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PODER, ELEIÇÕES E NEVOEIRO NA TRAVESSIA

PODER, ELEIÇÕES E NEVOEIRO NA TRAVESSIA

NAPOLEÃO BONAPARTE, PRIMEIRO CÔNSUL (1803, QUADRO DE FRANÇOIS GÉRARD)

Esta não é a crônica de um naufrágio anunciado, mas de uma travessia em meio ao nevoeiro. Riscos há, sem dúvida. Mas, nem o navio, nem a tripulação, nem os passageiros estão submetidos a uma sina trágica. Se a tripulação e os passageiros utilizarem a sua capacidade de pensar e observarem as normas de segurança, poderão sortear, sem maiores riscos, as dificuldades da viagem e chegarão, felizardos, ao porto almejado.

A Carta de Navegação ilustra, para os navegantes, os riscos da viagem. É possível, com bom senso, se orientar em meio ao nevoeiro das incertezas e das falsas retóricas. Junto com a Carta Náutica, que é a nossa Constituição, tripulantes e passageiros devem levar em consideração as tradições do bom senso (e da apreensão da natureza humana), para encarar os mares desconhecidos. Ora, essas tradições, no caso da nossa navegação política, estão contidas no pensamento dos grandes juristas e estadistas e dos formuladores da Filosofia Política, bem como na Literatura, formas de conhecimento que mergulham nos meandros da natureza humana, que não é facilmente detectável na sua essência, visto que se trata de uma espécie atípica, possuidora da liberdade (os gregos chamavam o homem de anthrópos – sem lugar definido -, ao contrário das coisas ou trópoi – facilmente identificáveis -).

Se descartarmos as visões radicais do ângulo ideológico e nos ativermos ao que o bom senso aprova, teremos, sem dúvida, alternativas alvissareiras, embora a fórmula do sucesso não esteja escrita em símbolos matemáticos. Mas a rota que a todos convém é possível de ser descoberta e buscada com afinco.

Nesta reflexão oceânica, desenvolverei três itens: 1 – Cartas em defesa da Democracia. 2 – Arremetida do crime organizado. 3 – Garantismo sem-vergonha.

1 – Cartas em defesa da Democracia.

Considero um bom sinal de saúde política o fato de a sociedade civil se pronunciar em defesa da Democracia, em tempos de eleição. A iniciativa adiantada concretamente, nesta confusa pré-campanha, por um professor de direito nas últimas semanas, teve sucesso de bilheteria: em poucos dias mais de 600 mil pessoas assinaram a Carta em Defesa da Democracia. Sinal de saúde cívica? Em termos. Talvez a mencionada carta seja, mais, a expressão dos desejos de candidatos à nomenclatura frondosa do Estado Patrimonial, como lembrava, em artigo recente, o meu amigo Percival Puggina, visto que a maior parte dos assinantes ou são bacharéis em Direito, ou funcionários públicos simpáticos à oposição, ou simplesmente cidadãos contrários ao atual governo [Puggina, "A carta dos donos do poder", 29-07-2022]. Afinal, candidatos a “donos do poder” são muitos, neste país de bacharéis – lembrando o título do clássico livro de Raimundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958).

As duas primeiras missivas endereçadas à opinião pública “pela Democracia” foram dos industriais e das empresas ligadas ao sistema financeiro, duas áreas claramente incomodadas com as tentativas do governo de diminuir os favores oficiais geradores de inflação, em face do sistema produtivo. Os industriais, ao longo dos sucessivos governos da Nova República, acostumaram-se aos generosos subsídios pagos pelos governos, o que os converteu em "gatos gordos" que se acomodaram com as migalhas fiscais, sem reinvestir na modernização das suas indústrias: essa é, aliás, a porta por onde se infiltrou a "desindustrialização" que nos aflige. Os Bancos ressentiram-se, por outro lado,, com as medidas desburocratizadoras tomadas pelo Ministério da Economia (como a adoção de pagamentos tipo “pics” que tiram dos bancos um naco das inúmeras taxas pagas pelo contribuinte). Era de se esperar que manifestassem a sua inconformidade com o atual governo, alimentando as esperanças de a oposição de esquerda voltar ao poder.

