
FRANÇOIS GUIZOT (1787-1874) - O LÍDER DOS DOUTRINÁRIOS NA FRANÇA.
A geração de estadistas que deu ensejo ao Segundo Reinado constituiu, no sentir de Oliveira Vianna (1883-1951), uma elite de homens de mil. Com esse termo bíblico, o sociólogo fluminense queria expressar o caráter extraordinário da elite imperial, perfeitamente afinada com a história do Brasil, mas, de outro lado, indissoluvelmente fiel aos ideais do Liberalismo. As fontes da filosofia liberal que inspiraram os nossos estadistas, têm sido estudadas ao longo dos últimos três decênios. Particular destaque nesse esforço corresponde a Miguel Reale (1910-2006), Antônio Paim (1927-), Vicente Barretto (1938-), aos saudosos Roberto Campos (1917-2001), José Guilherme Merquior (1941-1991), Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), Ubiratan Macedo (1937-2007), a José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017), a João Scantinburgo (1915-2013), etc., e à nova geração formada à sombra deles, nos vários programas de pós-graduação em Pensamento Brasileiro, consolidados no país a partir de 1973.
A tarefa empreendida, embora bem adiantada, ainda está incompleta. Falta-nos, por exemplo, fazer o levantamento integral da influência de clássicos do liberalismo como Madame de Staël (1766-1817), Constant de Rebecque (1767-1830), François Guizot (1787-1874), Alexis de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873) e Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845). Particularmente importante foi a influência exercida em nosso meio por Guizot. As suas obras eram bem conhecidas dos homens de Estado ao longo do século XIX. A noite do positivismo republicano sumiu nas sombras do esquecimento essas significativas fontes do pensamento político. O meu propósito aqui é bem modesto: lembrar alguns aspectos essenciais da vida e das idéias de Guizot, e ilustrar a forma em que estas influenciaram no pensamento de um dos nossos estadistas do Império, o visconde de Uruguai , Paulino Soares de Sousa (1807-1866) notadamente, como destacarei mais adiante, no terreno da ética pública.
Se houve um autor que renovou os conceitos da sociologia política, esse foi François Guizot (1787-1874). Efetivamente, o chefe dos doutrinários pensou as categorias fundamentais dessa disciplina, para focalizar o mundo moderno. Havia, para Guizot, uma diferença básica, do ângulo da sociologia política, entre o Ancien Régime e a época moderna: enquanto os atores políticos no período medieval eram os indivíduos, na modernidade aparece um novo ator: as massas. Estranha formulação, na boca de um liberal-conservador como Guizot. Mas, por estranho que pareça, foi o pensador francês quem introduziu categorias de que depois Karl Marx (1818-1883) faria uso sistemático: classe social alicerçada na defesa de interesses materiais, política como luta de classes, classe habilitada para o exercício do poder, etc. Uma constatação serve de pano de fundo aos novos conceitos sociológicos de Guizot: a de que a modernidade é a época da igualdade. Esse fenômeno de horizontalização das sociedades modernas é irreversível. A tendência à igualdade forma parte desse conjunto de fatos que constituem a história subterrânea da humanidade, ou a história de longo curso do espírito humano. Inspiração hegeliana, certamente. Mas, também, profunda convicção de que não vale a pena brigar com os fatos, de que é necessário projetar as luzes da razão sobre a concretude da experiência para, a partir daí elaborar o mapa do saber. Guizot, protestante e liberal, é também discípulo de Immanuel Kant (1724-1804). A razão não é faculdade todo-poderosa que consegue abstrair uma idéia clara e distinta de costas para o mundo. A razão humana é basicamente, faculdade ordenadora do real. "Não se briga com os fatos sociais. Eles têm raízes onde a mão do homem não saberia chegar" [Guizot, 1984: 114], frisava o nosso autor, destacando esse caráter essencial da razão, aberta à realidade.
