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Pensadores Portugueses - EDUARDO ABRANCHES DE SOVERAL (1927-2003)

Dois itens serão desenvolvidos nesta apresentação: I - Breve sinopse Bio-bibliográfica de Eduardo Soveral; II - Marco epistemológico para o estudo da cultura luso-brasileira segundo E. Soveral.

I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA 

Eduardo Abranches de Soveral nasceu em Mangualde (Viseu, Beira Alta - Portugal), em 1927. Desde muito cedo o nosso autor manifestou propensão para os estudos filosóficos. Em Viseu, foi discípulo de Augusto Saraiva (1900-1975) e, em Coimbra, de Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Pertenceu ao corpo diplomático do seu país na década de cinqüenta, tendo se decidido pela docência universitária no decênio seguinte. Doutorou-se em filosofia no ano de 1965, com a tese intitulada: O método fenomenológico [Soveral, 1965], na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante vários anos foi coordenador do Curso de filosofia nessa Faculdade, tendo chegado a professor catedrático e organizador da pós-graduação em filosofia, ao redor do estudo sistemático dos filósofos portugueses. Destaquemos a oportunidade dessa iniciativa, num momento em que Portugal acordava para a necessidade de reviver os seus fundamentos culturais, ao ensejo da inserção na Comunidade Européia.

A mencionada tese com que obteve o seu doutorado em filosofia, constitui a base teórica sobre a qual se desenvolverão, posteriormente, os seus trabalhos nos terrenos da filosofia da educação, da filosofia política, da filosofia da cultura, da história das idéias e da ética. Em relação ao núcleo teórico da mesma, escreveu Gustavo de Fraga (1922-2003): "Na esteira de Miranda Barbosa, todavia, E. Soveral tende a considerar o método da fenomenologia separadamente da filosofia fenomenológica, marcando uma posição crítica relativamente à Fenomenologia e considerando o que nela se oferece de mais consistente e valioso para a filosofia - o seu método" [Fraga, 1992: 1273]. O nosso autor alicerçou-se, na sua tese doutoral, além de Edmund Husserl (1859-1938), em Nicolai Hartmann (1882-1950), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Max Scheler (1874-1928), Martin Heidegger (1889-1976) e Emanuel Levinas (1906-1995), "o que diz alguma coisa da vigorosa decisão com que pretende determinar em definitivo o valor filosófico do método fenomenológico" [Fraga, 1992: 1273].

Eduardo Soveral elaborou uma antropologia filosófica com rigorosa base metafísica, mas levando em consideração a vivência humana (graças à utilização que faz do método fenomenológico). A partir dessa concepção passou a discutir os problemas mais radicais que afetam ao homem contemporâneo. Gustavo de Fraga destacou a fecundidade da reflexão filosófica do nosso autor, com as seguintes palavras: "o autor revela o que tem sido o núcleo do seu projecto filosófico: a instituição de uma teologia filosófica capaz de fundamentar e de orientar as ciências humanas (em particular a ética, a política e a economia), facultando deste modo soluções para os grandes problemas da sociedade" [Fraga, 1992: 1274]. Por teologia filosófica entendemos uma antropologia aberta à transcendência.

O nosso autor estava destinado, segundo a praxe da universidade européia, a especializar-se em filosofia moderna e contemporânea. Para se preparar nesse terreno, Soveral elaborou magnífica síntese sobre a filosofia de Blaise Pascal (1623-1662), intitulada: Pascal, filósofo cristão [Soveral, 1968] e traduziu o Ensaio sobre o entendimento humano de John Locke (1632-1704) [Cf. Paim, 1994: 33]. Ao ensejo dos episódios da Revolução dos Cravos, o nosso autor sofreu as agruras motivadas pela intolerância no meio acadêmico. Antônio Paim (1927-) sintetizou da seguinte forma esses episódios: "nessa altura desabou sobre Portugal a revolução anti-salazarista, logo submetida à hegemonia dos comunistas, cujo ressentimento manifestou-se abertamente em ódio à cultura e ao saber. Mesmo sendo apenas docente de filosofia, sem militância política, Soveral não suportou o clima de intolerância e perseguição mesquinha, emigrando para o Brasil" [Paim, 1994: 15-16].

