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INSOLIDARISMO E PRIVATIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: AS ABORDAGENS DE ORTEGA Y GASSET E OLIVEIRA VIANNA

INSOLIDARISMO E PRIVATIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: AS ABORDAGENS DE ORTEGA Y GASSET E OLIVEIRA VIANNA

O FILÓSOFO ESPANHOL JOSÉ ORTEGA Y GASSET (1883-1955)

Ortega y Gasset (1883-1955) e Oliveira Vianna (1883-1951) compartilharam, além da época em que viveram, o fato de terem pensado de forma radical, à maneira tocquevilliana, os problemas da democracia no mundo moderno, aplicando essa análise aos seus respectivos contextos sócio-históricos. Ortega foi, sem dúvida nenhuma, o grande pensador crítico da sociedade espanhola, ao passo que Oliveira Vianna desempenhou, em relação ao Brasil, a mesma função. Ambos os pensadores, outrossim, foram raivosamente banidos dos currículos universitários pela esquerda que se apossou do ambiente acadêmico latino-americano no segundo pós-guerra.

Lembro-me de que, jovem professor de filosofia na Universidade EAFIT de Medellín, pelos idos de 1968, foi-me encomendada a cátedra de “Humanismo de la Técnica”. Apoiei a minha abordagem dos problemas ensejados pela ciência e pela técnica à luz das análises do pensador espanhol, assinalando, de entrada, na bibliografia para a mencionada disciplina, duas das suas obras, La rebelión de las masas e Meditación sobre la técnica. Não imaginava que essa minha escolha obrigar-me-ia a enfrentar a ira dos ativistas, tanto professores quanto estudantes, que não duvidaram em alcunhar a minha escolha de reacionária. No Brasil, algo semelhante acontecia com quem pretendesse estudar, nas Universidades, a sociologia de Oliveira Vianna ou a de Gilberto Freyre (1900-1987), nos anos 70 e 80 do século passado. Os nossos dois mais importantes pensadores no terreno da sociologia eram considerados reacionários pelas patrulhas ideológicas que pululavam no meio acadêmico.

Cabe perguntar: por que tanta animosidade com esses pensadores, nos seus respectivos países? A resposta, talvez, seja a que os psicanalistas apresentam quando alguém rejeita, de forma raivosa, uma determinada representação ou circunstância: tentamos banir, com muito zelo, aquilo que nos traz a lembrança do chiqueirinho do inconsciente, deixando à mostra os demônios que não gostaríamos que viessem à luz do sol, porque deixariam a descoberto as nossas vergonhas anímicas. Pois bem: Ortega e Oliveira Vianna puseram o dedo na ferida da decadência política ibérica e ibero-americana, consistente na privatização do espaço público, ou na ausência de espírito público, que é, sem dúvida, a primeira caraterística culturológica do Estado Patrimonial.

Viemos ao mundo da política, espanhóis, portugueses e ibero-americanos, pela mão da tradição patrimonialista que entende o Estado como bem a ser privatizado por uns quantos em detrimento dos outros. Max Weber (1864-1920) tinha caracterizado tal formação política como decorrente da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-los como propriedade familiar ou patrimonial. Ora, a Península Ibérica pós-feudal, bem como os países que nasceram das colônias espanholas e portuguesas pelo mundo afora, estruturaram as suas instituições sobre esse pressuposto. Já Alexandre Herculano (1810-1877) tinha mostrado de que forma na Península Ibérica não houve, ao findar a Idade Média, feudalismo de vassalagem propriamente dito. A mesma análise foi feita, no que tange à Ibero-América por estudiosos da talha de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Octavio Paz, Claudio Véliz, Fernando Uricoechea, Antônio Paim, José Osvaldo de Meira Penna, Simon Schwartzman, etc. A nossa tradição essencial é a do Patrimonialismo e ainda não conseguimos nos libertar dela. Daí a grande atualidade que têm, para os estudiosos latino-americanos especialmente, Ortega e Oliveira Vianna.

Três aspectos desenvolverei neste ensaio: I - Ortega, François Guizot e as categorias sociológicas acerca da democracia; II - Ortega e a privatização do espaço público na Espanha: o vício do particularismo; III - Oliveira Vianna e a privatização do espaço público no Brasil: a política alimentar e o complexo de clã.

I - Ortega, François Guizot e as categorias sociológicas acerca da democracia.

 Foi o pensador espanhol quem primeiro chamou a atenção, lá pelos anos 20 do século passado, para o grande valor dos denominados doutrinários franceses, à cuja testa estava François Guizot (1787-1874). Autores até então desconhecidos da Europa filosófica, Ortega os considerava como de primeira magnitude.

