aarão Reis (1853-1936), que começa a elaborá-la ainda em fins do século XIX, na Revista da Escola Politécnica, instituição onde era professor. Engenheiro muito conhecido no país, exerceria importantes comissões, entre outras, a de planejar e implantar a nova capital de Minas Gerais. Belo Horizonte. Aarão Reis é autor de um compêndio de economia política e parte da seguinte premissa geral: “Não podem os fenômenos sociais, como todos os demais fenômenos da natureza, estar isentos à subordinação fatal a leis determinadas”. Reis preconizava o advento do socialismo “não por meio de golpes, de leis e de regulamentos, ou de um triunfo revolucionário”, mas pela tendência da humanidade à sua indefinida perfectibilidade. Aarão Reis distingue-se dos Castilhistas e aproxima-se de Alberto Torres (1865-1917), ao apostar, igualmente, na organização democrática da sociedade.

4 – Conservadorismo católico.

Alguns analistas preferem denominar de tradicionalismo ao conservadorismo ligado à Igreja. O tradicionalismo é uma corrente moderna, forjada a partir da Revolução Francesa, consistindo a rejeição ao sistema representativo uma das suas características mais marcantes. No Brasil imperial, os conservadores constituíam uma variante do liberalismo, vale dizer, eram solidários do governo representativo, à época sob a forma de monarquia constitucional. Os tradicionalistas católicos, por sua vez, só o eram no plano filosófico, aceitando o sistema vigente, inclusive o regalismo.

 No mesmo período, em Portugal, o tradicionalismo político acabaria identificado com a monarquia absoluta (o chamado miguelismo). Somente com a República e a separação da Igreja do Estado, teria início o processo de formação do tradicionalismo político no país, isto é, uma corrente política que se opõe frontalmente ao liberalismo e ao sistema representativo, em nome de valores tradicionais, entre estes, a ascendência política da Igreja. O tradicionalismo, em geral, foi denominado simplesmente de conservadorismo ou conservadorismo católico.

Esse movimento está a cargo, quase que exclusivamente, da hierarquia da Igreja Católica, ao longo das três primeiras décadas republicanas. Nesta fase, abarca reduzido número de intelectuais católicos. Entre estes, a figura exponencial é Carlos de Laet (1847-1927). O conservadorismo católico identifica-se, então, com a restauração monárquica. A situação muda radicalmente na década de vinte, com a liderança de Jackson de Figueiredo (1891-1928). Já, agora, o conservadorismo católico, reconciliado com a República, ganha uma plataforma política concreta e consegue a adesão de numeroso grupo de intelectuais.

Com a Revolução de 30, reconstituiu-se a aliança entre a Igreja e o Estado, enquanto o conservadorismo católico iria nutrir uma das vertentes da Ação Integralista. Carlos de Laet diplomou-se em engenharia pela antiga Escola Central, em 1872, mas preferiu dedicar-se ao ensino de português, ingressando no Corpo Docente do Colégio Pedro II. Faria, igualmente, carreira jornalística. Elegeu-se deputado em 1889. O Governo Provisório da República demitiu-o do Pedro II. Carlos de Laet ingressa no magistério particular e daria à sua atividade jornalística um sentido francamente antirrepublicano e monarquista. Seria reintegrado no Colégio Pedro II em 1915. Formou parte da Academia Brasileira de Letras, como membro fundador e presidiu-a de 1919 a 1922. Carlos de Laet advogou pela formação de um Partido Católico ou, pelo menos, de uma instituição que se propusesse a orientar o eleitorado católico. Articulista vibrante, combateu e ajudou a derrotar as tentativas de introdução do divórcio. Reclamou para que fossem subvencionadas as escolas católicas, sob a alegação de que estas foram criadas para facultar o ensino religioso que a escola pública - cuja manutenção se fazia com impostos pagos pela comunidade, em sua maioria católica – o governo lhe negava. Embora Carlos de Laet não facultou aos católicos o almejado programa de ação política, capaz de congrega-los, essa tarefa, no entanto, foi desempenhada por Jackson de Figueiredo (1891-1928).

Na época da Primeira Guerra Mundial, Jackson de Figueiredo era um jovem de 28 anos. Agnóstico anticlerical, como a maioria da intelectualidade republicana, vindo do Nordeste para o Rio de Janeiro, aproximou-se de Raimundo Farias Brito (1862-1917), discípulo da Escola do Recife, empenhado na superação do positivismo. Em 1916, Jackson de Figueiredo publicou algumas reflexões sobre a filosofia de Farias Brito. Converte-se, então, ao espiritualismo. Mas, ao contrário de Farias Brito, que não aceitava o catolicismo nem acreditava na possibilidade do seu florescimento, Jackson de Figueiredo já então manifesta simpatias pela Igreja Católica. Nesse mesmo ano, o futuro Cardeal Dom Leme (1882-1942) publica a sua famosa Pastoral.