Soveral permaneceu no Brasil por espaço de dez anos, tendo sido docente de filosofia na Universidade Católica de Petrópolis (onde também coordenou o curso de mestrado em educação) e na Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro (onde criou o curso de doutorado em pensamento luso-brasileiro, juntamente com Antônio Paim, em 1979). Colaborou, de forma eficiente, para a formação de uma geração de pesquisadores da filosofia luso-brasileira (cerca de trinta teses de doutorado foram defendidas na Universidade Gama Filho, na área apontada, entre 1979 e 1989). A sua influência foi definitiva para a consolidação do rigor acadêmico no estudo dos pensadores luso-brasileiros. É memorável o método monográfico que o nosso pensador desenvolveu, consistente em identificar os problemas (chamados por Soveral de filosofemas), objeto da meditação de cada pensador. Referir-nos-emos logo mais a esse aspecto da sua doutrina filosófica.

Eduardo Soveral foi professor catedrático de Filosofia da Universidade do Porto. Foi, também, membro da Academia de Ciências de Lisboa, da Academia Brasileira de Filosofia, do Instituto Brasileiro de Filosofia, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade Científica da Universidade Católica e do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de que foi fundador e primeiro presidente.

Dada a importância da obra de Soveral no contexto da meditação filosófica brasileira, foi dedicado ao estudo do seu pensamento o 3º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, que teve lugar em Londrina (Paraná), de 23 a 25 de setembro de 1993. Ao ensejo desse evento, foram estudados os seguintes aspectos do pensamento do nosso autor: introdução à obra filosófica, a concepção metafísica, a epistemologia, a filosofia da história, bem como o estatuto ético-jurídico da sociedade. Os trabalhos apresentados no evento foram publicados nos respectivos Anais, organizados por Leonardo Prota [Prota, 1994].

O traço mais marcante da criação intelectual de Soveral, talvez seja o seu esforço em prol de um ordenamento da temática moderna na meditação filosófica. Antônio Paim traçou, da seguinte forma, o quadro do seu pensamento a respeito: "Soveral procedeu a certo ordenamento da temática moderna e tem se detido na análise de cada um de seus aspectos. Resumidamente, a temática em apreço seria: gnoseológica, abrangendo a inquirição sobre a natureza humana e seus limites, que suscita a questão da sobrevivência ou não da metafísica e, também, do desinteresse ontológico da parte da ciência ou do encontro de fundamentos para esta última, aparecendo, também, de forma renovada, o problema das relações entre fé e razão; metafísica, dizendo respeito notadamente ao Absoluto mas, também, à fundamentação da moral e da fixação de suas relações com a religião; e, finalmente, ético-jurídica, abrangendo o problema da liberdade, o comportamento individual e coletivo e, ainda, a filosofia da história ou da cultura, a par do estudo que vem realizando dos principais filósofos portugueses, a partir do século XIX" [Paim, 1994: 16].

Nesse esforço de ordenamento temático da meditação filosófica, ressalta a contribuição de Soveral no terreno da filosofia da cultura aplicada à educação, se destacando a obra do nosso autor a respeito, intitulada: Pedagogia para a era tecnológica [Soveral, 2001]. Em ensaio anterior, Soveral já tinha destacado que a pedagogia para a era tecnológica deveria estar animada pela filosofia, entendida no seu sentido socrático. A respeito, escreve: "Para que, na ação docente, se não verifiquem um dogmatismo pedagógico nem a imposição de uma determinada ordem de valores, é necessário que o mestre comece por criar, socraticamente, um saudável e estimulante clima de liberdade crítica, que desmistifique os falsos mitos e problematize os preconceitos mais arraigados, e as mais respeitáveis convicções; isso, tendo o cuidado de afastar desde o início a suspeita de uma oculta intenção apologética; será necessário, para tanto, que o professor comece por se apresentar, identificando-se criticamente, ou seja, expondo, com lealdade e isenção, as suas mais profundas e autênticas opções valorativas; só tal exemplo despertará ou fomentará, nos alunos, uma paralela e interior necessidade de autoconhecimento, que está no início também de um processo educativo que enriqueça e aperfeiçoe a sua personalidade. Depois disso, é fácil desenvolver o amor da verdade, com todas as suas indispensáveis exigências éticas, e interessar os alunos no exercício rigoroso das próprias faculdades cognitivas; e, possível até, que optem, criticamente, por esta ou aquela posição metafísica ou religiosa. (...). Na verdade, só o espírito filosófico é capaz de dissolver os bloqueios ideológicos e libertar as inteligências" [Soveral, 1983: 91].