O denominado “Grupo dos Seis” (o economista Bernard Appy, o professor de Direito Carlos Ari Sunfeld, o professor Francisco Gaetani, da EBAPE / FGV, o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante da Columbia University, o renomado economista Pérsio Arida e o cientista político Sérgio Fausto) apresentou carta com “cinco recomendações” que me pareceram bem fundamentadas (embora não sejam especificadas, claramente, as fontes de onde virão os recursos para as políticas sociais recomendadas). Mas fiquei honestamente decepcionado com o fato de a carta ter sido encaminhada a todos os candidatos, tendo sido excluído o presidente Bolsonaro. É uma atitude que denota intolerância em face ao atual governo, embora seja válido apontar críticas às políticas econômicas atualmente em curso. Ora, intolerância, em política, nada resolve. Se é para contribuir a mudar as coisas, que se mude, primeiro, a atitude que exclui de entrada o diálogo entre os contrários.

Acreditar nas Instituições é um ato fundamental para preservar o funcionamento delas. Ora, defender as Instituições, no mundo de hoje, exige coragem. A onda populista que, de todos os quadrantes ideológicos levantou-se sobre o mundo a partir da primeira década deste século, revela várias coisas: cansaço das sociedades com instituições que foram se desgastando com o correr do tempo. Ora, esse cansaço encontra hoje, infelizmente, uma saída fácil e retórica: “Suprimam-se as instituições e seja proclamada a obediência irracional ao líder populista”. Esse é o clima que presidiu a “Primavera Árabe”, e os movimentos massivos que conduziram, mundo afora, à troca de governos e à entrada em cena de novos líderes carismáticos. O governo Bolsonaro esteve embalado, desde os seus começos, nesse facilitatório carismático. Isso atrapalha o funcionamento da racionalidade em face dos intrincados problemas com que governos e países viram-se envolvidos às voltas com a brutal pandemia. O Presidente dos brasileiros poderia ter adotado uma atitude mais austera em face desse terrível golpe da fortuna sobre o nosso país. Mais prudência e menos motociata teriam ajudado a sortear a complexa situação. O populismo (de esquerda, de centro ou de direita, tanto faz), mais do que uma solução, é um sintoma do mal do desgaste das instituições: em lugar de renová-las, os defensores dessa saída propõem ignorá-las.

O líder carismático populista assemelha-se àquele velho general venezuelano que é o personagem principal de García Márquez no seu clássico romance, de 1975, intitulado: O outono do patriarca, inspirado na figura do general Juan Vicente Gómez (1857-1935), que dominou ditatorialmente o cenário político venezuelano entre 1908 e 1935. Gómez foi, com certeza, o exemplo de que se louvou Hugo Chávez (1954-2013) na sua aventura do “socialismo bolivariano”. De tanto desconfiar das instituições, o ditador Juan Vicente terminou desconfiando de todos os seus assessores e ministros, tendo-se trancafiado, até a morte, na sua fazenda, com apenas dois servidores, os estritamente necessários para sobreviver: a cozinheira presidencial e o médico. O líder carismático é, como frisa o sociólogo francês Pierre-André Taguieff, um “populista cínico”, pois pretende libertar os cidadãos oprimidos destruindo as instituições e substituindo-as pelo seu poder pessoal [cf. Taguieff, 2007: 20-21], como se tal poder fosse uma evangélica “fonte da vida”.