Em La rebelión de las masas, cuja primeira edição data de 1928, escrevia Ortega em relação a essa geração de pensadores-homens-de-ação (ou pensadores engajados, como os chamaria Raymond Aron): “Quando Guizot (...) contrapõe a civilização européia às demais, fazendo notar que nela nunca triunfou de forma absoluta nenhum princípio, nenhuma idéia, nenhum grupo ou classe, e que a isso se deve seu crescimento permanente e seu caráter progressivo, não podemos deixar de ficar atentos. Esse homem sabe o que diz. A expressão é insuficiente porque é negativa, mas suas palavras nos chegam repletas de visões instantâneas. Como do búzio emergente emanam odores abissais, vemos que esse homem vem efetivamente do profundo passado da Europa, onde soube submergir. É incrível, de fato, que nos primeiros anos do século XIX, tempo retórico e de grande confusão, se tenha escrito um livro como Histoire de la civilisation en Europe. O homem de hoje ainda pode aprender nele como a liberdade e o pluralismo são duas coisas recíprocas e como ambas constituem as entranhas permanentes da Europa. Mas Guizot nunca teve boa aceitação, como os doutrinários em geral. Isso não me surpreende. Quando vejo que se dirige a um homem ou a um grupo um fácil e insistente aplauso, surge em mim a veemente suspeita de que nesse homem ou nesse grupo, talvez junto a qualidades excelentes, haja algo excessivamente impuro. Talvez seja erro meu, mas devo dizer que não procurei por ele, foi a experiência que fez com que se fosse decantando dentro de mim. De qualquer forma quero ter o mérito de afirmar que esse grupo dos doutrinários, de quem todo mundo riu e fez comentários depreciativos, é, na minha opinião, o de maior importância que houve na política do continente durante o século XIX. Foram os únicos que viram claramente o que devia ser feito na Europa depois da Grande Revolução e foram, além disso, homens que se mantiveram como pessoas dignas e distantes, em meio à grosseria e à frivolidade crescente daquele século. Estando derrogadas e sem vigência quase todas as normas com que a sociedade contém o indivíduo, este só podia constituir-se uma dignidade se a extraísse do fundo de si mesmo. Dificilmente se consegue fazer isso sem nenhum exagero, embora sendo apenas para se defender da absoluta orgia em que viviam à sua volta. Guizot soube ser, como Buster Keaton, o homem que não ri. Não se entrega jamais. Nele se condensam várias gerações de protestantes extremados que tinham vivido em perpétuo alerta, sem poder deixar-se levar à deriva no ambiente social, sem poder entregar-se. Neles, tinha chegado a converter-se em instinto a impressão radical de que existir é resistir, fincar os calcanhares na terra para se opor à correnteza. Numa época como a nossa, de puras correntezas e abandonos, é bom conhecer homens que não se deixam levar. Os doutrinários são um caso excepcional de responsabilidade intelectual; ou seja, do que mais tem faltado aos intelectuais europeus desde 1750, defeito que, por sua vez, é uma das grandes causas do desacerto atual” [Ortega, 2002: 15-17].

François Guizot representou, a bem da verdade, para o pensamento político ibérico e ibero-americano do século XIX, o marco de referência conceitual do Liberalismo Conservador, um de cujos máximos expoentes no Brasil foi Paulino Soares de Souza (1807-1866), visconde de Uruguai, assim como na Argentina foi Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) e em Portugal Alexandre Herculano (1810-1877). A problemática vivida pelo Império Brasileiro na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro Reinado e ao Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem semelhante à vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida política decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do absolutismo e do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da Restauração, os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito reacionário dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien Régime, e com o bonapartismo, que constituía a versão burguesa do absolutismo; de outro lado, com o jacobinismo revolucionário e o democratismo rousseauniano, que tinham ensejado a Revolução de 1789 e o Terror [cf. Macedo, Vélez, 1996].

A queda do Ancien Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu lugar o homem de letras, certamente um intelectual diferente daquele do Iluminismo, porquanto sensível à realidade histórica de sua época. A sua missão consistiria em erguer um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as luzes de uma religião civil, diferente por certo da proposta por Rousseau, porquanto compatível com uma sociedade estruturada em várias ordens de interesses. Essa nova religião civil deveria garantir a unidade do tecido social, ao redor de uma gama de interesses comuns a todas as classes e os seus dogmas seriam objeto de um processo pedagógico ministrado pelos homens de letras, que teriam, também, funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma nova era) e dirigentes (seriam, ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua época). Françoise Mélonio sintetizou o perfil desses novos líderes, com as seguintes palavras: "Saber para poder, superar a filosofia crítica das Luzes para elaborar os novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas variações, perseguem, Jouffroi como Guizot, Comte, Hugo, Lamartine, Renan ou Renouvier" [Mélonio, 1998: 195].