Para os que tivemos o privilégio de sermos os seus discípulos, fica claro que as anteriores palavras não são apenas teoria, mas que se tornaram vida, no apostolado docente de Eduardo Soveral. Ele soube colocar em ponto alto o ideal ético do educador e do filósofo, num mundo que certamente não prima pela valoração da cultura desinteressada. O nosso autor faleceu em 2003, em Vila Real.

II - MARCO EPISTEMOLÓGICO PARA O ESTUDO DA CULTURA LUSO-BRASILEIRA, SEGUNDO EDUARDO ABRANCHES DE SOVERAL. 

Tratar acerca da epistemologia na obra de Eduardo Abranches de Soveral não é tarefa fácil. Isso porque, no pensamento do autor, há uma íntima relação entre epistemologia, metafísica, ontologia, antropologia e ética. Por isso, mesmo correndo o risco de ser parcial e levando em consideração as outras abordagens que da sua obra tem sido feitas, limitar-me-ei à exposição dos tópicos mais significativos, presentes em dois ensaios seus: "Notas históricas e filosóficas sobre o conhecimento" (1985) e "Sobre a racionalidade, a ética e o ser" (1988-1989), ambos recolhidos na coletânea feita por Antônio Paim e por ele apresentada sob o título de: Eduardo Abranches de Soveral, Ensaios filosóficos (1978-1992), Vitória, 1992.

Cinco aspectos destacarei na epistemologia para o estudo da cultura luso-brasileira segundo Eduardo Abranches de Soveral: 1) Características básicas da filosofia; 2) subjetividade, intersubjetividade e verdade; 3) questões metafísicas relacionadas com a teoria do conhecimento; 4) questões metodológicas relacionadas com a teoria do conhecimento e 5) mediação epistémica da cultura luso-brasileira e metodologia para o estudo da história das idéias filosóficas.

1 - Características básicas da filosofia.

Coerente com a sua formação epistemológica, Soveral caracteriza a filosofia, basicamente, como método, ao mesmo tempo crítico e hermenêutico. Quanto ao aspecto crítico, o autor escreve: "Em nosso entender, o que caracteriza uma obra filosófica não são os temas nem o conteúdo doutrinário, mas a exigência crítica problematizadora e a fundamentação das soluções propostas; além disso (e depois disso) a integração sistemática dos conhecimentos, orientada no sentido de uma unificação de todo o saber possível. Assim, a filosofia começa por ser, expressa e deliberadamente, metódica" [Soveral, 1992: 20].

Quanto ao aspecto hermenêutico, Soveral frisa que, pelo fato de a filosofia dever ser expressão da dualidade sujeito-objeto, "(...) em termos que expressem todas as variantes das relações inter-subjectivas, embora partindo e regressando à relação fundamental", também "a revelação e a linguagem passariam a ser o terreno fenomenológico por excelência, os místicos e os poetas os interlocutores privilegiados, e a filosofia, fundamentalmente, uma hermenêutica" [Soveral, 1992: 26].