O mínimo que se pode dizer de Guizot é que se trata de um pensador paradoxal, que abre as portas à compreensão da política na modernidade, deitando as bases epistêmicas da sociologia política e da historiografia. Façamos de entrada uma referência direta ao pensamento de Guizot, para nos situarmos no clima de inovação que o seu pensamento sociológico representa. Escrevendo sobre a pena de morte, o nosso pensador considerava que era uma vã pretensão dos governantes modernos querer, mediante esse expediente, controlar os atores políticos. A pena de morte seria um expediente prático num contexto em que os atores políticos fossem os indivíduos, como no Ancien Régime, no seio de uma sociedade constituída por desiguais. A lição da pena de morte amedrontava o nobre e o plebeu, bem como o servo. Por que? Porque na sociedade feudal eles estavam em patamares diferentes e agiam como indivíduos atrelados a ordens ou estamentos rigorosamente delimitados. Ora, no mundo moderno, em que os atores sociais não são mais indivíduos situados em determinado estamento, mas as massas, a pena de morte é recurso inútil. Não deixarão de acontecer revoluções por causa dela. Muito pelo contrário, a pena de morte (e a guilhotina foi o símbolo dessa ineficácia), termina se voltando contra os próprios administradores da máquina de cortar cabeças. A igualdade, para Guizot, é um desses fatos novos queridos pela Providência (ou seja, na concepção laica que anima aos liberais franceses, trata-se de uma nova fase da história, que é manifestação do Espírito Absoluto ou da razão humana, na sua caminhada de séculos rumo ao seu autoaperfeiçoamento).
Eis, a propósito destas considerações introdutórias, um texto bastante significativo de Guizot, tirado da sua obra de 1822 intitulada: De la peine de mort en matière politique: "Não há desigualdades insuperáveis, não há privilégios para a Providência. Ela penetra tudo. Os castigos ou os prêmios que ela tem na sua mão valem para todos. Ninguém está mais ao abrigo dos fracassos, da doença, dos sofrimentos da alma, e cada um pode enxergar na sorte do seu vizinho a imagem e o prenúncio da sua própria sorte. Esta comunidade de condições, esta paridade de chances, esta igualdade sob a mão de Deus, não é o menos poderoso dos nexos que unem os homens. Essa comunidade os põe em confronto uns com os outros, ela os iguala nos mesmos sentimentos, ela os impede de se isolarem na luta em prol dos seus interesses ou na diversidade das suas situações. Ela os junta enfim constantemente sob leis semelhantes e os faz sentir que não são, uns em face dos outros, nem diversos nem estrangeiros. Dessa forma, o Ser soberano fez o destino do homem. Assim, o estado atual da sociedade começa a trilhar o caminho do seu destino político. As mesmas leis são dadas, são oferecidas a todos as mesmas chances. As idéias, os sentimentos, os interesses comuns se expandem e se fortalecem. Tudo tende a ensinar aos cidadãos que eles são passíveis de sofrer os mesmos males, todos estão expostos aos mesmos perigos, ninguém pode ficar indiferente à sorte mútua. Mas, ao mesmo tempo, tudo lhes fornece os meios para se comunicarem, para se apoiarem reciprocamente. Assim, de um lado, muitas mais existências individuais têm importância e força e, de outro lado, todas as existências estão estreitamente entrelaçadas, umas condicionam as outras, se alertam mutuamente acerca daquilo que as afeta ou as ameaça e se protegem em face da necessidade" [Guizot, 1984: 111]. Esse será, certamente, o marco conceitual sobre o qual um discípulo de Guizot, Alexis de Tocqueville, construirá a sua interpretação da experiência democrática nos Estados Unidos da América.
O estudo do liberalismo dos doutrinários é importante para nós, no Brasil e no resto da América Latina, pois como frisa José Ortega y Gasset (1883-1955) as idéias liberais penetraram no universo ibérico e ibero-americano pela mão da França. "No século XIX, o centro é a França, para bem ou para mal. A Inglaterra, que em todos os campos antecipou-se ao continente, não influiu nunca nele de forma direta. Sempre foi necessário que exercesse uma influência particular sobre a França e esta logo a transmitisse à sua volta" [Ortega, 1990: 8]. Ao seguirmos a trilha dos doutrinários, poderemos compreender, mais claramente, como o liberalismo conseguiu inspirar movimentos sociais e políticos, num meio sociocultural (como o francês do período da Restauração), que oscilava entre o absolutismo e o espírito revolucionário, que são, queiramos ou não, os dois extremos em que se movimenta, ainda, o jogo político nos países latino-americanos.
Quatro itens serão desenvolvidos no presente texto: I - Perfil bio-bibliográfico de François Guizot; II - O pensamento político de Guizot; III - A influência de Guizot no liberalismo conservador brasileiro do século XIX, e IV – A ética pública de Guizot e de Paulino Soares de Sousa.
I - O pensamento político de Guizot.
François Guizot representou, para o pensamento político brasileiro do século XIX, o marco de referência conceitual do Liberalismo Conservador, um de cujos máximos expoentes foi Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai. A problemática vivida pelo Império Brasileiro na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro Reinado e ao Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem semelhante à vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida política decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do absolutismo e do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da Restauração, os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito reacionário dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien Régime, e com o bonapartismo, que constituía a versão burguesa do absolutismo; de outro lado, com o jacobinismo revolucionário e o democratismo rousseauniano, que tinham ensejado a Revolução de 1789 e o Terror [cf. Macedo e Vélez, 1996].
