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O ESTUDO DA FILOSOFIA LUSO-BRASILEIRA: QUESTÕES METODOLÓGICAS

O ESTUDO DA FILOSOFIA LUSO-BRASILEIRA: QUESTÕES METODOLÓGICAS

BRASIL - PORTUGAL - DUAS BANDEIRAS UNIDAS NO ESTUDO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO



Este ensaio foi apresentado no Colóquio "Tobias Barreto", realizado pelo Instituto de Filosofia luso-brasileira, em Lisboa, entre 12 e 16 de novembro de 2018.

Já se vão 37 anos, quase quatro décadas, desde o início do diálogo acadêmico luso-brasileiro no terreno da História das Ideias Filosóficas, naquele remoto Colóquio Luso-brasileiro que teve lugar em Braga, em 1981, com a participação de estudiosos portugueses e brasileiros, na caminhada em prol da formalização acadêmica de uma pesquisa que vinha desde tempo atrás [cf. Fragata, 1982: 961 pp.]. A participação brasileira nesse evento estava centrada na figura de Antônio Paim (1927-2021), que foi, junto com Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003), o organizador do programa de Mestrado e Doutorado em Pensamento Luso – Brasileiro na Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, em 1979. Paim, aliás, já tinha coordenado empreendimento semelhante na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ao ter criado, em 1972, o programa de mestrado em Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro, com apoio do professor Armando Correia Pacheco (1915-2001), que na época chefiava a seção cultural da Organização dos Estados Americanos, em Washington.

Quatro décadas de pesquisa, de organização documental, de edições acadêmicas e de desenvolvimento dos Cursos de Mestrado e Doutorado tomaram conta do Universo brasileiro e português, na área da historiografia filosófica das ideias e em torno à meditação luso-brasileira. Parece um longo espaço de tempo, mas na História das Ideias certamente constitui um momento. Um momento sobre o qual tecerei arrazoados carregados das lembranças da minha participação nessa aventura intelectual, à maneira da “nivola unamuniana” ou biografia interior, tão do gosto do grande Fidelino de Figueiredo (1888-1967).

Caí de paraquedas na seara do estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro, naquele carnaval de 1973, quando, de posse de uma carta da Secretaria de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos, apresentei-me, na quarta-feira de cinzas daquele remoto mês de fevereiro, nos portões da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a fim de me matricular no Curso de Mestrado em Pensamento Brasileiro, para o qual tinha ganhado bolsa em concurso aberto em nível latino-americano pela OEA, sediada em Washington. Na verdade, não tinha cogitado estudar Pensamento Brasileiro. Morava então em Bogotá e lecionava nas prestigiosas Universidades Externado de Colômbia e Del Rosario, mas precisava urgentemente justificar, perante as autoridades brasileiras, a viagem ao Rio de Janeiro a fim de acompanhar a minha primeira esposa, professora licenciada do antigo Estado da Guanabara, que deveria se apresentar ao temido DOPS para prestar esclarecimentos quanto à sua participação em evento internacional ocorrido no ano de 1970, no Equador, e que tinha sido classificado como “subversivo” pelas instâncias policiais. A bolsa concedida pela OEA garantiu a minha idoneidade ideológica perante as autoridades.

Quatro itens desenvolverei nesta comunicação: I - Antônio Paim e a Metodologia Culturalista para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-Brasileiro. II – Eduardo Abranches de Soveral e a Metodologia Fenomenológica para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-Brasileiro. III – António Braz Teixeira (1936-) e a Metodologia Hermenêutica para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-brasileiro. IV - Francisco José da Gama Caeiro (1928-1994) e a inserção do Estudo do Pensamento Filosófico no contexto da história da cultura portuguesa.

I - Antônio Paim e a Metodologia Culturalista para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-Brasileiro.

