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O DESCONHECIMENTO DA NOSSA IDENTIDADE HISTÓRICA E COMO RECONSTITUÍ-LA, SEGUNDO ANTÔNIO PAIM

O DESCONHECIMENTO DA NOSSA IDENTIDADE HISTÓRICA E COMO RECONSTITUÍ-LA, SEGUNDO ANTÔNIO PAIM

ANTÔNIO PAIM, HISTORIADOR DAS IDEIAS (1927-2021)

Consolidou-se, há bastante tempo, o princípio geral da História da Cultura, formulado por François Guizot (1787-1874), de que se algum país quisesse se preparar, na Modernidade, para ocupar o seu lugar no mundo, precisaria primeiro conhecer a sua identidade, no seio de uma tarefa cultural para encontrar os fatos que revelam as suas origens, a fim de ajustar as novas instituições e preparar as próximas gerações no conhecimento da sua identidade histórica, que é eminentemente factual e não abstrata. O caminho a ser seguido pelos intelectuais era o da historiografia. Isso pensava o sociólogo e historiador, pai ao mesmo tempo da historiografia e da sociologia francesas, que sintetizou as suas diretrizes nesse clássico da ciência política moderna que é a História da Civilização na Europa, desde a queda do Império Romano até a Revolução Francesa, cuja primeira edição data do final da década de 1820 [cf. Guizot, 1864]. 

Com disciplina de aço e escutando a voz da razão que o levava a mergulhar nas sombras das origens francesas, Guizot historiou o percurso das instituições medievais até as que se consolidaram na Modernidade, ao redor do absolutismo de Luís XIV (1638-1715). O grande historiador e estadista, que viveu na própria família as desgraças revolucionárias ensejadas pela “salvação” ideológica rousseauniana, pôs em marcha a enorme tarefa de delinear os caminhos quando a França, recentemente saída das sombras da Revolução de 1789 e do Terror jacobino, viu como o seu país, por ter ignorado o passado, repetiu novamente o erro da Ilustração Jacobina, tendo enveredado pela via do absolutismo napoleônico e pela reedição da monarquia borbônica. O que tinha faltado aos Franceses nessa quadra da história era conhecer as suas reais origens, tarefa menosprezada pelos Enciclopedistas que somente buscavam causas gerais que se acomodassem à sua ideologia, sacrificando os fatos da vida real à imaginação pretensamente libertadora. 

A maior crise que assoberba na contemporaneidade ao Brasil consiste, como na França do século XIX, na perda de sentido da nossa história, potencializada nas suas origens pelo despotismo ilustrado pombalino e, depois, pelo tradicionalismo, pelo positivismo e pelo cientificismo marxista que fizeram pouco caso dos fatos históricos, tendo-os substituído pela narrativa ideológica. O vício não é de hoje, conforme salientou Alexis de Tocqueville (1805-1859), quando criticou com força o despropósito dos Enciclopedistas, que queriam narrar a história como versão simplória de fatos gerais, facilmente vendáveis aos consumidores de narrativas comerciais. 

A complexidade da História foi, simplesmente, substituída por conceitos emergentes, que reduziam a intrincada trama das relações sociais à simples polarização entre princípios gerais opostos, como aristocracia e burguesia. A propósito de tal simplificação, escreve Tocqueville: “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências inteiramente contrárias. A maior parte deles quase não atribui influência alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie nem aos cidadãos sobre a sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos particulares (...). Quando (...) todos os cidadãos são independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre ninguém que exerça um poder muito grande nem, sobretudo, muito durável sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos aparecem absolutamente impotentes em relação a ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo concurso livre e espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito humano a procurar a razão geral que pode, assim, atingir a um tempo tantas inteligências e voltá-las simultaneamente para o mesmo lado” [Tocqueville, 1977: 375].