A queda do Ancien Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu lugar o homem de letras, certamente um intelectual diferente daquele do Iluminismo, porquanto sensível à realidade histórica de sua época. A sua missão consistiria em erguer um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as luzes de uma religião civil, diferente por certo da proposta por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), porquanto compatível com uma sociedade estruturada em várias ordens de interesses. Essa nova religião civil deveria garantir a unidade do tecido social, ao redor de uma gama de interesses comuns a todas as classes e os seus dogmas seriam objeto de um processo pedagógico ministrado pelos homens de letras, que teriam, também, funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma nova era) e dirigentes (seriam, ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua época). Françoise Mélonio (1951-) sintetizou o perfil desses novos líderes, com as seguintes palavras: "Saber para poder, superar a filosofia crítica das Luzes para elaborar os novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas variações, perseguem, Jouffroi (1796-1842) como Guizot, Comte (1798-1857), Hugo (1802-1885), Lamartine (1790-1869), Renan (1823-1892) ou Renouvier (1815-1903)" [Mélonio, 1998: 195].
"Passar a França pós-revolucionária a limpo", esse poderia ter sido o princípio inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto ao nome dessa corrente, assim explica Rosanvallon o seu significado: "A denominação de doutrinários, que parece ter sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos Deputados, referia-se no início unicamente a Camille Jordan (1838-1922), ao duque Victor de Broglie (1785-1870) e a Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845). A expressão caracterizará em seguida a corrente indissociavelmente intelectual e política que se estruturará, progressivamente, ao redor de Guizot, aparecendo este, após 1820, como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que um pequeno grupo de parlamentares" [Rosanvallon, 1985: 26, nota 1]. Contudo a primeira designação de "doutrinário" foi dada, preferencialmente, a Royer Collard, pela sua labuta acadêmica incansável, no terreno da definição das ideias políticas e do liberalismo especialmente. O grupo dos doutrinários esteve também integrado por Paul de Remusat (1831-1897) e Hercule de Serre (1776-1824). Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo, "a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários, mas é impensável sem eles e corresponde certamente ao corolário de sua obra" [Macedo, 1987: 33].
O projeto político de Guizot correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão, garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e do momento democrático, que se inicia depois de 1848" [Rosanvallon, 1985: 26].
Tarefa intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot consistiu em pensar as novas instituições que garantissem, no plano político, o exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não era ato de uma elite intelectual desligada da sociedade. Era função de uma elite, sim, pensar os novos conceitos. Mas eles deviam se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot apostava num uso social da razão. A propósito, perguntava: "O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um pouco durável, um pouco regular?" E respondia: "É preciso, evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo domínio sobre as suas vontades e as suas ações" [Guizot, 1864: 81].
Essa tarefa político-pedagógica era pensada num pano de fundo histórico, inserindo as instituições políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função pedagógico-política do intelectual consistia em fazer descobrir aos franceses a sua própria história. Guizot pretendia cumprir esse papel, em relação ao seu país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou estamentos. O pensador francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a esse ponto, escreve Rosanvallon 1985: 199]: "A construção do Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a destruição das ordens fechadas".
As obras de caráter histórico de Guizot tinham como finalidade ensinar às classes médias essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a história" [Rosanvallon, 1985:195]. A inserção da preocupação histórica como parte essencial da tarefa dos intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em geral, à Revolução Francesa. Talvez aí radicassem as reservas com que Guizot enxergava a obra de Comte, dogmática demais segundo o seu ponto de vista, em boa medida por não levar em consideração, suficientemente, os fatos históricos [cf. Littré, 1868: 28]. Ao passo que os philosophes do século XVIII davam as costas ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração, (Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la Révolution, a essa crítica), os doutrinários faziam questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscavam as raízes da própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana, na qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo, elaborou as categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática social no seio do Liberalismo francês. Guizot entendia a sociedade européia numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos, identificava a essência da realidade como fundamentalmente dialética. O hegelianismo de Guizot não provinha de uma leitura direta de parte do nosso autor das obras do filósofo alemão, mas da influência de Victor Cousin (1792-1867), fundador da "corrente eclética".