No decorrer do Curso de Mestrado na PUC do Rio, descobri o universo luso-brasileiro que, para mim, era completamente desconhecido. O que mais me impactou desse primeiro contato com uma cultura essencialmente diferente da hispano-americana, foi a metodologia utilizada por Miguel Reale (1910-2006) e Antônio Paim, na pesquisa da historiografia das ideias [cf. Paim, 1979: 11]. Ela divergia diametralmente da praticada no estudo da história das ideias no meio hispano-americano. A postura tradicional consistia em arrolar autores de acordo com as preferências doutrinárias ou ideológicas e, a partir daí, fixar um cânone do que deveria ser lido ou não. Era a posição apologética que Tobias Barreto (1839-1889) identificava como “filosofia em mangas de camisa. Alicerçados na concepção problemática do pensar filosófico formulada na primeira parte do século XX por Nicolai Hartmann (1882-1950) e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), Reale e Paim fixaram a metodologia (que, pelas suas filiações neokantianas), passou a ser denominada de culturalista e que norteou as pesquisas na área de história do pensamento no Brasil. Essa metodologia consiste nos seguintes passos: 1 – indagação acerca do problema ou dos problemas que tinha pela frente o pensador; 2 – pesquisa acerca da forma em que o autor estudado tentou solucionar esse núcleo problemático; 3 – identificação de elos e derivações entre o pensador estudado e outros autores, à luz da perspectiva problemática apontada.

Com essa metodologia, Antônio Paim partiu para o estudo desapaixonado e objetivo dos vários períodos da nossa meditação. A sua História das ideias filosóficas no Brasil é testemunho insofismável da abertura a todos os autores e a todas as correntes, superando definitivamente o vício apologético, que classificava pensadores por simpatias de sistema ou de ideologia [cf. Paim, 1968].

O pluralismo de Paim constituiu o motivo fundamental do ódio dos seus adversários, incapazes de aceitar o livre estudo e o debate aberto das idéias. Pode-se tributar essa circunstância à presença marcante, na história cultural do Brasil, da tradição cientificista, aliada às propostas autoritárias e totalitárias. Prova clara desse confronto entre espírito liberal e dogmatismo totalitário, deixou o nosso pensador na coletânea organizada por ele e intitulada Liberdade acadêmica e opção totalitária, em que foram divulgados os principais ensaios acerca do episódio de patrulhamento ideológico de que foi objeto conhecido texto de Miguel Reale, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1979 [cf. Paim, 1979].

A contribuição de Antônio Paim no terreno da historiografia das idéias filosóficas teve duas manifestações institucionais: em primeiro lugar, a organização em 1982, por ele, a partir da sua biblioteca pessoal, do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, na Bahia, sediado na Biblioteca da Universidade Católica de Salvador e que constitui hoje o mais importante acervo existente no Brasil para a pesquisa das idéias filosóficas, sociológicas e antropológicas.

A segunda contribuição institucional de Antônio Paim, no campo da historiografia das idéias filosóficas, foi constituída pela organização dos cursos de pós-graduação em pensamento brasileiro, primeiro na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com a colaboração de Celina Junqueira (no período compreendido entre 1972 e 1978) e logo na Universidade Gama Filho (no período compreendido entre 1979 e 1984), onde o nosso autor colaborou, como já foi destacado, com Eduardo Abranches de Soveral na criação do Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro.

A essas iniciativas devem juntar-se mais duas: a criação do mestrado em filosofia brasileira, na Universidade Federal de Juiz de Fora, curso que vingou entre 1984 e 1994 e a organização, com a colaboração de Leonardo Prota (1930-2016), do Centro de Estudos Filosóficos de Londrina, que entre 1989 e 2002 realizou, a cada dois anos e com o apoio da Universidade Estadual de Londrina, os Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira.

Um resultado salta à vista nessa contribuição institucional de Antônio Paim: a formação, ao longo dos últimos quarenta anos, de toda uma geração de estudiosos e pesquisadores da filosofia brasileira, disciplina que passou a ser ensinada em mais de 25 Universidades, ao longo do país, em que pese os preconceitos remanescentes em setores da burocracia do Ministério da Educação.

Não poderia deixar de ser ressaltada, outrossim, a contribuição de Antônio Paim, no campo da divulgação do pensamento brasileiro em empreendimentos editoriais. Essa realização já tinha sido iniciada, nos anos sessenta do século passado, com a sua dedicada colaboração no Instituto Brasileiro de Filosofia, instituição que, sob a presidência de Miguel Reale, criou a Estante do Pensamento Brasileiro.