Do ângulo antropológico, o problema fundamental que apresenta esse tipo de historiografia consiste, no sentir de Tocqueville, na escolha de uma concepção determinista do homem. A respeito, frisa: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie cega de fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, a sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas das outras e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos; comprazem-se ainda em mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho” [Tocqueville, 1977: 377].

Tocqueville previa a entropia que o historicismo provocaria na cultura humana do século XX, à sombra do dogmatismo totalitário. Se o determinismo é a regra dos atos humanos, a fatalidade é senhora da história e a liberdade pessoal desaparece. A respeito, afirma: “Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus leitores, penetrasse assim em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: que semelhante doutrina é particularmente perigosa à época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem de boa vontade força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa ideia, pois se trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua destruição” [Tocqueville, 1977: 177].

Antônio Paim destaca o imperativo que se apresenta hoje aos intelectuais brasileiros: a necessidade da crítica ao cientificismo marxista e da valorização da história como reconstituição dos fatos que sedimentaram as nossas origens. A propósito, escreveu o Mestre na sua obra Momentos decisivos da história do Brasil: “Nenhuma historiografia participante pode sustentar-se. A renovação do conhecimento histórico pressupõe a preservação do terreno percorrido. No caso brasileiro, o exemplo magnífico dessa postura encontra-se na revisão e complementação da História geral do Brasil, de Adolfo Varnhagen (1816-1878), efetivada por Capistrano de Abreu (1853-1927) e Rodolfo Garcia (1878-1949). O abandono desse projeto, primeiro de parte dos tradicionalistas e depois dos marxistas, não trouxe qualquer enriquecimento significativo. Ao contrário, tais iniciativas só serviram para abrir o flanco à emergência de uma camada intelectual, caracterizada pela incultura, fenômeno que já havia (sido) percorrido durante a Revolução Francesa, sendo precisamente para esse grupo social que Napoleão Bonaparte (1769-1821) cunhou a expressão baixo clero. Esse elemento apropriou-se do ensino da disciplina e da confecção de compêndios permitindo-se toda sorte de enormidades, fazendo desaparecer o status da historiografia. Assim, a reconquista da dignidade da historiografia pressupõe a remoção de todo o lixo produzido em nome da colocação da história (e de todo o saber) a serviço da luta política. Desse modo, o primeiro passo afirmativo da filosofia culturalista da história – em relação ao seu antecedente neokantiano, de que se pretende herdeira – consiste na tese de que a historiografia constitui uma objetividade que é permanente, sem embargo de que possa e deva ser enriquecida, na medida mesma em que a própria historiografia se proponha preservá-la” [Paim, 2014: 28-29].

Desenvolverei neste ensaio três itens: 1 – Um fato marcante: o atraso que afeta às nossas Universidades na divulgação das pesquisas na área de ciências humanas. 2 – A proposta de Antônio Paim: difundir as obras fundamentais da nossa historiografia. 3 – As principais obras de autores estrangeiros na Coleção Brasiliana, segundo Antônio Paim.

1 – Um fato marcante: o atraso que afeta às nossas Universidades na divulgação das pesquisas na área de ciências humanas. 