Inicia-se uma reação, pela primeira vez, na história da Igreja Católica no Brasil, voltada para os adeptos e seguidores, e não mais para as instituições, com o propósito de transformá-los no cotidiano da vida e não apenas nos atos exteriores. Esse chamamento calou fundo na alma de Jackson de Figueiredo. Dom Leme, compreendendo, por seu turno, o valor e a grande capacidade de liderança daquele jovem que vacilava às portas da sua Igreja, tudo faria para atraí-lo. A conversão de Jackson de Figueiredo marcaria o início de um ciclo de aproximação entre a intelectualidade e a Igreja Católica, sem precedentes na história brasileira.

Em 1921, com Hamilton Nogueira (1897-1981) e José Vicente de Souza, Jackson de Figueiredo funda a revista A Ordem. Segue-se, em 1922, a criação do Centro Dom Vital. A nova revista e o Centro Dom Vital tornaram-se um polo de atração e convergência. É grande o número de adesões de jovens promissores. O grupo católico conquista o reconhecimento e a simpatia de intelectuais de nomeada. Nesse primeiro momento, a ação dos católicos é eminentemente política. Somente com a morte de Jackson de Figueiredo e a passagem da liderança para as mãos de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), convertido em 1928, no próprio ano da morte do seu antecessor, é que se acresce a dimensão cultural, expressa sobretudo na criação de institutos de ensino superior. Mas tudo isto seria posterior à Revolução de 30.

 Na década de vinte, sob a liderança de Jackson de Figueiredo, o conservadorismo católico transforma-se numa força atuante e que passará a contar, cada vez mais, na arena política nacional. Será mérito seu o abandono da insistência da revogação das leis republicanas, para fazer com que a religião católica voltasse a dispor do “status” de credo oficial. Jackson de Figueiredo compreendeu que, através dessa bandeira, o objetivo colimado, que era tornar a Igreja Católica presente e influente, jamais seria alcançado. O mesmo se diga em relação à restauração monárquica. A realidade era a República. Jackson de Figueiredo apoiou a ascensão de Arthur Bernardes (1875-1955) à Presidência da República e ocupou, em seu governo, cargos importantes. Assim, fez as pazes entre a Igreja e o regime instaurado 30 anos atrás, em 1889.

Seu grande feito consistirá, entretanto, em haver dado um princípio programático ao conservadorismo, a partir do qual se poderia estruturar uma plataforma aglutinadora. Esse princípio estava identificado com o binômio Ordem e Autoridade. Aos católicos compete condenar, com energia, toda forma de anarquia, cerrando fileiras em torno da Ordem e das Autoridades constituídas. A insatisfação deve ser canalizada legalmente. O caminho da eliminação dos efeitos da lei ou da prática governamental é o da ordem legal. Com essa bandeira, Jackson de Figueiredo dirige-se à sociedade civil. O que importa é a união do elemento conservador. Desaparece do primeiro plano a plataforma que interessa especificamente á Igreja como instituição. Por isto mesmo refuta a ideia do Partido Católico. Cria-lo seria, a seu ver, dar nascedouro ao partido anticatólico.

A ideologia da ordem de Jackson de Figueiredo revelou-se um princípio aglutinador de grande eficácia. Já agora não se trata mais de colocar a união entre a Igreja e o Estado como condição da moralidade social. Se for dado o passo essencial – congraçamento dos conservadores em torno da Ordem e da Autoridade -, o desdobramento desse princípio dá ensejo à acomodação automática a qualquer plataforma política. O nacionalismo e o respeito à família serão corolários naturais do princípio maior de manutenção da Ordem e da Autoridade. Por esse caminho é que a Igreja Católica será reverenciada pela sociedade e não pelo contrário. Está presente aí a fusão das ideias de Deus, Pátria e Família, que iria inspirar a principal vertente formadora da Ação Integralista, nos começos da década subsequente. Já agora o conservadorismo católico não mais precisa sonhar ou esperar a restauração monárquica, tornada irrealizável com o correr dos anos. Compete-lhe atuar e tornar-se um ponto de referência.

5 – A herança política da República Velha. 