"Passar a França pós-revolucionária a limpo", esse poderia ter sido o princípio inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto ao nome dessa corrente, assim explica Pierre Rosanvallon o seu significado: "A denominação de doutrinários, que parece ter sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos Deputados, referia-se no início unicamente a Camille Jordan, de Broglie e Royer-Collard. A expressão caracterizará em seguida a corrente indissociavelmente intelectual e política que se estruturará progressivamente ao redor de Guizot, aparecendo este após 1820 como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que um pequeno grupo de parlamentares" [Rosanvallon, 1985: 26, nota 1]. O grupo dos doutrinários encontrou em Madame de Staël e Benjamin Constant de Rebecque as suas figuras precursoras. Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo, "a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários mas é impensável sem eles e corresponde certamente ao corolário de sua obra" [Macedo, 1987: 33].

O projeto político de Guizot correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão, garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e do momento democrático, que se inicia depois de 1848 (...)” [Rosanvallon, 1985: 26].

Tarefa intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot consiste em pensar as novas instituições que garantam, no plano político, o exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não é ato de uma elite intelectual desligada da sociedade. É função de uma elite, sim, pensar os novos conceitos. Mas eles devem se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot aposta num uso social da razão. A propósito, pergunta: "O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um pouco durável, um pouco regular?" E responde: "É preciso, evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo domínio sobre as suas vontades e as suas ações" [Guizot, 1864: 81].

Essa tarefa político-pedagógica é pensada num pano de fundo histórico, inserindo as instituições políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função pedagógico-política do intelectual é fazer descobrir aos franceses a sua própria história. Guizot pretende cumprir esse papel, em relação ao seu país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou estamentos. O pensador francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a esse ponto, escreve Rosanvallon [1985: 199]: "A construção do Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a destruição das ordens fechadas".

As obras de caráter histórico de Guizot têm como finalidade ensinar às classes médias essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a história" [Rosanvallon, 1985: 195]. A inserção da preocupação histórica como parte essencial da tarefa dos intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em geral, à Revolução Francesa. Ao passo que os philosophes do século XVIII davam as costas ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração, (Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la Révolution, a essa crítica), os doutrinários fazem questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscam as raízes da própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana , na qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo, elaborará as categorias dialéticas à luz das quais passou a ser interpretada a problemática social no seio do Liberalismo francês. Guizot entende a sociedade européia numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos identifica a essência da realidade como fundamentalmente dialética.

No terreno da história da cultura, o pensador francês considera que a civilização européia é fruto do confronto entre dois princípios: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot escreve: "(...) Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (....). A Europa tratava de sair desse estado (...). Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobre tudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade de imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de barbárie (...)" [Guizot, 1864: 82-83].

Esses dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência histórica concreta. O pensador francês acha que essa foi a missão dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno. Em relação a esses importantes atores da história humana, frisa Guizot: "(..) Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como se estes constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde tirânico, e que comete mil iniquidades, mil erros, pois é acompanhado pela fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento" [Guizot, 1864: 84].

No terreno sócio-político, Guizot considera que a realidade da Europa é constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês é consciente de que a época é a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Esta deve acordar e despertar a sua consciência de que se trata de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado claramente o conceito da consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Plekhanov , aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considera-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que é chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribui à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.

A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçam o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consiste, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que é fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emerge o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo representativo, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França quanto no Brasil. Só para lembrar um exemplo dessa influência, Assis Brasil definia a representação como a média da opinião.

Os conceitos fundamentais que formarão, a partir do século XIX, o pano de fundo da sociologia moderna (classe social, consciência de classe, política como luta de classes, as massas como personagens da história, elite, o papel dos grandes homens na formação das elites, o papel da comunicação – através da imprensa – na circulação de idéias e na formação da opinião pública) foram, certamente, sistematizados por François Guizot. Os discípulos dos doutrinários (sendo o principal deles Alexis de Tocqueville), dedicar-se-iam a analisar a problemática da democracia utilizando esses conceitos e destacando os perigos que rondavam o convívio democrático, sendo o principal deles o do despotismo da maioria. Mas justamente Tocqueville considerava que a melhor forma de evitar esse risco consistia em desenvolver, no seio da sociedade, o sentido histórico e a dimensão do interesse bem compreendido, o que só poderia acontecer mediante a ação benfazeja de pensadores-homens-de-ação que a alertassem para os riscos da massificação pura e simples. É o tema que Tocqueville vai desenvolver na Segunda Democracia na América, publicada em 1840 [Tocqueville, 1992: 509-581].