Além dessa iniciativa pioneira, nas décadas seguintes Paim deu continuidade a outras: as monografias e bibliografias de períodos e de pensadores, publicadas pelo nosso autor no Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro; a coleção "Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro", publicada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ao longo dos anos setenta, com a colaboração de Celina Junqueira; a Enciclopédia luso-brasileira de filosofia (1989-1992) publicada em Lisboa pela Universidade Católica Portuguesa e em cuja elaboração o nosso autor teve papel de destaque; a "Biblioteca do Pensamento Brasileiro" organizada pela Editora Convívio em São Paulo, ao longo da década de oitenta do século passado, sob a orientação de Adolpho Crippa, Miguel Reale e dele próprio; as múltiplas edições de textos de pensadores brasileiros e dos Anais dos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, realizadas, sob a sua inspiração, pelo Centro de Estudos Filosóficos de Londrina; a publicação das Obras completas de Tobias Barreto (1989-1990) pelo Instituto Nacional do Livro e com a colaboração de Luiz Antônio Barreto, etc.

II – Eduardo Abranches de Soveral e a Metodologia Fenomenológica para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-Brasileiro.

Encontrei bastante semelhança entre a metodologia problemática de Reale e Paim e a via apontada por Eduardo Abranches de Soveral, no que tange ao estudo do tema das filosofias nacionais. Alicerçado na fenomenologia, Soveral traçou as linhas mestras do que, no seu entendimento, é fundamental na metodologia filosófica para o estudo das filosofias nacionais. Sete itens considerava essenciais o professor Soveral para tal estudo: 1 – a determinação dos filosofemas; 2 – o estudo das formações históricas desses problemas; 3 – a análise do desenvolvimento lógico historicamente dado às soluções desses filosofemas; 4 – a consideração do desenvolvimento histórico dado à vigência dessas soluções nos vários contextos sociais; 5 – a apreensão das novidades que implicaram a formulação de novos filosofemas e / ou a reformulação de filosofemas já existentes; 6 - a explicação das articulações lógicas que determinaram os novos filosofemas ou a sua reformulação; 7 – a determinação da vigência dos novos filosofemas e / ou suas modificações [cf. Soveral, 1979: 63-73].

Com essa ampla metodologia historiográfica desenvolvida por Reale, Paim e Soveral foi possível, nas pesquisas que se seguiram nas teses de mestrado e doutorado em pensamento luso-brasileiro da Universidade Gama Filho, desenhar o primeiro grande quadro das filosofias portuguesa e brasileira, bem como analisar as suas mútuas relações.

Nesse esforço de ordenamento temático da meditação filosófica, ressalta a contribuição de Soveral no terreno da filosofia da cultura aplicada à educação. Merece destaque a obra do nosso autor a respeito, intitulada: Pedagogia para a era tecnológica [cf. Soveral 2001]. Em ensaio anterior, Soveral já tinha destacado que a pedagogia para a era tecnológica deveria estar animada pela filosofia, entendida no seu sentido socrático. A respeito, escreve: "Para que, na ação docente, se não verifiquem um dogmatismo pedagógico nem a imposição de uma determinada ordem de valores, é necessário que o mestre comece por criar, socraticamente, um saudável e estimulante clima de liberdade crítica, que desmistifique os falsos mitos e problematize os preconceitos mais arraigados, e as mais respeitáveis convicções; isso, tendo o cuidado de afastar desde o início a suspeita de uma oculta intenção apologética; será necessário, para tanto, que o professor comece por se apresentar, identificando-se criticamente, ou seja, expondo, com lealdade e isenção, as suas mais profundas e autênticas opções valorativas. (...). Depois disso, é fácil desenvolver o amor da verdade, com todas as suas indispensáveis exigências éticas. (...). Na verdade, só o espírito filosófico é capaz de dissolver os bloqueios ideológicos e libertar as inteligências" [Soveral, 1983: 87-100].

Para os que tivemos o privilégio de sermos os seus discípulos, fica claro que as anteriores palavras não são apenas teoria, mas que se tornaram vida no apostolado docente de Eduardo Soveral, que soube colocar em ponto alto o ideal ético do educador e do filósofo, num mundo que certamente não prima pela valoração da cultura desinteressada. Não se poderia entender adequadamente a metodologia para o estudo do pensamento filosófico luso-brasileiro traçada por Soveral, se não enveredássemos pela análise das principais linhas da sua epistemologia para o estudo da história das ideias [cf. Soveral, 1992].