Do ponto de vista de sua feição crítica, a filosofia é, para Soveral, "sempre, por essência, autônoma, ou seja, irredutível ao seu passado e a todo o contexto contemporâneo a que esteja ligada" [Soveral, 1992: 4]. Já do ponto de vista da sua dimensão hermenêutica, a filosofia é basicamente histórica. "É que a filosofia - escreve Soveral- tem uma dimensão antropológica e existencial que a liga sempre ao homem concreto, sob a forma de sabedoria, ou, se preferirmos, preludiando o tema central do pensamento de Leonardo Coimbra (1883-1936), a razão filosófica é, por natureza, prática e metafísica. E esta nuclear ligação da ética e da metafísica, valorizando, máxima e simultaneamente, a liberdade humana e o ser, exige, ao contrário do que poderia julgar-se, um especial recurso ao conhecimento histórico" [Soveral, 1992: 5].

Ambas as dimensões da filosofia, a hermenêutica e a crítica, estão, no sentir de Soveral, intimamente ligadas. No seio desta última torna-se possível inventariar o conteúdo axiológico da tradição. Ora, "só quando é inventariado o conteúdo axiológico da tradição - frisa o nosso autor - é possível recuperá-la, positiva ou negativamente, em termos críticos instituindo um itinerário ético que verdadeiramente seja novo, mas nos inscreva no real" [Soveral, 1992: 5].

2 - Subjetividade, intersubjetividade e verdade.

A reflexão filosófica desenvolveu, nos períodos moderno e contemporâneo, segundo Soveral, quatro formas de fundamentação do conhecimento: a cartesiana, a espinosana, a kantiana e a husserliana. Quanto à primeira, frisa o nosso autor: "Partindo do acto cognitivo por excelência que é o juízo, constitui-se uma das formas radicais de fundamentar o conhecimento: a evidência racional; é ela que confere ao enunciado judicativo uma veracidade necessária; não é possível negá-la, nem conceber, sequer, a sua negação" [Soveral, 1992: 47]. A forma espinosana de fundamentação do conhecimento é assim caracterizada: "Como variante imediata desta fundamentação pela evidência racional, que é, por essência, dedutiva, temos a fundamentação típica dos geômetras que partem da afirmação ou proposição de teses que depois demonstram, algumas vezes de maneira negativa, reduzindo ao absurdo as teses opostas" [Soveral, 1992: 47]. A forma kantiana, por sua vez, é assim caracterizada por Soveral: "Uma (...) variante, menos radical, (que foi usada por Kant na segunda edição da Crítica da razão pura) consiste em partir dos problemas gnosiológicos imanentes a determinada zona, ou nível, do conhecimento, ou de determinada área da vida cultural, e considerar que a hipótese explicativa que os soluciona conferirá fundamento a tais conhecimentos, desde que se demonstre ser ela a única possível, ou a mais segura e directa, no caso de haver várias. Naturalmente que esta fundamentação, de tipo hierárquico e indutivo, terá tanto maior valor filosófico quanto mais, na escala ascendente e dialética dos problemas e das soluções, se aproximar da radicalidade da evidência, que marca o termo de toda a problematização" [Soveral, 1992: 47-48].

A forma husserliana de fundamentação do conhecimento é caracterizada, por último, assim: "Partindo da sensibilidade (em sentido kantiano), ou seja, da abertura do sujeito ao aparecimento de dados, de fenômenos, de algo de exterior que tem o poder e a iniciativa de uma presença irrecusável, configura-se uma outra forma radical de fundamentação cognitiva. Trata-se agora de constituir toda a experiência, a partir da zona originária em que não há obstáculos nem intermediários entre o sujeito que experimenta e aquilo que é experimentado; trata-se de captar o fenômeno puro" [Soveral, 1992: 48].

O nosso autor considera que, das quatro formas de fundamentação do conhecimento apresentadas, a espinosana apresenta um risco de desvio consistente em "supor-se que a refutação polêmica das teses divergentes servirá de fundamento, para além do caso bem preciso - e único legítimo - em que se demonstra o absurdo da tese contraditória" [Soveral, 1992: 47]. As outras três formas de fundamentação apresentam-se, para Soveral, como perfeitamente compatíveis, sendo que a forma transcendental - "onde terão de situar-se as análises gnosiológicas mais radicais" [Soveral, 1992: 48] - constitui o chão epistémico onde elas acontecem. Importa destacar que o nosso autor - seguramente influenciado pela sua formação fenomenológica - confere à forma transcendental apenas um valor metodológico e transitório, o que lhe permite concluir ser possível uma abertura metafísica em direção a uma primordial subjectividade inteligente, ou a uma objetividade irracional. Parece-me que Soveral se inclina pela primeira alternativa, ao afirmar que, após as investigações gnosiológicas "é possível e legítima uma segunda navegação de sentido inverso, que aprofunde dialecticamente as exigências críticas do conhecimento, até que se considere fundada uma conclusão quanto ao estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos" [Soveral, 1992: 49].

