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FONTES DO CONSERVADORISMO IBERO-AMERICANO

FONTES DO CONSERVADORISMO IBERO-AMERICANO

O PARLAMENTARIO E PENSADOR BRITÂNICO (DE ORIGEM IRLANDESA) EDMUND BURKE (1729-1797)

Dizia um dos meus mestres no terreno da historiografia, Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015), a quem conheci nos anos 70 na Universidade de Los Andes de Bogotá, que se quiséssemos identificar as linhas de continuidade da política latino-americana, deveríamos dar importância ao estudo do pensamento conservador. Frisava o esclarecido historiador que, no nosso continente, tinha vingado o vício de querer explica-lo tudo na seara do denominado “pensamento progressista”, abandonando de vez, como imprestáveis, as abordagens conservadoras. Ora, frisava Jaramillo Uribe, não poderíamos entender nesse contexto radical as nossas Instituições. Pois tanto em Hispano América como na América Portuguesa, o que vingou, como fundamento das instituições, foi uma solução conservadora, que colocou freios às tendências revolucionárias, encaminhando a força social na direção da construção de instituições moderadas, que funcionaram como anteparo da liberdade e da ordem.

Pois bem: vejamos rapidamente quais seriam as fontes da opção conservadora ibero-americana. Houve, certamente, uma proposta radical, de cunho tradicionalista, à sombra dos pensadores que, na França, reagiram contra a Revolução Francesa, que pretendeu cortar radicalmente com o passado. Esses pensadores queriam, como profilaxia contra a febre revolucionária, a volta ao passado, tout-court, ou seja, a reconstituição do que os franceses denominavam de “Ancien Régime”. Pensadores como Joseph de Maistre ou Luis de Bonald se voltaram para essa saída, tendo dado ensejo a pesado tradicionalismo que queria reviver as instituições do passado pré-revolucionário. Os pensadores liberais reagiram contra essa falsa saída, propondo uma versão de liberalismo radical, afinada com o nascimento do “homem novo” proposto por Jean-Jacques Rousseau. Tal foi a via empreendida, na América Espanhola, pelo libertador Simón Bolívar. A escolha de uma via moderada correu por conta de outros atores, inspirados no liberalismo e no conservadorismo anglo-americano e francês e distantes do tradicionalismo. Tal foi o caminho assinalado na Nova Granada por publicistas como Miguel Antonio Caro, Rufino José Cuervo, Mariano Ospina Rodríguez, José Maria Samper ou Rafael Núñez. Esse caminho moderado teve no Brasil seguidores da talha de Silvestre Pinheiro Ferreira, José Bonifácio de Andrada e Silva, Domingos Gonçalves de Magalhães (visconde de Araguaia), Bernardo Pereira de Vasconcelos, Paulino Soares de Sousa (visconde de Uruguai), etc.

As fontes de que se louvaram os conservadores moderados foram, numa primeira instância, britânicas, sendo Edmund Burke (1729-1797) o autor principal. No caso brasileiro, distanciaram-se os conservadores moderados do tradicionalismo inspirado em de Maistre e em De Bonald e se aproximaram dos chamados “doutrinários” franceses, tendo sido François Guizot (1787-1874) a figura central, ao lado de autores precursores dessa opção moderada como Henri-Benjamin Constant de Rebecque, Jacques Necker ou Madame de Staël (a brilhante filha de Necker). Os Imperadores Pedro I (1798-1834) e Pedro II (1825-1891), bem como o pai deles, dom João VI (1767-1826), filiaram-se a essa tendência de conservadorismo, em que pese o fato de terem dado continuidade, ao amparo da visão conservadora, a um liberalismo moderado acorde com as instituições do governo representativo.

Tive oportunidade de participar em Gramado, no Rio Grande do Sul, entre 7 e 10 de abril, de interessante colóquio, promovido pelo Liberty Fund, acerca do tema: “Brazilian Conservatism: Burkean or Reactionary?”. Explanarei, aqui, as minhas reflexões a respeito das leituras feitas, cujas referências bibliográficas aparecem ao final deste post.