Aqui, valha lembrar que Lula é portador dessa mensagem de libertação das instituições que foram corrompidas pelos “inimigos do povo”. Lula propõe simplesmente o “revogaço” da Operação Lava Jato e de tudo aquilo que obstaculizaria o seu projeto de poder pessoal. O seu populismo é muito mais nocivo, convenhamos, que o do atual presidente, haja vista que o líder sindical conseguiu, nos seus dois governos, desacreditar as principais instituições republicanas, o Congresso e o próprio Executivo, com o festival de maracutaias e de corrupção orgânica implantado nos lastimosos episódios do Mensalão e do Petrolão. Para não falar na desconstrução tanto de empresas estatais que chegaram a beirar a falência (como foi o caso da Petrobrás) e com a quase destruição de prósperas empresas privadas de engenharia, que se viram envolvidas no furacão de roubo sistemático aos contribuintes e que mergulharam no caos de desconfiança ensejado pelas condenações, de que foram objeto na Justiça, como foi o caso das empreiteiras investigadas e julgadas na Operação Lava-Jato.

Mas voltando a lembrar as manifestações de saúde cívica de que tratei no início deste artigo, outra foi, a meu ver, a proposta do Ex-ministro da Justiça Sérgio Moro quando da sua filiação a conhecido Partido de Centro, e acenou com a candidatura à eleição presidencial, com uma pauta que tinha como cerne a preservação dos institutos legais em prol da manutenção do combate ao crime organizado, notadamente na Operação Lava-Jato, a primeira grande ação bem-sucedida para erradicar de vez o vício da corrupção e do enriquecimento com o dinheiro público [cf. Moro, 2021].

Pena que da forma em que evoluiu a pré-campanha do novo candidato à Presidência, tudo mostrou que a arquitetura patrimonialista manteve as antigas práticas preservando as siglas partidárias como balcão de negócios, com forte apoio público (o denominado Fundo Partidário). Essa operação de engenharia política terminou esvaziando a pretensão eleitoral do ex-ministro da Justiça, que optou pela candidatura ao Senado no seu Estado de origem. Moro foi devidamente expurgado, de maneira célere, pela Justiça Eleitoral, a fim de que não concorresse num Estado com maior potencial político. Os anticorpos do Patrimonialismo funcionaram a contento no debilitado organismo social.

Advertência dos agentes patrimonialistas infiltrados na máquina pública e nos partidos: tudo será permitido, menos desmontar o mecanismo de privatização do poder pelos que previamente aceitaram as regras do jogo, sem maiores preocupações com a racionalidade política (ou com uma proposta de amadurecimento para valer da nossa democracia, superando de vez os velhos cacoetes do toma-lá-dá-cá). Dar-se-ão mal os candidatos a libertadores da nossa democracia das amarras do clientelismo e do patrimonialismo!

2 – Arremetida do crime organizado.

Como dizia o economista Joelmir Betting (1936-2012), “não há crime organizado, mas Estado desorganizado”. Na medida em que a racionalidade social não permeia a organização do Estado, mantendo indefinida a limitação entre público e privado, o crime vai se infiltrando na essência do governo, terminando por inviabilizar a finalidade do poder que é servir à sociedade na qual ele emerge. Infelizmente esse fenômeno se dá na atual quadra da vida pública brasileira.

Ao se constituir o poder no contexto patrimonialista e ao agirem os agentes estatais como donos da parcela da administração que lhes foi confiada, termina se perdendo o norte das Instituições. Nesta quadra de confusão lamentável entre os três poderes, quem ganha é o crime organizado. Ao analisar as crises repetidas da Segurança Pública numa cidade como Rio de Janeiro, fica claro que da ausência de um poder racionalmente organizado, o crime lucra.