Dois aspectos destacarei na epistemologia para o estudo da cultura luso-brasileira segundo Eduardo Abranches de Soveral: em primeiro lugar, “Características básicas da filosofia” e, em segundo lugar, “Subjetividade, intersubjetividade e verdade”. Coerente com a sua formação epistemológica, o nosso pensador caracteriza a filosofia, basicamente, como método, ao mesmo tempo crítico e hermenêutico [cf. Soveral, 1992: 20]. Quanto ao aspecto hermenêutico, Soveral frisa que, pelo fato de a filosofia dever ser expressão da dualidade sujeito-objeto, "(...) em termos que expressem todas as variantes das relações intersubjetivas, embora partindo e regressando à relação fundamental", também "(...) a revelação e a linguagem passariam a ser o terreno fenomenológico por excelência, os místicos e os poetas os interlocutores privilegiados, e a filosofia, fundamentalmente, uma hermenêutica" [Soveral, 1992: 26].

Do ponto de vista de sua feição crítica, a filosofia é, para Soveral, "sempre, por essência, autônoma, ou seja, irredutível ao seu passado e a todo o contexto contemporâneo a que esteja ligada" [Soveral, 1992: 4]. Já do ponto de vista da sua dimensão hermenêutica, a filosofia é basicamente histórica. "É que a filosofia - escreve Soveral- tem uma dimensão antropológica e existencial que a liga sempre ao homem concreto, sob a forma de sabedoria, ou, se preferirmos, preludiando o tema central do pensamento de Leonardo Coimbra, a razão filosófica é, por natureza, prática e metafísica. E esta nuclear ligação da ética e da metafísica, valorizando, máxima e simultaneamente, a liberdade humana e o ser, exige, ao contrário do que poderia julgar-se, um especial recurso ao conhecimento histórico" [Soveral, 1992: 5]. Ambas as dimensões da filosofia, a hermenêutica e a crítica, estão, no sentir de Soveral, intimamente ligadas [cf. Soveral, 1992: ibid].

A reflexão filosófica desenvolveu, nos períodos moderno e contemporâneo, segundo Soveral, quatro formas de fundamentação do conhecimento: a cartesiana, a espinosana, a kantiana e a husserliana. Quanto à primeira, frisa o nosso autor: "Partindo do acto cognitivo por excelência que é o juízo, constitui-se uma das formas radicais de fundamentar o conhecimento: a evidência racional; é ela que confere ao enunciado judicativo uma veracidade necessária; não é possível negá-la, nem conceber, sequer, a sua negação" [Soveral, 1992: 47]. A forma espinosana de fundamentação do conhecimento é assim caracterizada: "Como variante imediata desta fundamentação pela evidência racional, que é, por essência, dedutiva, temos a fundamentação típica dos geômetras que partem da afirmação ou proposição de teses que depois demonstram, algumas vezes de maneira negativa, reduzindo ao absurdo as teses opostas" [Soveral, 1992: 47]. A forma kantiana, por sua vez, é assim caracterizada por Soveral: "Uma (...) variante, menos radical, (que foi usada por Kant na segunda edição da Crítica da razão pura) consiste em partir dos problemas gnosiológicos imanentes a determinada zona, ou nível, do conhecimento, ou de determinada área da vida cultural, e considerar que a hipótese explicativa que os soluciona conferirá fundamento a tais conhecimentos, desde que se demonstre ser ela a única possível, ou a mais segura e directa, no caso de haver várias. Naturalmente que esta fundamentação, de tipo hierárquico e indutivo, terá tanto maior valor filosófico quanto mais, na escala ascendente e dialética dos problemas e das soluções, se aproximar da radicalidade da evidência, que marca o termo de toda a problematização" [Soveral, 1992: 47-48].