Dediquei à mentalidade conservadora uma caracterização preliminar no meu primeiro livro, de 1978, intitulado: Liberalismo y Conservatismo en América Latina [Bogotá: Tercer Mundo, 1978]. Alicerçado em Karl Mannheim, Russell Kirk, João Camilo de Oliveira Torres, Américo Castro, Laureano Gómez, Mariano Ospina Rodríguez, Amadeo Rodríguez, Jaime Jaramillo Uribe e outros, coloquei como características da mentalidade conservadora quatro itens: 1 – Ateorização e anti-economismo (os conservadores, via de regra, só pensam “ex post facto”, quando os progressistas apresentaram uma visão de mundo que negava o passado, destacando o burilamento dos novos tempos pelo homo oeconomicus, e reagindo justamente contra essa posição que corta as nossas raízes históricas). 2 – Reação (essa atitude de reação contra uma posição que defende o progresso em face do passado, converte a posição conservadora numa “anti-utopia” que se ergue contra o progresso entendido como negação do tempo que transcorreu e das raízes históricas do presente). 3 – Morfofania da verdade (as verdades que herdamos dos ancestrais não vêm formuladas de maneira abstrata, mas nas formas concretas das crenças ancestrais, das práticas folclóricas e dos mitos). 4 – Cronontaxiologia (é unicamente o tempo transcorrido que confere às práticas, às crenças e às instituições o seu valor sedimentado no percurso da História. O tempo e somente o tempo, como na enologia ou na arte de produzir queijos, é o fator que permite obter resultados alvissareiros também na arte de governar).

As leituras feitas com ocasião do Colóquio de Gramado tiveram uma orientação mais concreta, destacando as vivências dos teóricos do conservadorismo discutidos no Colóquio, os quais foram dois: Edmund Burke e Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850). Tanto o britânico de origem irlandesa quanto o brasileiro com formação portuguesa foram abordados com referência imediata aos respectivos processos históricos enfrentados, ao ensejo da Revolução Francesa e das repercussões desta no meio britânico (Edmund Burke) e com motivo das repercussões do pensamento revolucionário oriundo da gesta de 1789, sobre o processo histórico de formatação das instituições políticas do Império brasileiro (Bernardo Pereira de Vasconcelos).

Ora, o que fica claro após as leituras acerca dos dois autores, é que não pensam como teóricos distanciados do processo histórico, mas como homens preocupados com a prática da política nos seus respectivos contextos históricos: a Inglaterra de fins do século XVIII e da primeira metade do século XIX (Burke) e o Brasil da metade do século XIX, com motivo das reformas encetadas pelos conservadores e que terminaram sendo alcunhadas de “Regresso”, ou de volta a uma prática moderada após 1837, da qual emergiu o denominado “Ato Adicional” (1841). Nessa conjuntura teve papel relevante Bernardo Pereira de Vasconcelos, a quem dedicarei post especial a ser publicado proximamente.

Burke depara-se com a conjuntura revolucionária francesa do ponto de vista da sua participação do Parlamento Britânico, como representante liberal “whig”. Vasconcelos, por sua vez, aborda os fatos históricos como homem preocupado com os negócios públicos, a partir de uma perspectiva de atividade política intensa, quer como deputado liberal moderado do Parlamento Imperial, quer como Ministro de Estado do Segundo Império.

O CONSERVADORISMO DE EDMUND BURKE.

Nos seguintes itens serão sintetizados os dez aspectos marcantes do Conservadorismo de Burke:

1 - A Revolução Gloriosa garantiu, para os Ingleses, um governo representativo. Mas a Revolução Francesa não pode se confundir com a Inglesa, pois elas obedecem a princípios diferentes.

“(...) É verdade que tenho a honra de pertencer a mais de um clube onde se venera grandemente a Constituição deste Reino e os princípios de sua gloriosa Revolução, e eu mesmo me encontro entre os que mais ardorosamente procuram manter em sua pureza e vigor estes princípios e esta Constituição. Mas é justamente esta a razão pela qual desejo que não haja nenhum equívoco a meu respeito. Todos os que veneram a memória de nossa Revolução e que respeitam nossa Constituição, terão grande cuidado em não se deixarem confundir com homens que, sob a aparência de zelo pela Revolução e pela Constituição, se distanciam frequentemente de seus verdadeiros princípios, e estão sempre prontos a abandonar o espírito firme, circunspecto e avisado que produziu a primeira e continua a presidir a segunda (...)” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, 2ª edição. Trad. de R. de Assumpção Faria, D. F. de Souza Pinto, C. L. Richter Ribeiro Moura). Brasília: Editora da UNB, 1997].