Pesquisa recente efetivada pelo professor Marcelo Hermes Lima, da Universidade de Brasília, mostra o tremendo atraso em que nos encontramos, no Brasil, no que tange à divulgação das pesquisas realizadas nas Universidades, notadamente na área de Ciências Humanas, sendo a Historiografia uma das áreas mais afetadas [cf. Lima, 2019]. A respeito da situação em que se encontra a pesquisa historiográfica brasileira, em comparação com o desenvolvimento dessa disciplina no terreno internacional, frisa o autor: “Em termos de internacionalização, as revistas da UK e EUA apresentam um índice médio do 27%, significativamente maior que as revistas brasileiras (8,4%). Caso observemos o ranking em impacto (em CPP), ficamos em 36º lugar entre 41 países que produziram, pelo menos, 100 publicações no ano. Os 423 artigos do Brasil renderam, apenas, 24 citações (CPP=0,06). A Noruega ficou em 1º em impacto (CPP 0,34). Caso utilizemos o índice Rank-Score de impacto, que avalia 0 (zero) para o último lugar e 10 para o 1º, (...), o valor médio, entre 2008 e 2018, resultou em 1,0 de Rank-Score. Repitamos: nosso Score (de 0 a 10) foi 1! Caso façamos uma comparação com a Argentina e Portugal em 2018 (17º e 27º lugares no ranking CPP, respectivamente), verificamos que esses países apresentaram Rank-Score de 5,8 e 3,4, valores baixos, mas substancialmente maiores que o do Brasil. (...). Em que pese o fato da natureza das publicações brasileiras em história e, também, o baixo impacto da língua portuguesa em relação à inglesa, além de percebermos o baixíssimo impacto de nossa produção em relação a Portugal e Argentina, é constatação inegável a gradativa perda qualitativa da nossa produção histórica nos últimos anos (i. e., queda no impacto no período 2008-2018). Nossos trabalhos em História são cada vez mais ignorados” [Lima, 2019].

Acerca do fator que causaria esse fenômeno, frisa o citado autor: “Uma possível explicação para isso é o aumento substancial da importância dos aspectos teórico-metodológicos em detrimento dos conteúdos propriamente históricos, característica quase que exclusiva do ensino de História em nosso país. Mas isso não pode ser quantificado cientometricamente, admitamos. Seja como for, para qualquer solução proposta para esse pouco valor de nossa produção histórica, é fundamental que saibamos nossa ínfima posição no mundo acadêmico internacional” [Lima, 2019].

Acerca do fator que causaria esse fenômeno, frisa o autor: “Uma possível explicação para isso é o aumento substancial da importância dos aspectos teórico-metodológicos em detrimento dos conteúdos propriamente históricos, característica quase que exclusiva do ensino de História em nosso país. Mas isso não pode ser quantificado cientometricamente, admitamos. Seja como for, para qualquer solução proposta para esse pouco valor de nossa produção histórica, é fundamental que saibamos nossa ínfima posição no mundo acadêmico internacional” [Lima, 2019].

Decorre essa falha do enorme nível de endogamia que afeta às entidades universitárias, na elaboração e difusão do conhecimento. Por endogamia entendamos como "mais do mesmo". Ou seja: os centros de pesquisa têm horror a admitir pesquisadores de fora, ou a divulgar os conhecimentos para o grande público de pesquisadores em escala global. A opção mais corriqueira é em prol de constituir "clubes fechados" em que grupos de pesquisadores, que pensam de forma semelhante, citam outros que pensam de maneira semelhante, impedindo que a dimensão crítica se instale dentro dos centros difusores do saber. Avaliação institucional externa, como se faz em muitas Universidades do mundo desenvolvido, no Brasil é simplesmente um atentado contra a cultura, a “autonomia universitária” e a ciência. A pontuação levada em consideração pelos organismos avaliadores situados na CAPES, no CNPQ e nas próprias Universidades, privilegia a circulação endogâmica de informações, sendo a abertura a pesquisadores de fora praticamente inexistente. 

A situação piorou notavelmente ao longo dos últimos vinte anos, com o domínio que, nas áreas das ciências humanas ganhou o gramscismo acadêmico, essa espécie de positivismo marxista que assoberba o espaço do ensino superior nos dias que correm. Isso nos afeta profundamente, em termos de valorização das pesquisas brasileiras, bem como na seara da classificação da qualidade acadêmica, realizada por organismos internacionais. Afinal de contas, a inteligência não tem fronteiras e a constituição de pequenos clubes fechados afeta quem pratica esse tipo de alfândega cultural.

2 – A proposta de Antônio Paim: difundir as obras fundamentais da nossa historiografia.