Ortega y Gasset fará a aplicação dos conceitos desenvolvidos pela sociologia de Guizot e Tocqueville à realidade da democracia do século XX, levando em consideração especialmente a experiência espanhola. Esse é o conteúdo fundamental de La rebelión de las masas. O pensador espanhol, certamente, dará à sua análise um alcance filosófico que nem Tocqueville nem Guizot conseguiram encetar às suas respectivas abordagens. Eles, afinal, eram o que se denominava no século XIX de publicistas. Ortega faz, do lado espanhol, trabalho de fundamentação filosófica dos conceitos dos doutrinários, semelhante ao desenvolvido na França por Raymond Aron (1905-1983).

Para Ortega, há um ator da política moderna: as massas. Não adiante querer retrotrair o fio da história para que as coisas se passem hoje diferentemente de como são. As massas, essas são as estrelas da história contemporânea. A respeito, frisa o pensador espanhol: “Há um fato que, seja para o bem ou para o mal, é o mais importante na vida pública européia do momento. Esse fato é o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem nem podem dirigir sua própria existência, e muito menos reger a sociedade, a Europa enfrenta atualmente a crise mais grave que possa ser enfrentada por povos, nações ou culturas. Essa crise já aconteceu várias vezes no curso da história. Suas características e suas conseqüências já são conhecidas. Também já se conhece seu nome. Chama-se a rebelião das massas” [Ortega, 2002: 41]. Em outro lugar da obra que Ortega dedica ao estudo dessa crise, afirma: “De repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro” [Ortega, 2002: 43].

 Se essa é a realidade, convém pensar em que condições esses protagonistas poderão salvaguardar os valores da civilização ocidental. É necessário levar em consideração os riscos que a democracia de massas apresenta à liberdade. O primeiro consiste em fazer das massas uma abstração. O homem-massa está situado historicamente, é fruto do seu momento. E a conquista da liberdade, bem como a construção da civilização, para ele, deve-se desenvolver levando em consideração as suas peculiaridades culturais, passo a passo, construindo e testando instituições jurídicas e políticas que lhe garantam efetivamente os seus direitos. Ortega rejeita a concepção metafísica de direitos humanos, de forma semelhante a como os doutrinários faziam. O grande problema ensejado pelos totalitarismos do século XX, consistiu em ter imaginado o homem, indistintamente, como o coletivo. A respeito da visão diferenciada das comunidades humanas que os doutrinários tinham, frisa: “(Os doutrinários) teriam reconhecido o direito à greve (não política) e o contrato coletivo. Para um inglês isso seria óbvio; mas nós, continentais, ainda não chegamos a esse estágio. Talvez estejamos, desde o tempo de Alcuíno, pelo menos cinqüenta anos atrasados em relação aos ingleses” [Ortega, 2002: 19].

O pensador espanhol faz suas as palavras de Royer-Collard quando afirmava: “As liberdades públicas nada mais são que resistências”. Comentando essa asserção, Ortega frisa: “Encontra-se aqui, mais uma vez, a melhor inspiração européia reduzindo a dinamismo todo o estático. O estado de liberdade é o resultado de uma pluralidade de forças que se resistem mutuamente. Mas os discursos de Royer-Collard são tão pouco lidos atualmente que parecerá até inoportuno dizer que são maravilhosos, que sua leitura é uma pura delícia de intelecção, que é divertida e até prazerosa, e que constituem a última manifestação do melhor estilo cartesiano” [Ortega, 2002: 18, nota 10].

O segundo risco da atual sociedade de massas, consiste em que estas tornaram-se indóceis. Já não há, como nos tempos dos Gregos, como na Renascença ou na Idade Média, um magistério moral que se incumba de assinalar os linhas mestras do comportamento social. As massas pretendem, elas próprias, definir a sua pauta de ação. É a ditadura da opinião pública. A respeito, escreve Ortega: “O mundo organizado pelo século XIX, ao produzir automaticamente um homem novo, deu-lhe apetites formidáveis, meios poderosos de toda ordem para satisfazê-los – econômicos, corporais (higiene, saúde média superior à de todos os tempos), civis e técnicos (entenda-se por estes a enormidade de conhecimentos parciais e de eficiência prática que tem hoje o homem médio e de que sempre careceu no passado). Depois de lhe ter dado essas potências todas, o século XIX o abandonou a si próprio, e então, seguindo sua índole natural, o homem médio se fechou dentro de si. Desse modo nos encontramos com uma massa mais forte do que a de nenhuma outra época, mas diferente da tradicional, fechada em si mesma, que não atende a nada nem a ninguém, acreditando que se basta a si própria – em suma: indócil” [Ortega, 2002: 98].