O método filosófico, inserido nesse centripetismo ôntico, "não se limitará mais - considera Soveral - a fundamentar o conhecimento científico, nem a proceder a investigações transcendentais. Mas passará a ter como objectivo o conhecimento das realidades metafísicas, devendo adequar-se, consequentemente, a esse novo propósito" [Soveral, 1992: 49]. Neste ponto, a meu ver, Soveral situa-se além da perspectiva transcendental kantiana, não só pelo fato de tê-la reduzido a simples recurso metodológico na fundamentação do conhecimento, mas também - e primordialmente - ao postular a possibilidade da sua superação, no conhecimento de realidades metafísicas.

Analisemos rapidamente as noções de subjectividade, intersubjectividade e verdade, na forma em que são entendidas por Soveral. Há, para ele, dois traços fundamentais da intersubjetividade: a racionalidade e a consciência. A primeira apresenta-se como "comum a todos os sujeitos", e exprime uma universalidade "directa, límpida e irrecusável". Já a segunda possui uma característica paradoxal, pois ao passo que é a raiz da unicidade de cada sujeito, deve também ser atribuída, de forma análoga, a todos os outros; em decorrência disso, a consciência é problemática. A coactividade do juízo evidente revela a cada um a dimensão universal da racionalidade. "É a partir deste ponto fulcral - escreve Soveral - da ligação entre razão e consciência, que o homem se sente inserido num plano cuja universalidade é indiscutível e aberto a todos os seus horizontes" [Soveral, 1992: 76].

O primeiro momento da epifania da verdade é constituído pelo juízo evidente, o qual nos permite "a verificação de que a racionalidade tem como acto instaurador e última finalidade o princípio ontológico da identidade" [Soveral, 1992: 78]. A racionalidade constitui, também, um sistema objetivo de relações e é, ainda, "a regra de ouro para uma vida melhor" [Soveral, 1992: 78]. Se adentrando na análise do juízo evidente, Soveral considera insuficiente o argumento em que se alicerça o repúdio à lógica do conceito e que conduz à lógica proposicional. Esse argumento parte da pressuposição de que é a proposição a unidade semiótica elementar, capaz, portanto, de receber os valores gnosiológicos da veracidade, da falsidade e da maior ou menor probabilidade.

O nosso autor firma dois aspectos que lhe parecem decisivos: em primeiro lugar, há distinção entre o valor gnosiológico verdade e o valor lógico validade; em segundo lugar, o conceito possui um sentido ou, em outras palavras, "uma dimensão semântica que não pode se alheada do apuramento do valor gnósico da proposição" [Soveral, 1992: 81]. Todo conceito tem um sentido (simples ou complexo) e deve contar com uma determinação precisa e com uma expressão unívoca. O conceito, de outro lado, é incorporado num nome (ou numa expressão nominal provisória), pertencente a uma língua materna e portador de uma pluralidade aberta de sentido.

Na definição, no sentir de Soveral, "culmina todo o processo determinador do conteúdo enunciável do conceito" [Soveral, 1992: 83]. Em decorrência disso, os juízos evidentes são juízos analíticos, ou seja, juízos nos quais tudo aquilo que se afirma no conceito já estava contido "no seu potencial conteúdo enunciativo", podendo ser explicitados pela simples análise lógica. É necessário, aqui, colocar a questão do valor cognitivo dos juízos analíticos. Esse ponto, para Soveral, deve ser colocado nestes termos: "se um juízo tautológico terá algum valor para o conhecimento?" [Soveral, 1992: 84]. O princípio ontológico da identidade exprime a essência do "supremo acto gnósico", graças ao qual o Sujeito Absoluto torna-se consciente. Esse ato gnósico, em sentido estrito, não é um juízo, mas "uma intuição translúcida em que Lógos e Ser coincidem" [Soveral, 1992: 84].