As ondas de violência que, como a maré revolta, sacodem a praia da sociedade carioca, com maior intensidade na medida do clientelismo estabelecido, acostumaram-nos a essas idas e vindas das crises de violência, com dezenas de mortes nos já rotineiros confrontos entre forças da ordem e crime organizado. Constitui esta uma espécie de surto febril num corpo enfraquecido pelo vírus da malária da corrupção. Os antigos malandros e os tradicionais bicheiros que, nas décadas de sessenta e setenta do século passado, eram controlados pela polícia da antiga Belacap, como acontecia no governo do representante do populismo ademarista na UDN, Antônio de Pádua Chagas Freitas (1914-1991), terminaram transbordando os limites impostos pela segurança: tornaram-se fortes nos morros durante os dois mandatos de Leonel Brizola (1922-2004) como governador do Estado do Rio de Janeiro (1983-1987; 1991-1994), acobertados pela irracional proibição emanada do Executivo estadual, para que polícia não subisse aos morros. Como os habitantes das favelas eram habituados eleitores do governador vindo dos pampas, este reforçou os laços de fidelidade impedindo os policiais de se adentrarem nas hoje chamadas “comunidades”. Moral da história: o folclórico delinquente, o bicheiro, evoluiu para se tornar senhor das armas e passou a adquirir armamento pesado a fim de garantir o novo negócio que se insinuava no horizonte: o tráfico de drogas [cf. Vélez, 2019: 21-93].

O populismo de Brizola foi o responsável pelo fortalecimento do crime organizado a partir dos anos 80 no Rio de Janeiro. Quadro deveras angustiante dessa situação de anomia que se implantou na cidade, por força da prevalência do crime organizado, foi assim descrito pelo saudoso ex-deputado federal pelo Estado do Rio, Roberto Campos (1917-2001): “A Guanabara sofre de um círculo vicioso e da síndrome do medo. É uma trágica causação circular. O desemprego provoca a marginalidade; a marginalidade gera a violência; a violência afasta investidores e agrava o desemprego. E o desemprego fomenta a marginalidade. Os investidores nacionais vivem sob a ameaça do sequestro ou têm de pagar tributo a traficantes e pseudo-sindicalistas para diminuição de roubos. Ao tempo de Brizola, as multinacionais, além disso, dificilmente dariam prioridade a um Estado cujo governador as considerava espoliadoras e causadoras de perdas internacionais, atitude há muito abandonada pela China, Cuba e Vietnã. Na paisagem medieval, os morros eram ocupados por templos, mosteiros e castelos. Os morros do Rio se tornaram fortalezas do crime, onde pequenos comerciantes têm de pagar pedágio para continuarem no negócio, e uma população pobre e honesta tem de se submeter às ordenanças dos criminosos que controlam o direito de ir e vir. O esvaziamento desta nova Bósnia é duplo. Fogem os turistas e fogem os investidores. (...). A Belacap é uma órfã a ser resgatada, e não uma pérola a ser invejada” [Campos, 1994].

Esse surto populista patrocinado por Brizola e repetido por outros governadores de corte populista no já enfraquecido Estado do Rio de Janeiro (como Nilo Batista, Moreira Franco e Sérgio Cabral), viu-se turbinado, nos dias atuais, pela maluca interferência do Supremo Tribunal Federal que achou por bem proibir, à maneira de Brizola, a subida da polícia aos morros cariocas, nas chamadas “comunidades”, a fim de “garantir os direitos humanos”. Resultado: novo fortalecimento do crime organizado, desta vez, patrocinando o fortalecimento de grupos terroristas conhecidos, como o “Comando Vermelho” (já sedimentado no Rio) e o “Primeiro Comando da Capital” (originário de São Paulo).

Com um detalhe estratégico: os atuais meliantes adotaram as táticas guerrilheiras e o combate que se trava nas vielas das “comunidades” converteu-se, hoje, numa autêntica guerra de guerrilhas, com todas as táticas desse tipo de confronto, como a construção de barreiras de concreto e aço para obstaculizar a entrada de veículos oficiais, nas favelas dominadas pelo narcotráfico, e a utilização de armas de longo alcance como fuzis automáticos e metralhadoras antiaéreas. Resumo da ópera: cresceu enormemente o número de baixas nos confrontos provocados pelo crime organizado, com dezenas de meliantes mortos em cada batalha e com a morte, também, de civis inocentes e de membros das forças da ordem.