No terreno da história da cultura, o Guizot considerava que a civilização européia era fruto do confronto entre dois princípios que se contrapunham dialeticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot escrevia: "Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (....). A Europa tratava de sair desse estado (...). Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobretudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade de imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de barbárie" [Guizot, 1864: 82-83].
Esses dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência histórica concreta. O pensador francês achava que essa foi a missão dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno (742-814). Em relação a esses importantes atores da história humana, frisava Guizot: "Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como se estes constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde tirânico, e que comete mil iniquidades, mil erros, pois é acompanhado pela fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento" [Guizot, 1864: 84].
No terreno sócio-político, Guizot considerava que a realidade da Europa era constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês tinha consciência de que a época era a das classes médias, as únicas capazes de dotar à França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificavam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Esta devia acordar e despertar a sua consciência de que se tratava de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado, claramente, o conceito da consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Karl Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Guiorgi Plekhánov (1856-1918), aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considerava-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que era chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitassem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribuía à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica. Um curioso renascimento da ideia mestra de Aristóteles de Estagira (385-322 a.C.) acerca do papel atribuído pelo Estagirita à Classe Média como eixo da politeia ateniense.
Acerca da influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon [1985: 394]: "Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de luta de classes". (A respeito, Rosanvallon menciona os seguintes autores, além de Plekhanov: Robert Fossaert e B. Reizou [cf. Fossaert, 1955; Reizou, s/d]. Plekhanov, aliás, na sua obra intitulada: Os princípios fundamentais do marxismo, considerava que Marx descobriu a concepção materialista da história, inspirado, em parte, nas teorias do interesse material que movimenta as classes sociais, presentes nas obras de Guizot, Mignet e Thierry [Plekhanov, 1989: 59].
A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçassem o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consistia, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que era fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emergiria o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França quanto no Brasil. Só para lembrar um exemplo dessa influência, Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) definia a representação como "a média da opinião". [cf. Assis Brasil,1896: 81]
II - A influência de Guizot no Liberalismo Conservador Brasileiro do século XIX.
O autor que mais diretamente recebeu a influência de Guizot foi Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai (1807-1866). Para ele, a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade e o progresso da sociedade, a exemplo dos dirigentes franceses e britânicos. O terreno onde se deveria travar essa luta era, para Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser pensadas as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio de Direito Administrativo, publicado em 1862. A respeito, escreve Themistocles Brandão Cavalcanti (1899-1980): "Ali se estudam os elementos fundamentais do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político - o Poder Moderador e o Conselho de Estado" [Cavalcanti, 1960: VII-VIII].
O trabalho não foi pura e simples elucubração teórica. Como Guizot em relação à França, Paulino considerava que deveriam ser pensadas as instituições brasileiras à luz da história e da cultura nacionais. O Ensaio é fruto do profundo conhecimento que tinha do país, amadurecido na sua participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e 1862. A obra foi motivada pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com a finalidade de estudar o funcionamento das Instituições Públicas. A respeito, Paulino escreve o seguinte testemunho: "Na viagem que ultimamente fiz à Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e a Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração. Os primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão larga notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo ali se move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na administração pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por companhias particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre a administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre corteses. Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas conversações particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão freqüentes entre nós, contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da administração, e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha confiança na justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem dúvida por isso que a França tem podido suportar as restrições que sofre na liberdade política" [Souza, 1960: 5].
O visconde regressa da sua viagem à Europa com o firme propósito de pensar as instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade. Esse é o seu imperativo categórico, que o distancia da pura teoria e da pura prática, e que o aproxima do ideal dos doutrinários. Eis a forma em que ele entende o seu propósito: "Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é essencial para a felicidade de uma nação, boas instituições administrativas apropriadas às suas circunstâncias, e convenientemente desenvolvidas não o são menos. Aquela sem estas não pode produzir bons resultados. O que tive ocasião de observar e estudar produziu uma grande revolução nas minhas idéias e modo de encarar as coisas. E se quando parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas políticas pessoais, pouco confiado nos resultados da política que acabava de ser inaugurada, regressei ainda mais firmemente resolvido, a buscar exclusivamente no estudo do gabinete aquela ocupação do espírito, sem a qual não podem viver os que se habituaram a trazê-lo ocupado" [Souza, 1960: 5-6].