A forma husserliana de fundamentação do conhecimento é caracterizada, por último, assim: "Partindo da sensibilidade (em sentido kantiano), ou seja, da abertura do sujeito ao aparecimento de dados, de fenômenos, de algo de exterior que tem o poder e a iniciativa de uma presença irrecusável, configura-se uma outra forma radical de fundamentação cognitiva. Trata-se agora de constituir toda a experiência, a partir da zona originária em que não há obstáculos nem intermediários entre o sujeito que experimenta e aquilo que é experimentado; trata-se de captar o fenômeno puro" [Soveral, 1992: 48].

O nosso autor considera que, das quatro formas de fundamentação do conhecimento apresentadas, a espinosana encerra um risco de desvio consistente em "supor-se que a refutação polêmica das teses divergentes servirá de fundamento, para além do caso bem preciso - e único legítimo - em que se demonstra o absurdo da tese contraditória". As outras três formas de fundamentação apresentam-se, para Soveral, como perfeitamente compatíveis, sendo que a forma transcendental - "onde terão de situar-se as análises gnosiológicas mais radicais" - constitui o chão epistémico onde elas acontecem. Importa destacar que o nosso autor - seguramente influenciado pela sua formação fenomenológica - confere à forma transcendental apenas um valor metodológico e transitório, o que lhe permite concluir ser possível uma abertura metafísica em direção a uma primordial subjectividade inteligente, ou a uma objetividade irracional. Parece-me que Soveral se inclina pela primeira alternativa, ao afirmar que, após as investigações gnosiológicas "é possível e legítima uma segunda navegação de sentido inverso, que aprofunde dialeticamente as exigências críticas do conhecimento, até que se considere fundada uma conclusão quanto ao estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos" [Soveral, 1992: 49].

O método filosófico, inserido nesse centripetismo ôntico, "não se limitará mais - considera Soveral - a fundamentar o conhecimento científico, nem a proceder a investigações transcendentais. Mas passará a ter como objectivo o conhecimento das realidades metafísicas, devendo adequar-se, consequentemente, a esse novo propósito" [Soveral, 1992: 49]. Neste ponto, a meu ver, Soveral situa-se além da perspectiva transcendental kantiana, não só pelo fato de tê-la reduzido a simples recurso metodológico na fundamentação do conhecimento, mas também, e primordialmente, ao postular a possibilidade da sua superação, no conhecimento de realidades metafísicas.

III – António Braz Teixeira (1936) e a Metodologia Hermenêutica para o estudo do Pensamento Filosófico Luso-brasileiro.

Braz Teixeira centrou a atenção no estudo da experiência religiosa. Esta se relaciona com a vivência do mistério, da apreensão intuitiva do fato de que há mais mundos do que este apreendido pela experiência sensível. A vivência religiosa constitui, assim, a experiência fundamental, já que ela permite superar o estreito racionalismo, aderindo a uma concepção elevada de razão, aberta à realidade na sua mais numinosa plenitude.

Dessa experiência parte toda a concepção da denominada Filosofia Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça que há mais mundos para além daquele que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética, que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que, partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano ontológico mais radical do enigma ou do mistério, no qual e pelo qual todo o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e patenteiam ao espírito do homem" [Teixeira, 1993: 11]. De outro lado, convém destacar que a preocupação com o problema da dor insere-se no contexto teodiceico da meditação portuguesa contemporânea [Teixeira, 2000b: 7-15].

A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do filosofar. A respeito, escreve Braz Teixeira: "A idéia de Deus é o primeiro princípio e fonte de todo o princípio que confere sentido e valor a tudo quanto existe e possibilita o próprio filosofar, como amoroso e interminável esforço pela sabedoria que é, em si, o mesmo espírito divino que, sendo a eterna e absoluta plenitude, só por analogia pode ser pensado pela razão humana. Singularidade do pensamento português tem sido o descobrir e revelar a profunda relação que une Deus, o mal e a saudade e, ao mesmo tempo, mostrar que foram outorgados à liberdade humana, assistida pela graça divina, os meios para minorar ou vencer o mal e contribuir para restaurar aquela original e fraterna harmonia entre todos os seres, para que está ordenada toda a criação" [Teixeira, 1993: 12].