Em nós, seres humanos, ocorre a dolorosa separação entre Lógos e Ser. Aí radica, para o nosso pensador, toda a dramaticidade da existência humana. A respeito, escreve: "É no indigente e violentado Ser-para-Si (que nós, os humanos, somos) que a separação entre o Lógos e o Ôntico atinge a dimensão máxima. Abertos a um infinito inatingível e sujeitos a condições, circunstâncias e dados que simultaneamente nos revelam e nos ocultam o Ser, o nosso itinerário existencial é particularmente difícil: balançamos entre a ameaça do sofrimento - que resulta, sempre, da experiência forçada de valores negativos - e a ameaça do Nada, existencialmente configurada como perda definitiva da consciência: como nos balouçamos entre um visceral desejo de segurança, de sobrevivência, de conservação, e um visceral desejo de mudança, de aventura, de risco, de partida para o desconhecido que se pressente para lá dos nossos horizontes, de sermos fiéis à nossa constitutiva vocação de infinitamente crescermos na posse do Ser e de definitivamente nos libertarmos da vivência de todo o Mal" [Soveral, 1992: 85].

No contexto da nossa dolorosa finitude existencial, o juízo tautológico é, também - no sentir de Soveral - o supremo acto gnósico. Quando afirmo eu sou eu, "afirmo a-priori a minha unicidade e a unificação tendencial de mim comigo mesmo: como são tautológicos os juízos em que cada um de nós, a cada momento, se reconhece e afirma" [Soveral, 1992: 86]. O juízo tautológico é, assim, o paradigma de todo o conhecimento.

O nosso autor reconhece a existência de três tipos de juízos tautológicos: 1) os que exprimem "o vínculo que liga as essências dependentes às independentes (como o que se verifica entre as noções de corpo e de extensão)"; 2) os que "partem de uma identidade tautológica mediante um processo de substituição dos termos dessa identidade por outros equivalentes (3x7=18+3)"; trata-se, aqui, de juízos evidentes; 3) os sintéticos ou prospectivos que, embora não evidentes, "visam intencionalmente uma evidência e (ou), no limite, uma intuição autorreflexiva". Estes últimos juízos, no sentir de Soveral, "nos permitem aumentar transfinitamente o conteúdo significativo e representativo dos conceitos individuais mantendo a sua unicidade, garantindo, a-priori e a cada momento, a identidade consigo próprios". Esses juízos, considera o nosso autor, "nos possibilitam a entificação de conceitos genéricos típicos, ou de conceitos coletivos, ou de conceitos individuais cuja existência é suposta, ou imaginada, ou produzida, no plano da empiria ou da cultura" [Soveral, 1992: 87]. Ora, essa entificação, considera Soveral, enseja uma concepção atualista e criacionista, graças à qual é possível chegar à produção de objetos técnicos, de bens materiais, ou de obras de arte [cf. Soveral, 1993: 21-26], dando-se o enfraquecimento da densidade ôntica do dado como puro ser-em-si.

Mas se no contexto da nossa dolorosa finitude existencial o juízo tautológico é o supremo ato gnósico, como ficou demonstrado, Soveral destaca que esses racionais projetos não são a condição suficiente para a apropriação do Ser pelos sujeitos. O que lhes garantirá superar definitivamente a tendência para o Nada, será a abertura aos valores e ao Bem. A ética encontra, assim, para o nosso autor, a sua dimensão ontológica. Eis as palavras do pensador português a respeito: "Os juízos evidentes nos revelam (ou) possibilitam a construção da racionalidade, ou seja, de todo um conjunto condicionante de formas que balizam a nossa ativa apropriação do Ser, mediante uma actualização progressivamente mais rica; que, nessa actualização, a Razão, entendida como dinamismo entificador, relacionador e unificador do ser-para-si que é todo o sujeito, - joga com esse universo condicionador de formas, que é a Racionalidade, no sentido de obter um máximo de evidências. Esses racionais e razoáveis projectos de acção são a condição necessária para uma apropriação do Ser pelos sujeitos. Mas não são a condição suficiente. O que lhes irá garantir, em última instância, um sentido positivo, evitando que apontem para o Nada, será o facto de visarem os valores ou o Bem. Esta a indispensável função ontológica da Ética" [Soveral, 1992: 24].