O terceiro risco da sociedade de massas consiste no fechamento das culturas nacionais sobre si mesmas, impedindo o diálogo entre as diferentes manifestações da civilização e tentando rejeitar o diferente. O drama da Segunda Guerra Mundial deu-se ao ensejo desse isolacionismo cultural. Essa situação, no sentir de Ortega, afeta principalmente à Europa. O pensador espanhol antevia, no meio ao segundo conflito mundial, a grande tarefa que se abria para os europeus na segunda metade do século XX: construir a unidade continental. Em relação a este ponto, escreve: “A situação autêntica da Europa, portanto, seria esta: seu passado longo e magnífico faz com que chegue a uma nova etapa de vida onde tudo cresceu; mas, ao mesmo tempo, as estruturas sobreviventes desse passado são anãs e impedem sua atual expansão. A Europa foi feita na forma de pequenas nações. De certa forma, a idéia e o sentimento nacionais foram sua invenção mais caraterística. E agora se vê obrigada a superar a si própria. Este é o esquema do enorme drama que vai se desenrolar nos anos vindouros. Saberá se libertar de sobrevivências, ou ficará prisioneira delas para sempre? Porque já aconteceu uma vez na história uma grande civilização ter morrido por não poder substituir sua idéia tradicional de Estado...” [Ortega, 2002: 185].

O quarto risco que corre a sociedade de massas é a ação direta, que consiste mais ou menos no que Tocqueville entendia como despotismo da maioria. Se a massa está compacta na sua opinião, seja banida a dissidência. Se a massa é unânime, seja banida a moral que escolhe meios para chegar ao fim almejado. Se a finalidade é a vida social justa, ou a felicidade coletiva, todos os meios são permitidos. É o democratismo. É a ética totalitária. A respeito, escreve Ortega: “Quando se reconstruir a gênese de nosso tempo, se observará que as primeiras notas de sua peculiar melodia soaram naqueles grupos sindicalistas e realistas franceses por volta de 1900, inventores da maneira e palavra ação direta. O homem sempre recorreu à violência: algumas vezes esse recurso era simplesmente um crime, e não nos interessa. Outras vezes a violência era o meio a que se recorria depois de se terem esgotado todos os outros para defender a razão e a justiça que se acreditava ter. É extremamente lamentável que a condição humana leve algumas vezes a essa forma de violência, mas é inegável que ela significa a maior homenagem à razão e à justiça. Uma vez que tal violência não é outra coisa senão a razão exasperada. A força era, de fato, a última ratio. De forma pouco inteligente, esta expressão tem sido entendida com uma certa ironia, deformando-se seu sentido original que declara muito bem o prévio rendimento da força às normas racionais. A civilização não é outra coisa senão a tentativa de reduzir a força à ultima ratio. Agora começamos a enxergar isso com extrema clareza, porque a ação direta consiste em inverter a ordem e proclamar a violência como prima ratio; a rigor, como única razão. Ela é a norma que propõe a anulação de toda norma, que suprime todo interregno entre nosso propósito e sua imposição. É a Charta Magna da barbárie” [Ortega, 2002: 107].

A sociedade de massas, para não se petrificar em unanimidade anódina, precisa de uma liderança que a projete para o futuro. Não se trata, certamente, de um processo vertical de dominação política de um grupo ou de uma classe sobre outra. Trata-se, no sentir de Ortega, mais de um processo de liderança moral que empolgue o organismo social. Os intelectuais engajados teriam, nesse contexto, um papel importante. Dois projetos Ortega enxerga para as sociedades na Europa: o primeiro, a construção, a partir das cinzas deixadas pela Segunda Guerra Mundial, da unidade européia. O segundo, a partir do progressivo declínio da Espanha nos últimos quatro séculos, a ressurreição do élan de que foi portadora Castela no mundo hispânico, de um ideal humanístico e aberto ao futuro, que consiga congregar espiritualmente os povos de tradição ibérica. O pensador espanhol apostava no surgimento de uma Comunidade Ibero-Americana de Nações, que se enraizaria numa tradição cultural comum. Convenhamos que ambas as idéias, a Europa Unida e a Comunidade Ibero-Americana, são de tremenda atualidade e marcam a pauta do agir comum da Espanha no Velho Continente e no Novo Mundo. Propostas ecumênicas, tão do agrado de um pensador que não conhecia limites nacionais para a sua aventura intelectual.