A busca incondicional do absoluto constitui, no sentir de Braz Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica, mas é, como já foi salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais: que a problemática teodiceica é o leitmotiv das preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para a indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado O problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia desmedida de absoluto, causa tão frequente de seus sucessos e fracassos, a apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a saudade, como já D. Francisco Manuel o vira, choca-se dramaticamente com a realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal, eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e perplexidade (...)" [Teixeira, 1964: 16].

O nosso pensador faz referência a Álvaro Ribeiro e a José Marinho. Embora estes pensadores, bem como outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros e Afonso Botelho) tenham salientado o caráter religioso-metafísico do povo, inspirador da meditação filosófica em Portugal, estudiosos de outras latitudes, em épocas passadas, salientaram também essas caraterísticas, referindo-as ao homem peninsular. Madame de Staël (1766-1817), por exemplo, na sua obra Dix années d'exil tinha dito acerca da Rússia que "os laços da nação consistem na religião e no patriotismo" [Staël, 1996: 304], tendo encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os ibéricos (em decorrência do valor atribuído em ambas as culturas ao fator religioso). A escritora francesa chegava ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do Norte" [Staël, 1996: 258].

A primeira consequência da adoção, por parte da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de partida teológico, é a crítica à razão que pretendeu, sob a inspiração do racionalismo iluminista, se constituir em juíza e senhora da verdade. A propósito, frisa Braz Teixeira: "Como, porém, o problema de Deus é indissociável do problema do Logos, a crítica filosófica à idéia tradicional da divindade é acompanhada por uma paralela dissolução do conceito iluminista de uma razão clara e segura de si, que recusa todo o negativo e todo o irracional, primeiro através da interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o seu saber de si, e, depois, pela admissão progressiva do irracional que recusara, tanto do irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por fim, pela sua abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação ou a crença" [Teixeira, 1993: 16]. Em decorrência desta avaliação crítica da razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas, sendo o problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa [Teixeira, 1993: 62].

No contexto da crítica à tendência racionalista atrás apontado, a meditação portuguesa, no sentir de Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia de Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé, filosofia e religião e filosofia e ciência [Cf. Teixeira, 1971: 355-373]. Se a meditação filosófica se polarizou em Portugal em torno às questões teológicas, isso não significa, contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo com a meditação brasileira, formulada numa perspectiva fenomenológica e crítica.

IV - Francisco José da Gama Caeiro (1928-1994) e a inserção do Estudo do Pensamento Filosófico no contexto da história da cultura portuguesa.

Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Gama Caeiro realizou a ampliação do estudo do pensamento filosófico português a partir das reformas feitas em 1957. Lecionou a disciplina “pensamento português” na USP (1975-1979). Pesquisou o pensamento português na Idade Média na obra de Santo António de Lisboa (no Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da USP). Foi membro da Academia Portuguesa de História, da Academia das Ciências de Lisboa, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, da Academia Paulista de História e da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica.

Conforme frisa Joaquim Cerqueira Gonçalves no verbete que dedicou à obra e pensamento de Gama Caeiro, a sua ação cultural “(...) não se tem limitado a tornar conhecidos textos e autores filosóficos portugueses, mas também, senão mesmo sobretudo, a apurar uma metodologia de interpretação dos mesmos, que corresponde a uma forma de ampliar a noção de filosofia e de articular [esta] com a cultura, literatura e ciência, especialmente com [a] linguagem. Tal propósito tem-se concretizado com ênfase particular nos cursos de mestrado de Filosofia, na Faculdade de Letras de Lisboa” [Gonçalves, 1989: I, 806-807].

Destacando traços gerais da obra de Gama Caeiro, Cerqueira Gonçalves escrevia em 1989: “Tentando um esboço, aliás difícil, devido à versatilidade de interesses do perfil intelectual de Gama Caeiro, acentuaríamos alguns traços mais indeléveis, desfrutando já de suficiente unidade, mas ainda em dinâmica de enriquecimento com a atividade em curso: incidência na cultura portuguesa, tendência para a diacronia, inspiração em valores de índole cristã, preocupação com o patrimônio histórico. O citado autor destaca "(...) entre os traços deste perfil (...) a decisiva participação de Gama Caeiro na iniciativa da concepção e publicação desta Enciclopédia Logos" [Gonçalves, 1989, I: 806-807].

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