2 – A Sociedade da Revolução foi colocada pela Assembleia Nacional da França como exemplo da nova ordem. Na verdade, os seus membros constituem um grupo particular e, como tal, a Sociedade da Revolução deve ser encarada pelos Ingleses.

“Uma vez que os franceses escolheram a Sociedade da Revolução como o grande objeto de seu reconhecimento e de seus elogios públicos, o senhor há de me perdoar se eu tomar o recente comportamento desta Sociedade como objeto de minhas observações. A Assembleia Nacional da França deu importância aos membros de tal Sociedade, adotando suas posições; e estes retribuíram a gentileza, comportando-se como um comitê destinado a propagar, na Inglaterra, os princípios da Assembléia Nacional. É preciso, pois, doravante, considerá-los como um tipo de pessoas privilegiadas, como membros não desprezíveis do corpo diplomático. Esta é uma das revoluções que deu esplendor à obscuridade e distinguiu méritos insuspeitáveis! Com efeito, até recentemente, eu nunca tinha ouvido falar deste clube que em momento algum ocupou os meus pensamentos e nem, creio, os de qualquer outra pessoa além de seus membros. Depois de me informar, soube que um clube de dissidentes, cujo nome ignoro, conserva há muito tempo o hábito de se reunir em um de seus templos para comemorar o aniversário da Revolução de 1688, ocasião em que ouvem um sermão e, em seguida, vão passar alegremente o dia em uma taberna (...). Qual não foi a minha surpresa aso ver estes senhores, revestidos de uma espécie de capacidade pública, enviar à Assembleia Nacional uma mensagem de felicitações, por meio da qual os atos da segunda recebiam o apoio da autoridade dos primeiros. (...) Qual não foi minha surpresa ao ver estes senhores, revestidos de uma espécie de capacidade pública, enviar à Assembleia Nacional uma mensagem de felicitações, por meio da qual os atos da segunda recebiam o apoio da autoridade dos primeiros. Não vejo nada a ser reparado no que concerne aos antigos princípios ou à antiga orientação deste clube – ou ao menos naquilo que era declarado. Mas, na minha opinião, é provável que novos membros tenham entrado no clube com finalidades secretas, (...). Entretanto ainda que eu tenha razões para desconfiar de suas finalidades secretas, eu só terei por certo aquilo que é público” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 49].

“(...) No entanto, como não estou investido de nenhuma missão de apostolado universal, como sou cidadão de um Estado peculiar cuja vontade pública me limita em proporções consideráveis, penso que cometeria um ato no mínimo inconveniente e incorreto, iniciando publicamente uma correspondência formal com um governo estrangeiro, sem ter sido expressamente autorizado pelo governo sob o qual vivo” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, pp. 49-50].

3 – Sendo a Sociedade da Revolução um grupo privado, na França, que exalta as propostas dos radicais, na Inglaterra o Parlamento a deve encarar como associação privada e não representativa do povo.

“As sociedades de nomes genéricos, que não são autorizadas, estão envoltas em tanta ambiguidade e incerteza, podendo praticar tantos abusos de confiança, que não é por puro formalismo que a Câmara dos Comuns rejeitaria, por mais obsequiosos que fossem os termos ou mais insignificantes os objetos, qualquer petição que lhe fosse apresentada sob esta forma de assinatura. E, no entanto, foi um documento desta espécie que os franceses receberam de braços abertos, tendo sido introduzido na Assembleia Nacional com a mesma cerimônia e a mesma pompa, sob os mesmos aplausos que teriam recebido a majestade representante de toda a nação inglesa. (...). Mas, aqui, trata-se apenas de um voto, de uma resolução, que repousa unicamente sobre a autoridade dos que a emitem, ou seja, no caso presente, sobre a autoridade de indivíduos dos quais só se conhece um pequeno número. Em minha opinião a assinatura de todos os membros do clube deveria ter sido anexada ao documento. Isto teria permitido ao mundo todo saber quantos são, quem são, que valor suas opiniões tiram de seus talentos, de seus conhecimento, de sua experiência, de sua influência e de sua autoridade no Estado. A mim, que sou um homem sem artifícios, tal atitude me parece por demais refinada e engenhosa. Ela se assemelha muito a um estratagema político destinado a dar, graças a um nome pomposo, às declarações públicas deste clube, uma importância que elas não têm quando se olham as coisas de perto. Tal política tem muitos aspectos de fraude” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 50].