A primeira convicção que tem o visconde de Uruguai - como de resto os demais estadistas da sua época - é a de que a monarquia constitucional é o regime que melhor se adaptava às necessidades brasileiras. Essa convicção, é bem verdade, tinha sido sedimentada pela obra pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Mas o interessante é que Paulino encontra no próprio Guizot um arrazoado claro e favorável à monarquia brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona lição da sua Histoire de la Civilisation en Europe, tinha deixado claro que a monarquia foi, na Europa e notadamente na França, a primeira garantia de legalidade no início da modernidade, por cima da turbulenta atmosfera de particularismos em pugna. Referindo-se especificamente ao Brasil, escrevia Guizot: "Abri a obra onde M. Benjamin Constant tem representado de forma tão engenhosa a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade e somente intervindo nas grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa idéia algo de muito especial que chame a atenção das pessoas, pois ela passou com extraordinária rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dessa idéia, na constituição do Brasil, a base mesma do seu trono; a realeza é ali representada como um poder moderador, elevado por cima dos poderes ativos, como um espectador e um juiz das lutas políticas" [Guizot, 1864: 256].
Paulino era consciente da complexidade da tarefa empreendida. Pensar as instituições do direito administrativo, era algo mais do que conceber os termos de uma Constituição Política. Implicava, também, criar os caminhos jurídicos e institucionais que permitissem a boa administração e que se enraizassem, portanto, na cultura e nos hábitos do país. É significativo dessa preocupação o texto de Guizot (tirado da obra: L'Église et la Societé Chrétiennes, publicada em 1861) que serve de epígrafe à obra de Paulino, e que reza assim: "Não basta estabelecer num país eleições, câmaras e o governo parlamentar, para libertá-lo dos seus males, dar a todos os bens que lhes são prometidos e poupá-los das funestas conseqüências de todos os erros que ali se cometem. As condições do bom governo dos povos são mais complicadas; não se satisfaz a todos os interesses, não se garantem todos os direitos colocando uma constituição no lugar de um velho poder, e não se pode ter instituído em Turim um parlamento italiano sem ter fundado na Itália a liberdade" [apud Souza, 1960: folha de rosto].
Paulino Soares de Souza considerava que, no processo de construção das instituições que garantiam no Brasil o exercício da liberdade, as condições assemelhavam-se muito às da França pós-revolucionária. A experiência inglesa de self-government era mais distante. A nossa prática do municipalismo esteve sempre vinculada à garantia da legislação e das instituições por um poder central, que se soerguia por sobre o universo de particularismos e castas predispostos à privatização do poder. A prática do direito administrativo inspirou-se, no caso de Portugal e no do Brasil, na tradição francesa, centralizadora, diferente da tradição anglo-saxã, eminentemente descentralizadora.
A propósito, escreve Paulino: "O sistema francês, inteiramente diverso do anglo-saxônio, mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais claro e compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um país que arrasa, de um só golpe todas as suas antigas instituições, para adotar as constitucionais ou representativas, e isto muito principalmente quando esse país larga as faixas do sistema absoluto, e abrindo pela primeira vez os olhos à luz da liberdade, está mal, ou não está de todo preparado para se governar em tudo e por tudo a si mesmo. (...) Adotados em um país, como nós adotamos, os pontos cardeais desse sistema, organizado o país segundo o seu espírito em geral, não é possível proscrevê-lo, sem adotar o contrário, e sem a completa mudança de toda a organização existente. O sistema administrativo francês concede pouco ao self government, é um e muito uniforme, preventivo e muito centralizador. Alarga muito a direção, tutela a fiscalização do Governo. Admite largamente a hierarquia. Reduz o Poder Judicial ao Civil e Criminal. (...) Este sistema é muito ligado, lógico e harmônico, e tem incontestáveis vantagens. Depois de bem montado e desenvolvido é o que apresenta melhores condições de resistência e estabilidade. (...). Cada indivíduo tem menos ingerência nos negócios públicos, porém o seu direito está mais bem resguardado e garantido do que em muitos países que se dizem livres. Bem desenvolvido e executado, como o é na França, não se dão as violências, e as injustiças flagrantes, das quais apresentam não raros exemplos países que aliás gozam de liberdade. A França não goza de uma completa liberdade política, mas não há talvez país melhor administrado, e onde a segurança pessoal, o direito de propriedade, e a imparcialidade dos tribunais sejam melhor assegurados e garantidos" [Souza, 1960: 417].