Terminemos estas considerações acerca da forma em que Ortega entronca com a tradição doutrinária, destacando o valor que atribui ao liberalismo como manifestação mais civilizada da política. Mas não se trata de um liberalismo puramente individualista ou utilitarista à maneira manchesteriana. Trata-se, sim, do liberalismo dos doutrinários, repensado no contexto da democracia moderna por Tocqueville, muito próximo, portanto, do que professa Raymond Aron e do que são os ideais hodiernos do denominado liberalismo social. A respeito, Ortega frisa: “A forma política que representa a maior vontade de convivência é a democracia liberal. Ela leva ao extremo a decisão de levar em conta o próximo e é o protótipo da ação indireta. O liberalismo é o princípio de direito político segundo o qual o Poder público, mesmo sendo onipotente, se limita a si mesmo e procura, mesmo à eventual custa de sua existência, deixar lugar no Estado em que ele impera para que possam viver os que nem pensam nem sentem como ele, isto é, da mesma forma que os mais fortes e a maioria. O liberalismo – é conveniente que se recorde - é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o grito mais nobre que já soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo fraco. Era inverossímil que a espécie humana tivesse chegado a uma coisa tão bela, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso não é de surpreender que prontamente essa mesma espécie pareça resolvida a abandoná-la. É um exercício demasiadamente difícil e complicado para que se consolide na terra. Conviver com o inimigo! Governar com a oposição! Já não começa a ser incompreensível semelhante ternura? Nada demonstra com maior clareza a fisionomia do presente como o fato de que já vão sendo poucos os países onde existe oposição. A massa – quem diria ao ver seu aspecto compacto e multitudinário? - não deseja a convivência com o que não é ela. Odeia mortalmente o que não é ela” [Ortega, 2002: 108-109].

II - Ortega e a privatização do espaço público na Espanha: o vício do particularismo.

Ortega considera que a unidade e a dinâmica imprimidas à sociedade espanhola por Castela no início do século XVI, terminaram se enfraquecendo com o correr dos séculos. Isso ocorreu pelo vício do particularismo em que caíram os vários grupos integrantes da comunidade nacional. O fenômeno é assim definido por Ortega: “A essência do particularismo consiste em que cada grupo deixa de se sentir a si mesmo como parte, e, consequentemente, deixa de compartir os sentimentos dos demais. Não mais lhe importam as esperanças ou necessidades dos outros e não se solidarizará com eles para os auxiliar no seu afã. Como o vexame que por acaso sofre o vizinho não irrita por simpática transmissão aos demais núcleos nacionais fica este abandonado à sua desgraça e debilidade. Ao contrário, é caraterística desse estado social a hipersensibilidade em face dos próprios males. Frustrações ou dificuldades que, em tempos de coesão, são facilmente suportados parecem intoleráveis quando a alma do grupo desintegrou-se do convívio nacional” [Ortega, 1981: 47].

Responsável primeira do fenômeno de desagregação foi, na Espanha, a Monarquia, pois “quando uma sociedade se consome vítima do particularismo, pode sempre se dizer que o primeiro em se mostrar particularista foi precisamente o Poder central” [Ortega, 1981: 48]. O poder público passou, na Espanha, a servir interesses particulares e, em decorrência disso, particularizou-se. É interessante observar que o fenômeno apontado por Ortega casa perfeitamente com a análise que, à luz da teoria do Patrimonialismo de Weber e de Karl Wittfogel, pode ser feita da sociedade espanhola (como, de resto, poderia ser feita da sociedade portuguesa e das sociedades ibero-americanas).

Os sociólogos alemães certamente assinariam embaixo da seguinte caracterização feita por Ortega da privatização do poder ocorrida na Espanha: “Monarquia e Igreja obstinaram-se em fazer adotar os seus destinos próprios como os verdadeiramente nacionais; fomentaram, geração após geração, uma seleção inversa na raça espanhola. Seria curioso e cientificamente fecundo fazer uma história das preferências manifestadas pelos reis espanhóis na seleção das pessoas. Ela mostraria a incrível e continuada perversão de valorações que os levou, quase indefectivelmente, a preferir os homens tontos aos inteligentes, os aviltados aos retos. Ora, o erro habitual, inveterado, na eleição de pessoas, a preferência reiterada do ruim por cima do excelente, é o sintoma mais evidente de que não se quer de verdade fazer nada, empreender nada, criar nada que sobreviva logo por si mesmo. Quando se tem o coração cheio de uma alta finalidade, acaba-se sempre por buscar os homens mais capazes para torná-la realidade. Em lugar de renovar periodicamente o tesouro de idéias vitais, de modos de coexistência, de empresas unificadoras, o Poder público foi triturando o convívio espanhol e usou a sua força nacional quase exclusivamente para fins privados” [Ortega, 1981: 49-50].

Como conseqüência desse longo processo de atomização e de perda de identidade, a Espanha que Ortega encontra na primeira metade do século XX, é uma colcha de retalhos de interesses particulares que se ignoram mutuamente. Cada grêmio acha que é ele, sozinho, a encarnação da Nação e age como se os outros não existissem. É o particularismo na sua tragicidade.