4 - São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular.

“Eu me orgulho de ser, tanto quanto qualquer dos membros deste clube, amigo de uma liberdade máscula, moral e bem regrada, e, talvez, eu tenha podido dar, no curso de minha vida pública, melhores provas deste sentimento que qualquer um destes senhores. Como eles, creio, não invejo a liberdade de outras nações. Mas só poderia me adiantar e distribuir críticas ou elogios concernentes a ações ou interesses humanos, considerando a coisa no seu absoluto, na nudez e isolamento de uma abstração metafísica. São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou nocivos à humanidade. Falando-se em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom; no entanto, há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemão, inquirido o que era este governo e de que maneira ele funcionava? Posso hoje felicitar esta nação pela sua liberdade? A liberdade é, sem dúvida, em princípio, um dos grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seriamente felicitar um louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudável obscuridade de sua cela, por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisão, por terem readquirido seus direitos naturais? Seria recomeçar a história do Cavaleiro da Triste Figura, que empregava todo o seu heroísmo em libertar criminosos condenados às galés” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, pp. 50-51].

5 - Eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o povo e com o bem-estar de todos.

“Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo o que sei. É o mesmo caso de um líquido que entra em efervescência; os gazes que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o líquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície agitada. Antes que me aventura a felicitar alguém sobre um bem que lhe advenha é necessário que eu esteja relativamente seguro de que a pessoa tenha de fato recebido tal bem. A bajulação corrompe não só o que a faz, como também o que a recebe; adular não é útil aos povos, nem aos reis. Por tal razão, eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes públicos e privados. (...). O efeito da liberdade é de permitir aos homens fazer aquilo que lhes agrada: vejamos, pois, o que lhes será agradável fazer antes de nos arriscarmos a cumprimentos que muito cedo, talvez, devam ser convertidos em pêsames. A prudência nos ditaria tal conduta se se tratasse de indivíduos separados e isolados; mas quando os homens agem em corpo a liberdade chama-se poder. Antes de se pronunciarem, pessoas esclarecidas gostarão de conhecer o uso que é feito do poder, sobretudo quando se trata de algo tão delicado quanto um novo poder confiado a novos depositários que conhecem pouco ou nada dos princípios, das características e das disposições do poder, e em circunstâncias nas quais os indivíduos que mais se agitam talvez não sejam os mais capazes de ação. Entretanto, a Sociedade da Revolução julgou que descer a estas considerações estava abaixo de sua dignidade transcendente. Enquanto estive no campo, de onde tive a honra de lhe escrever, tive apenas uma imperfeita ideia daquilo que ela tramava. Quando voltei para a cidade, consegui um relatório dos atos, por ela publicado, contendo um sermão do Dr. Price com as cartas do Duque de La Rochefoucauld e do Arcebispo de Aix e outros documentos anexos. O conjunto desta publicação com o claro objetivo de ligar os negócios da França aos da Inglaterra, levando-nos a imitar a conduta da Assembléia Nacional, deixou-me em considerável inquietação (...)” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 51].

6 – O povo da Inglaterra recusou, em séculos passados, mudar sua lei para adaptá-la à infalibilidade dos Papas; ele não a transformará agora em favor de uma fé cega nos dogmas dos filósofos.