Paulino Soares de Souza não renunciava à prática do self government. Não escondia a sua admiração por essa forma de governo, na forma em que foi belamente descrita por Tocqueville na sua Democracia na América. É explícita a admiração de Paulino pelo regime de self government que Tocqueville encontrou na América, e que ele aproxima do regime de liberdade municipal. A respeito, escreve o visconde: "Um povo, diz Tocqueville, pode sempre estabelecer Assembleias políticas, porque ordinariamente encontra no seu seio certo número de homens nos quais as luzes substituem até certo ponto a prática dos negócios... A liberdade municipal escapa, para assim dizer, aos esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis; nasce por algum modo por si mesma. São, a ação contínua das leis e dos costumes, as circunstâncias e sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la. De todas as nações do continente da Europa, não há talvez uma só que a conheça. É, contudo, na Municipalidade que reside a força dos povos livres. As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência: põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo tranqüilo, e habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade" [Souza, 1960: 405].
Mas, à semelhança de Guizot, Paulino era consciente de que a liberdade democrática requeria uma base moral, que não estava suficientemente consolidada entre nós. Para atingir o estágio da plena democracia, seria necessário primeiro educar o povo nos hábitos do respeito ao bem público e da participação na gestão responsável da res publica. A tirania é a conseqüência da construção afoita da democracia, sem as bases morais que tornam o self government uma instituição a serviço da liberdade e não do despotismo. Em relação a esse ponto, escreve o visconde: "Assim é e deve ser, ao menos a certos respeitos, naqueles afortunados países, onde o povo for homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitem para se governar bem a si mesmo. Quais e quantas são as nações entre as quais se tem podido estabelecer o self government? Ide estabelecê-lo em certos lugares da Itália, entre os Lazzaroni, no México, e nas Repúblicas da América Meridional! O pobre Soberano, o povo, deixar-se-á iludir, e será vítima do primeiro ambicioso esperto (....). Nos países nos quais ainda não estão difundidos em todas as classes da sociedade aqueles hábitos de ordem e legalidade, que únicos podem colocar as liberdades públicas fora do alcance das invasões do Poder, dos caprichos da multidão, e dos botes dos ambiciosos, e que não estão, portanto devidamente habilitados para o self government, é preciso começar a introduzi-lo pouco a pouco, e sujeitar esses ensaios a uma certa cautela, e a certos corretivos. Não convém proscrevê-lo, porque, em termos hábeis, tem grandes vantagens, e nem o Governo central, principalmente em países extensos e pouco povoados, pode administrar tudo. É preciso ir educando o povo, habituando-o pouco a pouco, a gerir os seus negócios" [Souza, 1960: 404-405].
Sintetizando: Paulino advogava por um direito administrativo centralizador, como o francês, que na sua aplicação, no entanto, estivesse pedagogicamente aberto à prática do self government. "Isto não tira que seja possível e muito conveniente, -- frisava o estadista do Império --, no desenvolvimento e reforma das nossas instituições administrativas, ir dando (à sociedade), (a) parte de self government que (as instituições) encerram, mais alguma expansão temperada com ajustados corretivos, habituando assim o nosso povo ao uso de uma liberdade prática, séria e tranqüila, preservando sempre o elemento monárquico da Constituição, porque, por fim de contas, é para aqueles povos que nela nasceram e foram criados, essa forma de governo, rodeada de garantias e instituições livres, a que melhor pode assegurar uma liberdade sólida, tranqüila e duradoura" [Soares, 1960: 412]. Proposta de autêntico liberalismo conservador, como a defendida pelos doutrinários, notadamente Guizot.
Na sua análise da realidade brasileira, Paulino Soares de Souza adotava como pano de fundo a perspectiva histórica proposta por Guizot. O grande problema no estudo da nossa realidade, considerava Paulino, é o fato de os estudiosos esquecerem-se da própria realidade. A propósito, escreve: "Tive muitas vezes ocasião de deplorar o desamor com que tratamos o que é nosso, deixando de estudá-lo, para somente ler superficialmente e citar coisas alheias, desprezando a experiência que transluz em opiniões e apreciações de estadistas nossos" [Soares, 1960: 8]. A perspectiva histórica identificada com o conhecimento das próprias raízes (que, como vimos no item 1, inspirou a Guizot na elaboração das soluções institucionais para a França do seu tempo), era também a perspectiva adotada por Paulino. "É preciso, frisava ele, primeiro que tudo estudar e conhecer bem as nossas instituições, e fixar bem as causas porque não funcionam, ou porque funcionam mal e imperfeitamente. Convém muito o estudo e o conhecimento todo que sobre elas pensaram os nossos homens de Estado, e o dos fatos próprios do país que podem esclarecer o assunto" [Souza, 1960: 12]. Sobre esta base histórica de conhecimento das próprias origens, ardentemente defendida por Paulino Soares de Souza e os demais estadistas do Império, alicerçar-se-ia a etapa posterior da emergência da sociologia brasileira, com Silvio Romero e Oliveira Vianna, na adoção do método monográfico. Paulino e os restantes "homens de mil" do Segundo Reinado foram, assim, os precursores da ciência social desenvolvida pelos seguidores do "culturalismo sociológico".