O pensador espanhol retrata esse estado caótico assim: “a vida social espanhola oferece, nos nossos dias, um exemplo extremado desse feroz particularismo. Há, na Espanha, mais do que uma nação, uma série de compartimentos estanques. Afirma-se que os políticos não se preocupam pelo resto do país. Isso, que é verdade, é, contudo, injusto, porque parece atribuir exclusivamente aos políticos semelhante despreocupação. A verdade é que se para os políticos não existe o resto do país, para o resto do país existem muito menos os políticos. E que acontece nesse resto não político da nação? Por acaso o militar preocupa-se com o industrial, com o intelectual, com o agricultor, com o operário? E o mesmo deve ser dito do aristocrata, do industrial e do operário em face das demais classes sociais. Cada grêmio vive hermeticamente fechado dentro de si mesmo. Não sente a menor curiosidade pelo que se passa na casa dos outros. Rodam uns sobre outros como esferas estelares que se ignoram mutuamente. Polarizado cada um nos seus tópicos gremiais, não tem a notícia mais mínima dos ideais que regem a alma do grupo vizinho. Idéias, emoções, valores criados no seio de um núcleo profissional ou de uma classe, não transcendem de forma alguma às restantes. O esforço titânico que se exerce num ponto do volume social não é transmitido nem obtém repercussão uns metros mais adiante, e morre onde nasce. Difícil será imaginar uma sociedade menos elástica que a nossa. Quer dizer, difícil será imaginar um conglomerado humano que seja menos uma sociedade. Podemos dizer de toda Espanha o que Calderón dizia de Madri numa das suas comédias: Está una pared aquí / de la otra más distante / que Valladolid de Gante”[Ortega, 1981: 54-55].

A conseqüência imediata do particularismo, no plano da dinâmica social, é a ação direta, que consiste em cada um agir como se os demais grupos não existissem. Ortega traça, de forma magistral, um quadro da psicologia do particularismo, que bem poderia se aproximar da caracterização do espírito de patota, feita por sociólogos brasileiros como Raymundo Faoro ou José Osvaldo de Meira Penna, inspirados nas categorias weberianas. Vale a pena citar a caracterização elaborada pelo sociólogo espanhol: “A psicologia do particularismo que intentei delinear poderia ser resumida dizendo que o particularismo apresenta-se sempre que no seio de uma classe ou grêmio, por uma ou outra causa, produz-se a ilusão intelectual de crer que as demais classes não existem como plenas realidades sociais ou, quando menos, que não merecem existir. Falando ainda mais simplesmente: particularismo é aquele estado de espírito segundo o qual cremos não termos por quê contar com os demais. Umas vezes, por excessiva autoestima, outras por excessivo menosprezo do próximo, perdemos a noção dos nossos próprios limites e começamos a nos sentirmos como todos independentes. Contar com os demais supõe perceber, se não a nossa subordinação a eles, pelo menos a mútua dependência e coordenação em que com eles convivemos. Ora, uma nação é, em última instância, uma grande comunidade de indivíduos e de grupos que contam uns com os outros. Esse contar com o próximo não implica necessariamente em simpatizar com ele. Lutar com alguém não é uma das mais claras formas em que demonstramos que esse alguém existe para nós? Nada é mais parecido ao abraço do que o combate corpo-a-corpo” [Ortega, 1981: 58-59].

III - Oliveira Vianna e a privatização do espaço público no Brasil: a política alimentar e o complexo de clã.

Em Instituições políticas brasileiras, que é a obra plenamente amadurecida de Oliveira Vianna, o autor salienta um fato definitivo: os Estados modernos encaminham-se à democracia. Desse destino não pode escapar o Brasil. A Segunda Guerra Mundial foi o divisor de águas que mostrou ao mundo as enormes possibilidades da democracia, capaz de enfrentar o totalitarismo nazi-fascista. Os eventos ocorridos na restante parte do século viriam confirmar ainda mais a idéia do sociólogo fluminense: as democracias ocidentais mostrariam, mais uma vez, a sua força, com a derrubada – desde dentro, sem que fosse disparado um tiro sequer – do Muro de Berlim e do Império Comunista Soviético.