Com a finalidade de arejar o debate acadêmico na área da historiografia, o professor Antônio Paim propôs, na sua obra intitulada: Brasiliana breve – Uma coleção para difundir a historiografia nacional [Paim, 2019], retomar o valioso trabalho desenvolvido pelo Conselho Editorial do Senado, nos últimos quinze anos, sob a direção de Joaquim Campelo Marques, visando a difundir as obras fundamentais que marcaram o curso da nossa historiografia como país independente, nas denominadas "Coleções Brasilianas". 

Lembra o professor Paim que essa iniciativa foi precedida pelo trabalho desenvolvido, no século passado, pela Companhia Editora Nacional. A respeito, frisa: "Em seu nascedouro, as Coleções Brasilianas eram basicamente coletâneas de livros sobre o Brasil. Posteriormente adquiriu maior amplitude, para incluir outros tipos de expressão da nacionalidade, como jornais, volantes, retratos, mapas, gravuras, pinturas e outros. A pioneira Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, teve início nos anos trinta do século passado, presumivelmente em decorrência do surto nacionalista que vinha a assumir, com a Revolução de 30, um papel central na vida do país, ultrapassando de muito as dimensões de seus antecedentes mais notórios como o tenentismo, por sua vez herdeiro do republicanismo de inspiração militar. A Brasiliana chegou a editar 204 títulos, sendo que o último anunciava uma nova série, denominada 'grande formato' que não chegou a estruturar-se. Teve como sucedâneas as coleções Documentos Brasileiros, da Editora José Olímpio e a Reconquista do Brasil, da Editora Itatiaia, que mantiveram a feição original, isto é, limitadas a coletâneas de livros. A Reconquista do Brasil editou 217 volumes, subdivididos em três séries, sendo que as duas últimas tiveram numeração autônoma" [Paim, 2019: 13-14]. 

O professor Paim queria dar continuidade a esse trabalho, mas lhe assinalando outro caráter, de tipo didático. Propunha denominar de "Brasiliana Breve" uma nova coleção, que mediante a seleção e a divulgação de clássicos já editados, permitisse cumprir com o objetivo de "(...) difundir o essencial do patrimônio historiográfico nacional" [Paim, 2019: 14]. 

Quatro segmentos seriam contemplados pela nova proposta: I – As principais obras de viajantes estrangeiros. II – Primeiras histórias do Brasil. III – As histórias do Brasil de dois ingleses. IV – Contribuições a outros temas específicos como a singularidade da obra dos pintores Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858). 

3 – As principais obras de autores estrangeiros na Coleção Brasiliana, segundo Antônio Paim.

Neste comentário somente tratarei do primeiro ponto (“As principais obras de viajantes estrangeiros”), deixando para ensaio ulterior o desenvolvimento dos demais itens que acabam de ser mencionados.

A coleção “Brasiliana” elenca 17 viajantes estrangeiros, sendo as figuras mais importantes o botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) e o médico e botânico alemão Carl Friedrich Philipp Von Martius (1794-1868). É um número deveras pequeno, se levarmos em consideração que o total desses autores chega a 170. Já a coleção “Reconquista do Brasil” é mais generosa, incluindo 67 autores, perto de 30% do total. 

No que se refere aos três primeiros séculos, a abordagem dos autores estrangeiros limita-se às questões circunstanciais, relativas à vida das comunidades indígenas, à ocupação francesa da baía da Guanabara (entre 1555 e 1559) e às guerras deflagradas pelos portugueses contra os holandeses (no período que vai de 1624 até 1648). As informações que os viajantes estrangeiros nos legaram são de grande valor, porquanto se debruçam sobre as comunidades indígenas sem a preocupação da catequese, aspecto que prevalece nas descrições feitas pelos jesuítas. Estes, efetivamente, frisa Paim, “(...) não nos proporcionaram uma visão clara da sua cultura, porquanto nela visaram aqueles aspectos que poderiam facilitar ou dificultar a denominada catequese, destinada a convertê-los ao cristianismo, que era de fato o objetivo maior” [Paim, 2019: 258]. 