“Permita-me acrescentar que estamos tão decididos a não seguir as lições da França quanto certos de que nunca demos a ela as lições que atualmente põe em prática. Os conspiradores que aqui compartilham suas ideias ~são, até agora, muito poucos. Se, infelizmente, por suas intrigas, discursos, publicações, e por uma confiança baseada na esperança de uma união com os conselhos e as forças da nação francesa, eles conseguirem atrair um grande número de pessoas à sua facção, e, consequentemente, tentarem seriamente imitar aqui o que foi feito entre os senhores, o resultado será, ouso predizer-lhe, que logo após causarem algum tumulto no país eles conseguirão realizar sua própria destruição. O povo da Inglaterra recusou, em séculos passados, mudar sua lei para adaptá-la à infalibilidade dos Papas; ele não a transformará agora em favor de uma fé cega nos dogmas dos filósofos – resistiu aos primeiros ainda que eles estivessem armados do anátema e da cruzada, resistirá aos últimos mesmo que eles ajam com a ajuda de libelos e da guilhotina” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 109].

7 - Devemos ter sentimentos ingleses e, portanto, agir como ingleses.

“Antigamente os assuntos franceses concerniam apenas aos franceses. Tínhamos interesse por eles como homens que somos, mas nos mantínhamos distantes pois não éramos cidadãos franceses. Mas, agora, quando percebemos que nos são propostos como modelos, devemos ter sentimentos ingleses e, portanto, agir como ingleses. A despeito de nós mesmos, somos forçados a nos interessar pelos negócios franceses, pelo menos no que diz respeito a nos conservarmos distantes de sua panacéia e de sua praga. Se for uma panacéia, não precisamos dela. Se for peste, é de natureza tal que exige as precauções da mais severa quarentena” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 109].

8 – Os homens de letras e os políticos franceses diferem muito dos ingleses esclarecidos.

“(...). Os primeiros não têm respeito pela sabedoria de outrem, mas têm, em contrapartida, a maior confiança em sua própria sabedoria. Para eles, basta que uma ordem de coisas seja antiga e já se tem uma razão suficiente para destruí-la. Quanto ao que é novo, não se preocupam absolutamente que o edifício que constroem às pressas seja durável, pois a durabilidade não é objeto de quem pensa pouco, ou quase nada, naquilo que foi feito antes de sua época e vive apenas em função de novas descobertas. Todas as coisas que proporcionam perpetuidade, eles as combatem, muito sistematicamente, como perniciosas; razão pela qual combatem, sem pena, todas as estruturas. Estimam que a forma de governo pode mudar como a moda, e tão impunemente quanto ela; que não é necessário nenhum princípio de solidariedade à Constituição de um Estado, além do sentimento da comodidade presente. Falam sempre como se fossem da opinião de que existe, entre eles e seus magistrados, uma espécie de contrato unilateral que obriga os magistrados, mas que não contém nada de recíproco a não ser um direito, para a majestade do povo, de dissolver o contrato em razão unicamente de sua vontade. Sua dedicação ao seu país vai até onde ela se acomoda a seus projetos efêmeros; o amor que sentem por sua pátria começa e acaba com o amor ao sistema político que melhor se adapta à sua opinião do momento. Tais doutrinas, ou melhor, tais sentimentos, parecem predominar entre os novos homens públicos da França. São, todavia, inteiramente diversos daqueles que sempre seguimos na Inglaterra” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, pp. 108-109].

9 – Os ingleses sempre tiveram em alta conta a autoridade legislativa, mas nunca sonharam que os Parlamentos tivessem o direito de violar a propriedade. Os franceses terminaram por instaurar um despotismo cruel: a Assembleia Legislativa decretou a eliminação das propriedades da Igreja e dos particulares.