De forma semelhante a como Guizot entendia a civilização ocidental como uma luta entre os princípios de liberdade e de ordem, Paulino concebia a nossa vida política como pautada por dois grandes princípios jurídicos, contrapostos, mas complementares: aquele que consolidava os direitos individuais em face do Estado (chamado de direito público interno ou constitucional) e aquele que garantia o funcionamento do Estado (chamado de direito administrativo). Paulino definia o direito constitucional ou político como aquele que compreendia "aquelas matérias que constituem o chamado direito público propriamente dito" e que tem como finalidade garantir "a inviolabilidade dos direitos civis e políticos, que têm por base os direitos absolutos que derivam da mesma natureza do homem, e se reduzem a três pontos principais, a saber: liberdade, segurança individual e propriedade". Já o direito administrativo era definido por ele como "a ciência da ação e da competência do Poder Executivo, das administrações gerais e locais, e dos Conselhos Administrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos administrados, ou com o interesse geral do Estado" [Souza, 1960: 18-19].
O equilíbrio entre ambas as ordens de direito, a constitucional e a administrativa, exige que, do ponto de vista da legislação, não se fixem apenas os direitos dos cidadãos, mas também os seus deveres (correspondentes aos direitos da sociedade). A respeito deste atualíssimo ponto (o problema da nossa Constituição de 1988 é justamente a hipertrofia dos direitos do cidadão esquecendo os seus deveres), escrevia Paulino: "É necessário também que a legislação não se limite a estabelecer e a proteger direitos, é também preciso que fixe e defina bem as obrigações. Um dos grandes erros, observa Laferrière, da Assembléia Constituinte da França, seguido em outros países inexperientes que a tomaram por modelo, consistiu em ter protegido mais os direitos do homem do que os da sociedade, e em ter desconhecido e estabelecido com timidez a união indispensável e fundamental do direito e do dever. É agradável ter somente direitos, e os aduladores do povo fogem de falar-lhe em deveres. A legislação inglesa e a americana ocupam-se especialmente em fixar os deveres" [Souza, 1960: 406-407]. Na formulação dessa dupla vertente (direitos e deveres do cidadão), Paulino alicerça-se em Guizot, fazendo referência ao seguinte texto extraído de Mémoires pour servir à l'histoire de mon Temps:
"Duas idéias constituem os dois grandes caracteres da civilização moderna e lhe imprimem o seu formidável movimento; sintetizo-os nestes termos: - há direitos universais inerentes unicamente à condição humana e que nenhum regime pode legitimamente recusar a homem nenhum; - há direitos individuais que decorrem unicamente do mérito pessoal de cada homem, sem levar em consideração as circunstâncias exteriores do nascimento, da fortuna, ou da posição social, e que todo homem que os porta em si mesmo deve ter a possibilidade de desenvolver. O respeito legal aos direitos gerais da humanidade e o livre desenvolvimento das capacidades naturais, desses dois princípios, bem ou mal-entendidos, têm decorrido ao longo do último século os bens e os males, as grandes ações e os crimes, os progressos e os descaminhos que ora as revoluções, ora os governos mesmos têm feito surgir no seio das Sociedades Européias" [Souza, 1960: 448, nota 8].
Fazendo-se eco do hegelianismo soft que inspirava a Guizot, Paulino considera que os grandes atores da história não são, no século XIX, apenas os indivíduos, mas também, e de forma decisiva, as massas. Um governo que olhe apenas para a perspectiva individual, não consegue atingir o seu escopo. A nota caraterística da política moderna consiste em levar em consideração a perspectiva das massas, pois é nelas que passou a residir a força e a legitimidade dos governos.