Três foram os viajantes estrangeiros que, após o Descobrimento, nos legaram relatos bastante ilustrativos acerca da cultura indígena: André Thevet (1502-1590), Jean de Lery (1534-1613) e Hans Staden (1525-1579). 

André Thevet, que era cartógrafo e cosmógrafo do rei Henrique II da França (1519-1559), veio para o Brasil com a expedição comandada por Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571) cavaleiro da Ordem de Malta, advogado, diplomata e especialista em navegação e permaneceu no Brasil até 1556, tendo comandado a ocupação, pelos franceses, da Baía da Guanabara. Apesar de ter sido breve o período de sua permanência em terras brasileiras, pelo fato de ser um especialista competente em cartografia, afinou a sua mirada sobre a nossa realidade indígena, notadamente na descrição física dos lugares, e conseguiu nos legar material de grande valor histórico. A obra escrita por Thevet levou como título: Singularidades da França Antártica e foi publicada em Paris em 1557, tendo consagrado a expressão “França Antártica”. A obra estava ilustrada com 41 xilogravuras sobre as paisagens e os costumes dos indígenas, fato que lhe confere grande valor documental. Thevet considerava que o fracasso da presença francesa em terras brasileiras deveu-se ao calvinismo professado pelos huguenotes.

Jean de Lery, pastor calvinista e escritor, legou-nos detalhado relato em que narra a sua viagem e permanência em terras brasileiras, na obra intitulada: Viagem à terra do Brasil, publicada em Genebra (Suíça) em 1586. A respeito deste autor, frisa Paim: “Não tendo conseguido instalar-se junto aos ocupantes franceses, devido à sua condição de calvinista, Lery viveu dois meses em companhia dos índios tupinambás. A descrição de seus costumes, que empreende, é que justificaria a sua inclusão na (coleção) Brasiliana” [Paim, 2019: 17]. 

Quanto a Hans Staden, Paim escreve o seguinte: “(...) marinheiro alemão, esteve em Pernambuco em 1547/48, regressando, logo a seguir, em 1550, como membro da esquadra espanhola organizada com a intenção de implantar [uma] colônia na altura de Santa Catarina e outra na embocadura do Prata. Tendo o navio naufragado no litoral paulista, passou a viver em São Vicente. Entre janeiro e outubro de 1554 esteve aprisionado pelos tupinambás. Em 1557, publicou o texto que, traduzido e editado no Brasil, costuma figurar nas Brasilianas com o título de Duas viagens ao Brasil” [Paim, 2019: 18].

Abarcando o conjunto das obras desses viajantes estrangeiros, conclui o professor Paim: “As descrições de André Thevet, Jean de Lery e Hans Staden contêm inclusive desenhos, facultando a reconstituição da maneira como se estruturavam os aldeamentos. A primeira conclusão é de que abrigavam no máximo quinhentas pessoas. As aldeias tinham forma arredondada, delimitado o seu perímetro por uma cerca de madeira (toros enfiados na terra com certo espaçamento, isto é, sem completa vedação). Estas, em geral, achavam-se localizadas ali onde fosse possível defender-se de incursões de outras tribos. No interior do aldeamento, construíram cabanas coletivas, chamadas ocas. Sendo nômades e vivendo basicamente da caça e da pesca, precisavam dispor de distância relativamente grande de uma aldeia para outra. As incursões e conflitos provinham geralmente da redução da coleta, isto é, de uma situação de escassez determinando a violação de limites tacitamente estabelecidos. Os métodos de cultivo também determinavam o rápido esgotamento do solo, fazendo com que a agricultura se praticasse de forma itinerante. Nas descrições referidas estão indicados os tempos de viagem e as distâncias de uma aldeia para outra, permitindo supor que os aldeamentos requeriam 1,7km² por índio (em torno de 85 km² por aldeia, tomando uniformemente 500 índios em cada uma delas). Usando essa espécie de critério, o engenheiro de Minas Mário da Silva Pinto (1907-1999) estimou que, à época do descobrimento existiriam, no máximo, 500 mil índios” [apud Paim, 2019: 18-19].