A gnosiologia de Eduardo Soveral caracteriza-se, assim, pelo fato de ser uma ontognosiologia axiológica, fato que o aproxima dos culturalistas brasileiros, notadamente da feição assumida pela concepção ontognosiológica de Miguel Reale. Tanto para o autor português como para os culturalistas brasileiros - destacando-se, além de Reale as figuras de Antônio Paim e Nelson Saldanha (1933-2015) - as questões epistemológicas repousam no contexto aberto por Immanuel Kant (1724-1804), que, a partir da rigorosa delimitação da perspectiva transcendental, abriu a filosofia ocidental à denominada metafísica do sujeito, ou da tematização do espaço humano, que já tinha sido postulado por Samuel Pufendorf (1632-1694) no século XVII. Em Soveral acontece a ontologização do formalismo kantiano, de modo análogo a como em Reale se perfaz essa mesma variável, a partir da crítica axiológica e histórica ao legado do pensador de Königsberg. A posição adotada pelo filósofo português não implica em uma volta pura e simples à metafísica dogmática criticada por Kant. "Ao contrário disto - frisa com propriedade Antônio Paim - Soveral está longe de encampar tudo quanto se fez em nome da preservação do realismo antigo no ciclo de predominância da escolástica" [Paim, 1992: 37].

3 - Questões metafísicas relacionadas com a teoria do conhecimento.

Soveral destaca que a metafísica tradicional "articulada com a antiga física, verbalista e qualitativa" [Soveral, 1992: 12], perdeu legitimidade. Mas as ciências contemporâneas, carentes de base metafísica, pendem no abismo do niilismo. "Agora - frisa o pensador português - com o desaparecimento de uma substantiva matéria-energia, escancara-se o vórtice de um definitivo Niilismo que ameaça sorver e nadificar todas as esperanças humanas. Daí que os cientistas contemporâneos tendem a assumir, no plano existencial, a posição dos mágicos, seus ancestrais" [Soveral, 1992: 93].

A quebra da metafísica ocorreu, nos dias que correm, como decorrência da atomização da ciência moderna e do seu fechamento na positividade. Esses fatos não só separaram a ciência da metafísica "autonomizando-a, como esvaziaram a própria metafísica de um autêntico conteúdo gnosiológico. Que lhe competia saber? Como poderia conhecer-se algo para além do que fosse positivo e observável?" [Soveral, 1992: 13].

No sentir do pensador português, duas alternativas metafísicas se descortinam na meditação contemporânea. "Em última instância - frisa Soveral - haverá que concluir, em termos metafísicos, ou por uma primordial subjectividade inteligente, ou por uma objectividade irracional” [Soveral, 1992: 29]. O nosso pensador opta claramente pela primeira alternativa, recolhendo a rica tradição que, partindo na modernidade de Descartes (1596-1650), tentou, com Leibniz (1646-1716) e Espinosa (1632-1677), formular uma metafísica condizente com as exigências da ciência moderna. Os metafísicos portugueses teriam dado continuidade a esse esforço teórico, num contexto anti-positivista e tendo inclusive incorporado o legado kantiano - bem que de forma parcial, “sem levar em consideração nenhum fundamento gnosiológico antimetafísico da Crítica da Razão Pura" ou restringindo-se, quase sempre, "aos argumentos da dialética transcendental, que isolam do conjunto da obra" [Soveral, 1992: 14].

Parece-me que, ao recolher a tradição dos metafísicos portugueses, Eduardo Soveral se situa numa posição próxima à adotada por Leonardo Coimbra, em cujo pensame