Eis a forma em que o estadista brasileiro fundamentava o seu pensamento a respeito deste ponto: "Os seguintes profundos trechos de M. Guizot - Des moyens de Gouvernement - explicam e completam o meu pensamento. Quando se considera o poder, não isolado e em si mesmo, mas na sua relação íntima com a sociedade, a sua ação apresenta-se sob um duplo aspecto. Ele deve tratar, de um lado, com essa massa geral de cidadãos que ele não vê, mas que o sofrem, o sentem e o julgam; de outro lado, com indivíduos que tal ou qual causa aproxima de si e que estabelecem com ele uma relação pessoal ou direta, já se trate de que eles lhe sirvam nas suas funções, ou de que ele próprio sinta necessidade de se servir de sua influência. Agir sobre as massas e agir através dos indivíduos, é isso que se chama governar. Dessas duas partes do governo, o poder é inclinado a negligenciar a primeira. Fraco e pressionado, é absorvido pelo trabalho de tratar com os indivíduos. Nada mais comum do que vê-lo esquecer que há um povo no qual vai terminar parando tudo quanto ele faz. Dos erros do poder, esse é sobre tudo o mais fatal, pois é nas massas, no povo mesmo que ele deve encontrar a sua força principal, os principais meios de governo. O público, a nação, o país, é lá que reside a força, lá que é possível consegui-la. Tratar com as massas, essa é a grande mola do poder. Em seguida vem a arte de tratar com os indivíduos; arte necessária, mas que, sozinha, de nada vale e produz pouco efeito" [apud Souza, 1960: 502-503].
III - A ética pública de Guizot e de Paulino Soares de Souza.
Não são poucas as novidades que nos apresentam Guizot e os doutrinários, no seu arrazoado acerca das condições históricas da França de meados do século XIX. Da mesma forma, são muitas as lições de ciência política que podemos tirar da leitura do Ensaio sobre o Direito Administrativo de Paulino Soares de Souza. Gostaria de terminar estas reflexões destacando um ponto que me parece essencial no pensamento de ambos os autores: o seu conceito de ética pública. Quatro aspectos podem ser assinalados (tanto em Guizot como em Paulino):
Em primeiro lugar, o imperativo categórico do governante consiste em transformar as instituições do seu país, para garantir aos seus concidadãos, de maneira eficaz, o exercício da liberdade, no contexto do estudo diuturno das tradições históricas da nação.
Em segundo lugar, é necessário que o governante, na sua ação, não se perca na perspectiva individual, mas que enxergue sempre e sem vacilação o fundo que constitui a essência da legitimidade política: a vontade das massas. O folclore político resumiu esse ideal no princípio de "ouvir o clamor das ruas".
Em terceiro lugar, cabe ao governante o compromisso pedagógico de formar, mediante a educação cívica, a consciência do bem público nos seus governados, de forma que eles não reivindiquem apenas os seus direitos, mas que acordem, também, para os seus deveres. No sentir de Guizot, essa tarefa traduzia-se em acordar nas classes médias a consciência da sua responsabilidade histórica. Algo semelhante pensava o visconde de Uruguai: tratava-se de formar, a partir de um eleitorado censitário, um núcleo disciplinado ao redor da idéia de nação e sensível às demandas do bem público.
Em quarto lugar, não há na caminhada histórica da sociedade um final utópico, em que todas as contradições sejam resolvidas. O processo de luta de classes permanecerá como caraterística essencial à vida política. O que Guizot e Paulino destacam é que essa luta pode ser civilizada pelo debate parlamentar e pela prática, cada vez mais aperfeiçoada, da representação. Aqui radica a diferença fundamental entre liberais e socialistas. Estes últimos terminaram acreditando no "fim utópico da história", na conquista de um paraíso em que desaparecesse a luta pela defesa dos próprios interesses.
Muitas coisas poderíamos escrever acerca da tremenda atualidade da ética pública apresentada por Guizot e adotada por Paulino Soares de Souza. Reste apenas, expressar o nosso sentimento de admiração face a esses grandes pensadores-estadistas, que conseguiram encarnar o princípio da moral de responsabilidade no momento histórico em que viveram.
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Escolha a resposta certa para as seguintes questões:
1 – Para François Guizot havia uma diferença básica, do ângulo da sociologia política, entre o Período Medieval e a Época Moderna. Essa diferença consistia:
a) Em que na Época Moderna os atores políticos eram os líderes carismáticos, enquanto no Período Medieval os atores políticos eram os líderes religiosos.
b) Em que no Período Medieval os atores políticos eram os sacerdotes, enquanto na Época Moderna os atores políticos eram os reis.
c) Em que no período Medieval os atores políticos eram os indivíduos, enquanto na Época Moderna os atores políticos eram as massas.
2 – A igualdade, segundo François Guizot, era:
a) Um ideal querido pela Divina Providência.
b) Uma aberração, fruto da anarquia.
c) Uma tentação colocada pelo demônio.
3 – “Passar a França pós-revolucionária a limpo”. Essa era a divisa:
a) Dos Liberais Doutrinários.
b) Dos Tradicionalistas.
c) Dos Revolucionários Jacobinos.
Gabarito: 1c; 2a; 3a.