Segundo o professor Paim, o estudo do referido técnico Mário da Silva Pinto (formado em engenharia de minas pela antiga Escola de Engenharia do Rio de Janeiro e ex-diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral), foi publicado na revista Carta Mensal, órgão do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, (nº 429, dezembro 1990). Tal estudo, segundo Paim, “(...) teve por objetivo subsidiar a demarcação de terras indígenas, tendo em vista que a Constituição brasileira lhes garante a posse de reservas onde possam preservar os seus costumes. Os índios podem explorar riquezas mineiras nesses territórios e o fazem em parceria com empresas. Nesses casos, dispõem de bastantes recursos, tendo acesso a toda sorte de equipamentos modernos. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) supervisiona essas comunidades, compostas atualmente por 220 mil índios, que apresentam diferentes graus de contato com a civilização. Segundo a FUNAI, “há tribos de índios isoladas, outras em vias de integração e, finalmente, os índios de contato permanente, também chamados de aculturados”. O curioso é que, frisa Paim, “com a generalização das reservas indígenas em diversos estados, as estatísticas passaram a registrar aumento desmedido do número de pessoas que passaram a considerar-se índios” [cf. Paim, 2019: 19, nota 1].

Segundo Paim, o melhor documento que, recolhendo os escritos dos viajantes estrangeiros, ilustrou de forma mais completa os costumes indígenas, foi a obra tardia do general Couto de Magalhães (1837-1898), intitulada: O selvagem (1875). Assim sintetizou Paim a contribuição essencial dessa obra: “Procurou catalogar as informações colhidas junto a remanescentes indígenas que preservaram alguns dos seus costumes. Embora sua preocupação principal consistisse nos aspectos linguísticos, com vistas à gramática do tupi-guarani, que concluiu, conseguiu fixar alguns traços importantes” [Paim, 2019: 19].

No relacionado à divindade segundo as culturas aborígenes, Couto de Magalhães escreveu: “A ideia de um Deus todo poderoso e único não foi possuída pelos nossos selvagens ao tempo do descobrimento da América; e, pois, não era possível que sua língua tivesse uma palavra que a pudesse expressar. Há, entretanto, um princípio superior qualificado com o nome de Tupã, a quem parece que atribuíam maior poder que aos outros” [Magalhães, Couto de. O selvagem. Apud Paim, 2019: 19-20].

Em relação a outros aspectos da cultura indígena estudados por Couto de Magalhães, como os que se referem à noção de pessoa, frisa Paim: “A capacidade abstrativa na língua era ínfima. Deste modo, acreditando que todos os seres tinham mãe, não dispunham de nenhum termo que exprimisse essa ideia geral. O Sol era a mãe dos viventes e assim por diante. Dos relatos de Couto de Magalhães não fica clara a noção de pessoa. Ao que parece, os aborígenes acreditavam que os mortos tinham algo equiparável à alma, que podia vir visitá-los, razão pela qual os enterrariam nas próprias casas. Os costumes tampouco parecem hierarquizados para constituir algo de parecido ao código moral ocidental” [Paim, 2019: 20]. 

Além das informações sobre a realidade do mundo indígena, as obras dos viajantes estrangeiros legaram-nos relatos bastante fiéis acerca das guerras holandesas, motivadas pela ocupação da capital baiana, inicialmente e, depois, da capitania de Pernambuco por quase vinte anos, entre 1630 e 1648. 