Ao longo da República Velha ocorre o pleno amadurecimento da vertente autoritária de inspiração castilhista, formulada abertamente como alternativa para o sistema representativo. Essa é, certamente, a principal herança do período, segundo se evidencia da evolução experimentada pela Aliança Liberal, da hegemonia castilhista no governo saído da Revolução de 30 e da capacidade do grupo getulista de sobrepor-se às demais vertentes autoritárias ao implantar, em 1937, o Estado Novo. Durante a República Velha, como temos visto no decorrer desta Aula, a prática autoritária do Executivo central, embora apoiada na eliminação do princípio da representação, manteve o Parlamento e recusou o intervencionismo econômico em nome dos princípios liberais. O próprio sistema sul-rio-grandense teve de minorar as suas formas, em decorrência da guerra civil de 1923, terminando o ciclo das reeleições de Borges de Medeiros (1863-1961). Contudo, como a sociedade não se modernizou nem se diversificou, salvo em São Paulo, o Estado continuava a ser a grande realidade e a disputa por sua posse constituiu o eixo principal da política. A radicalização dessa disputa, na oportunidade da sucessão presidencial de 1930, iria evidenciar que a prática inconsequente teria de ser substituída por uma doutrina coerente, de que somente os castilhistas estavam de posse. Amadureceram tanto a experiência castilhista como o país, para abriga-la no plano nacional.

Os acontecimentos posteriores a 30 iriam, igualmente, evidenciar que o conservadorismo católico estava de posse de uma plataforma aglutinadora, apropriada pela Ação Integralista e que deu a essa organização a possibilidade de realizar, no país, ampla mobilização política e estruturar-se na grande maioria das municipalidades. Mas esse movimento nutria-se de outras vertentes, assustando, por sua intolerância e agressividade, mesmo a opinião conservadora do país, o que facilitou o seu isolamento e liquidação pelo autoritarismo castilhista no poder. A par disto, Getúlio Vargas atrairia a Igreja para um novo ciclo de ampla colaboração com o Estado.

Outro fator que conflui para a consolidação, de um lado, do predomínio absoluto das correntes autoritárias e, de outro, da hegemonia castilhista no seio destas, seria o virtual desaparecimento do socialismo democrático. Em fins da República Velha, os socialistas democráticos acabariam atraídos para a órbita da Aliança Liberal e, após 30, colaborando com a estatização do sindicalismo, promovida pelos castilhistas em nome do lema comteano da “incorporação do proletariado à sociedade moderna”, acabariam assumindo feição autoritária. A herança da República Velha é, assim, de ponta a ponta, autoritária. E os liberais, que pareciam tão fortes à época da instauração da República, impondo a Constituição e derrotando os positivistas, e que durante a República Velha detinham o que Nelson Saldanha denominou de “pensamento político oficial”, gozando de inconteste autoridade moral, tornaram-se, talvez, o principal sustentáculo da fachada constitucional do país.

Os liberais chegaram ao fim da República Velha virtualmente destroçados, em que pese o equívoco a que pode induzir a denominação do movimento que afinal empolgaria o poder, com a Revolução, posta nas ruas em nome da “Aliança Liberal”.

Em matéria de liberalismo, a herança da República Velha estaria praticamente circunscrita ao Partido Democrático de São Paulo, porquanto a liderança de Rui Barbosa extingue-se com a sua morte, em 1923, e Assis Brasil está integrado à frente única estruturada no Rio Grande do Sul. O Partido Democrático, organizado ao fim do período, revelaria certa capacidade de articulação durante a década de trinta, com a bandeira da Constituinte, que Getúlio Vargas acabaria sendo forçado a convocar, e a candidatura presidencial de Armando Salles (1887-1945), destinada a concorrer ao pleito, que afinal não seria convocado devido ao golpe de novembro de 1937, que instaurou o Estado Novo.

Assim, embora marcando certa presença na arena política, os liberais não afetaram, em nenhuma medida, o predomínio das forças autoritárias. O teor da pregação que caracteriza o final desse ciclo somente emergiria, como polo aglutinador, após a queda do Estado Novo, com o surgimento da agremiação denominada de União Democrática Nacional e o seu lema: “o preço da liberdade é a eterna vigilância” que espelhou bem o espírito de sua plataforma.

Conclusão.

Embora modesta do ângulo político partidário, a herança dos Liberais, ao longo da República Velha, dever-se-ia alargar, levando em consideração a definição de uma cultura política ampla, aberta à evolução do Brasil como Nação que buscava se inserir no complicado cenário internacional. O nosso país destacou-se como um dos que mais cresceram economicamente, ao longo do século XX. Nessa visão ampla do lugar ocupado pelo Brasil no mundo, a figura de Rui Barbosa se destaca como aquele estadista que realizou, como frisa Carlos Henrique Cardim (1948), “o projeto de implantação do seu modelo republicano, diferente do positivista e do parlamentarista com que havia disputado, principalmente na Constituinte de 1891. É um modelo de república da democracia liberal, em sua essência, mas um modelo que valoriza e prioriza a ideologia do progresso, do desenvolvimento econômico e da participação ativa no cenário internacional” [Cardim, 2007: 297].

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