“(...). Embriagada pela insolência de suas primeiras e desonrosas vitórias, pressionada pelos vícios provenientes de seu ignóbil amor pelo lucro, decepcionada, mas não desencorajada, a Assembléia terminou por desmantelar completamente toda a propriedade em toda a extensão desse grande reino. Obrigou a todos, nas suas transações comerciais, nas vendas de terras, nos assuntos particulares e em todas as outras circunstâncias da vida a aceitar como pagamento perfeito, como legítima e boa moeda, os símbolos de suas especulações sobre a venda projetada dos produtos de sua pilhagem. Que vestígios de liberdade e de propriedade sobreviveram? O direito de exclusividade sobre um pomar, o aluguel de uma casa, a posse de um cabaré ou de uma padaria, a sombra mesma de uma propriedade pretendida, são tratados por nosso Parlamento com mais respeito do que se trata na França as propriedades mais antigas e preciosas nas mãos dos homens mais respeitáveis; ou os interesses reunidos dos seus capitalistas e negociantes. Temos em alta conta a autoridade legislativa, mas nunca sonhamos que os Parlamentos tivessem o direito de violar a propriedade, abolir a prescrição, ou substituir o curso forçado das verdadeiras espécies reconhecidas pelas leis das nações, por uma moeda de sua invenção. Os franceses, que começaram por recusar a submeterem-se às pressões mais moderadas, terminaram por instaurar um despotismo cruel. O plano de atuação dos confiscadores parece ser o seguinte: admitem que seu modo de agir não poderia ser defendido perante nenhuma corte de justiça, mas pretendem que as regras de prescrição não podem obrigar uma Assembléia Legislativa. De sorte que esse Parlamento de uma nação livre não existe para a segurança mas para a destruição da propriedade e não somente da propriedade, mas também de todas as regras e máximas que podem dar-lhe segurança e das únicas espécies que lhe permitem circulação” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 154].

10 – Os fanáticos republicanos da França também são apóstolos do seu credo rousseauniano e espraiam o seu modelo para outros países, inclusive para a Inglaterra. Em todas as mudanças, o que mais contribuirá para diminuir os efeitos malévolos e prestigiar os bons resultados, é o fato de que nos encontremos ligados à justiça e respeitosos para com a propriedade.

“Aliás, os fanáticos na França também são apóstolos. Eles têm sociedades estabelecidas tanto na França como no exterior para propagar suas doutrinas. A República de Berna, um dos estados mais felizes, é um dos objetos de sua destruição. Fui informado que eles conseguiram, até certo ponto, semear lá as sementes do descontentamento. Procuraram doutrinar a Alemanha e não pouparam a Espanha nem a Itália. A Inglaterra também não foi esquecida pela sua caridade malévola e encontramos aqui homens que os acolhem, que recomendam seus exemplos do alto de uma tribuna e que, em reuniões periódicas, não temem em se corresponder com eles, em aplaudi-los, em expô-los à admiração de todos, homens que deles recebem provas de amizade, bandeiras consagradas segundo seus ritos de seus mistérios, que fazem, enfim, discursos de amizade perpétua, no exato momento em que o poder constitucionalmente legítimo para falar em nome desse reino pode achar conveniente declarar-lhe guerra. O que temo não é que o exemplo da França leve a um confisco de nossa propriedade eclesiástica, apesar de que, na minha opinião, isso não seja de pouca importância”.

“O que mais temo é que se chegue na Inglaterra a se considerar que seja um direito do Estado a busca de recursos na base do confisco e que algumas categorias de cidadãos considerem outras classes como sua presa natural. As nações cada vez mais se afundam num oceano de dívidas sem limites. As dívidas públicas que já foram uma forma de segurança para os governos, já que permitiam uma certa tranquilidade pública, poderão se tomar, devido ao seu excesso, meios de subversão. Se os governos tentarem pagar os juros dessas dívidas com maiores cobranças se tornarão odiosos aos olhos do povo. Se, ao contrário, não pagarem esses juros, serão destruídos pelos esforços dos mais perigosos dos partidos, ou seja, aquele dos interesses do grande capital lesado, mas não destruído. Os homens que representam esses interesses procuram suas garantias primeiro na fidelidade do governo e depois na sua própria força. Se chegam à conclusão de que os velhos governos estão falidos, usados e sem recursos e que não têm mais vigor para desempenhar seus desígnios, eles procuram aqueles que têm mais energia, e essa energia não virá de recursos novos, mas do desprezo pela justiça. As revoluções são favoráveis aos confiscos, e é impossível saber sob que nomes odiosos os próximos confiscos serão autorizados. Estou certo de que os princípios que atualmente reinam na França são destinados a serem aplicados em todos os países, a um grande número de pessoas, a classes inteiras, que acreditam que sua calma indolência seja o penhor de sua segurança” [Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, pp. 155-156].

BIBLIOGRAFIA

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