O contexto histórico da ocupação holandesa foi assim sintetizado pelo professor Paim: “A razão das invasões holandesas advinha justamente da perda da independência de Portugal e sua reanexação à Espanha. Os então denominados Países Baixos – que deram origem à Holanda e à Bélgica – também haviam sido anexados ao Reino Espanhol e, desde a morte de Carlos V (1500-1558) e a ascensão de Filipe II (1527-1598) lutavam por separar-se da Espanha. Como essa disputa, de certa forma, mesclou-se à luta religiosa decorrente da Reforma e do empenho de crescente número de países de libertar-se da subordinação a Roma, provocou uma guerra sem quartel. Formalmente, a independência da Holanda proclamou-se em 1581. Contudo, o estado de beligerância com a Espanha só terminaria, de fato, com a chamada Paz de Versalhes em 1648, vale dizer, no ano em que se dava a Batalha dos Guararapes” [Paim, 2019: 20-21].

É de se destacar o fato de que, ao ensejo da ocupação holandesa e da anexação, à Espanha, do reino de Portugal, ao longo do final do reinado de Carlos V e da ascensão de Filipe II, deu-se o ensejo do financiamento da exploração açucareira no Brasil pelos judeus portugueses radicados em Amsterdã. Lembremos que o padre Antônio Vieira (1608-1697) tinha levado em consideração essa circunstância quando apresentou, ao soberano português, o quadro dos novos empreendimentos comerciais no Brasil.

Após a Independência, a Batalha dos Guararapes passou, crescentemente, a ser valorizada, pelo fato de ter se tratado da primeira manifestação da nacionalidade. A respeito, frisa Paim: “(...). Constitui, certamente, um feito notável, porquanto a organização da tropa que veio a ser vitoriosa teve lugar inteiramente no Brasil” [Paim, 2019: 20]. Em que pese o fato de a ocupação espanhola de territórios no Brasil ter acabado em 1640, ao ensejo do estabelecimento do reinado de Dom João IV em Portugal (1604-1656), o príncipe alemão-holandês João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), que governava Pernambuco, relutou em sair do país, tendo-o feito somente em 1644. Isso explica o desfecho da batalha de Guararapes em 1648.

A praxe de valer-se de arquivos neerlandeses para a reconstituição da ocupação holandesa é atribuída ao historiador Hosé Higino Duarte Pereira (1847—1901). A respeito da obra deste autor, escreveu o professor Paim: “(...) tornou-se professor da tradicional Faculdade de Direito do Recife em 1876. Com a República, foi eleito deputado, tendo participado da Assembleia Constituinte. No governo de Floriano Peixoto (1839-1895), [que se estendeu de 1891 até 1894] assumiu a pasta da Justiça, passando em seguida a integrar o Supremo Tribunal Federal. Coligiu uma quantidade imensa de material sobre o domínio holandês no Brasil, mas não lhe escreveu a história, levando seu contemporâneo Clovis Bevilaqua (1859-1944) a designá-lo como ‘o operário que moureja, se extenua, se sacrifica e não o arquiteto que traceja o plano do edifício e o levanta do solo’. A historiografia pernambucana subsequente supriu essa lacuna” [Paim, 2019: 22]. 

O registro histórico desses acontecimentos ocorreu, posteriormente, ao ensejo das pesquisas feitas por Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) na sua História Geral do Brasil antes da separação e independência de Portugal, (obra publicada inicialmente, em dois volumes, entre 1854 e 1867). O mencionado historiador cita os relatos de três estrangeiros: o do francês Pierre Moureau (História das últimas lutas entre holandeses e portugueses), o do francês Rouloux Baro (Relação da viagem ao país dos tapuias) e o do holandês Johan Nieuhoff (Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil). A obra de Rouloux Baro, inicialmente publicada em Amsterdã, em idioma holandês (1682), foi traduzida ao francês por Pierre Moreau com o título já mencionado: Relação da viagem ao país dos tapuias, tendo sido publicada pela Editora Itatiaia na segunda parte do volume 54 da coleção “Reconquista do Brasil”, em 1970.

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