Na tipologia dos Estados, considera Oliveira Vianna que surgiu primeiro o Estado-aldeia, tendo sido seguido pelo Estado-cidade e pelo Estado-império. O Estado-nação é a forma moderna de organização política. A manifestação mais acabada desta na Europa seria, para Oliveira Vianna, a França, país “onde não há realeza e a nobreza, embora sobre-existindo, não tem privilégio algum”. Na América, a concretização mais perfeita do Estado-nação seriam os Estados Unidos, “único país do mundo onde a democracia impera sem contraste e o povo é realmente soberano”. No ambiente das idéias evolucionistas em que se deu a sua formação, Oliveira Vianna não tinha dúvidas quanto à universalidade que hoje deveria ter o Estado-nação democrático. A respeito, frisa: “Tudo mostra (...) que o mundo vai caminhando para um só tipo de Estado: o Estado nacional de base democrática. Este é justamente o grande problema, que esta nova concepção política do ocidente criou para os povos modernos”. Oliveira Vianna enxerga um problema nessa tendência do mundo moderno ao Estado nacional e democrático, porquanto “educados nas tradições do Estado-império, do Estado-aldeia e do Estado-cidade, estes povos não o estariam igualmente para este novo tipo de Estado, que a Revolução de 1789 lhes deu. E nos esforços desesperados para se ajustarem a este tipo novo é que está a causa última da Crise do Estado Moderno”.

O problema específico do Brasil é que o nosso país surgiu ao mundo da política a partir do engenho e da casa-grande, ou seja, a partir de uma instância em que o poder tinha sido privatizado pelos clãs senhoriais. Quando, no final do século XVII, Portugal tentou estabelecer uma disciplina centralizadora, ao ensejo da descoberta das minas de ouro e diamante, teve muita dificuldade para reduzir à obediência à Coroa os indóceis senhores de engenho. O processo centralizador do Império, já no século XIX, deu-se como cooptação dos senhores de engenho. A estrutura do poder fazia do Imperador, portanto, o Pater famílias supremo, sendo a Guarda Nacional (a maior estrutura preburocrática do Hemisfério Ocidental, segundo lembra Fernando Uricoechea) o instrumento através do qual se realizava a cooptação.

O Brasil conheceria um segundo momento centralizador, quando do desenvolvimento das reformas modernizadoras de Vargas, ao longo da sua diuturna permanência no poder, entre 1930 e 1945 e, posteriormente, entre 1951 e 54. Novo momento de cooptação, sendo o país governado com mão de ferro pelo Executivo hipertrofiado, com ajuda dos Conselhos Técnicos Integrados à Administração. Mas, frisa Oliveira Vianna, a tendência íntima do brasileiro é a de privatizar o poder em benefício próprio ou do seu clã. O grande problema da classe política é também esse, a prática do que o sociólogo fluminense denomina de política alimentar. É, sem dúvida nenhuma, uma forma de particularismo, vício que, como vimos, Ortega encontrava na sociedade espanhola.

Nos momentos de desconcentração do poder, Oliveira Vianna considerava que acirrava-se o princípio privatizante, à luz da retórica liberal. Isso aconteceu no final do Primeiro Reinado, até o Ato Adicional e o Regresso (1841), bem como na República Velha, entre 1891 e 1930. A sociedade brasileira, emergente do latifúndio, é fundamentalmente insolidária. A respeito, frisa Oliveira Vianna: “O deserto e o trópico, a escravidão e o domínio independente: sob a ação dessas quatro forças transmutadoras, o laço feudal, a hierarquia feudal transportada para aqui nos primeiros dias da colonização, se desarticula, desintegra, dissolve e uma nova sociedade se forma com uma estrutura inteiramente nova. O feudalismo é a ordem, a dependência, a coesão, a estabilidade: a fixidez do homem à terra. Nós somos a incoerência, a desintegração, a indisciplina, a instabilidade: a infixidez do homem à terra. Em nosso meio histórico e social, tudo contraria, pois, a aparição do regime feudal. Dele o que existe é um arremedo apenas. É o feudalismo achamboado, de que fala um historiador” [Vianna, 1973: 158].

Qual é o grande problema sócio-político brasileiro? Oliveira Vianna considera que é a falta de espírito público, que leva todo mundo a querer privatizar as instituições de governo como botim a ser distribuído entre amigos e apaniguados. A propósito, o sociólogo fluminense escreve em Instituições políticas brasileiras: “Em toda essa psicologia da vacuidade ou ausência de motivações coletivas da nossa vida pública, há um traço geral que só por si bastaria para explicar todos os outros aspectos. (...) Este: a tenuidade ou fraqueza da nossa consciência do bem coletivo, do nosso sentimento da solidariedade social e do interesse público. Esta tenuidade ou esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse coletivo é que nos dá a razão científica do fato de que o interesse pessoal ou de família tenha, em nosso povo – no comportamento político dos nossos homens públicos – mais peso, mais força, mais importância determinante, do que as considerações do interesse coletivo ou nacional. Este estado de espírito tem uma causa geral (...): e esta razão científica é a ausência da compreensão do poder do Estado como órgão do interesse público. Os órgãos do Estado são para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma força posta à sua disposição para servir aos amigos e aos seus interesses, ou para oprimir os adversários e os interesses destes” [Vianna, 1974: 297].

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