Em relação à mudança, para pior, do cenário da guerra patrocinada pelo crime organizado com a cobertura do novo populismo do STF, frisa o jornalista Gabriel Sestrem, da Gazeta do Povo, de Curitiba: “Desde o início do enfraquecimento das operações policiais, lideranças do narcotráfico ampliaram significativamente o número de obstáculos feitos de concreto, ferragens e outros elementos para impedir a passagem de veículos das forças de segurança. Moradores relatam que as barricadas prejudicam o dia a dia das comunidades, já que inviabilizam o trajeto de veículos (...). Os obstáculos, entretanto, têm uma função a mais na defesa territorial do tráfico. Ao serem obrigados a descer dos blindados para fazerem a retirada das barricadas, os agentes de segurança são frequentemente alvos de emboscadas. Foi assim que o policial civil André Frias morreu durante a operação no Jacarezinho em maio do ano passado. Nesses dois anos o tráfico teve tempo para se organizar com tranquilidade dentro das comunidades carentes. (...). Anteriormente eles sabiam que se ficassem na rua, a qualquer momento poderia chegar uma viatura. Hoje, sabem que as operações são somente as planejadas. Isso tira o efeito-surpresa (...)”.

Quando eu escrevia, em fins do século passado, relatando as desgraças provocadas pelo narcotráfico nas cidades colombianas, que ficaram reféns das drogas, afirmava: “A Colômbia de hoje é o Brasil de amanhã”. Escrevia isso porque observava a absoluta falta de cuidado das autoridades cariocas para com o crescente narcotráfico, sendo o consumo de cocaína considerado como algo chique nas altas rodas sociais, como deixou consignado conhecida socialite no seu livro Ai, que loucura! [cf. Tamborindeguy, 2000. Cf. Vélez, 2010: 142.].

3 – Garantismo sem-vergonha.

As desgraças do mundo moderno começaram com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Para o “filósofo de Genebra”, o homem natural é bom. A sociedade o perverte. E precisa, por causa disso, de ser restituído ao seu estado natural mediante o “contrato social” que é, antes de mais nada, um contrato regenerador. As desgraças começaram, segundo Rousseau, quando a sociedade passou a girar ao redor dos interesses materiais dos indivíduos, que levaram ao enriquecimento de poucos em detrimento de muitos, e ao estabelecimento do egoísmo como norma comportamental. A fim de limpar a sociedade dessa mazela, torna-se necessário que ela passe por um banho purificador que a limpe dos interesses individuais, lhe restituindo o interesse pelo bem de todos. É o interesse público que deve prevalecer. Ora, tal interesse contraria a natureza individualista e egoísta que passou a imperar. A única forma de restituir o homem à pureza original, consiste em extirpar, nele, os interesses individuais, origem de toda a desgraça do egoísmo.

O bem-estar de todos, a salvação da sociedade, está na regeneração que virá a partir da imposição da unanimidade ao redor do Legislador e dos seus colaboradores, impregnados do espírito público. A regeneração da sociedade foi exposta no 8º capítulo da obra O contrato Social, que Rousseau publicou em 1762. O instrumento de regeneração social seria o poder ilimitado da Vontade Geral encarnado no Legislador (cuja encarnação foi, sucessivamente, na França, a Assembleia Popular da Revolução de 1789, para depois passar a se identificar com o Diretório dos Jacobinos e, em última instância, com Bonaparte).

Para Rousseau, a felicidade humana depende da unanimidade dos indivíduos ao redor do Legislador, poder único e inquestionável. Rousseau dá a regra de ouro para garantir essa enorme transformação humana, no capítulo 8º da sua obra. A dissidência é a porta da desgraça coletiva. Logo os dissidentes devem ser eliminados. Nessa nobre tarefa, são válidos todos os métodos possíveis: a intimidação, a tortura, chegando até a eliminação física dos dissidentes. Uma vez instaurada a unanimidade ao redor do Legislador, a felicidade humana estará garantida para todo o sempre. Essa é a solução elaborada por Rousseau para os males da sociedade moderna. Essa é a porta aberta para os totalitarismos dos séculos XX e XXI [cf. Rousseau, 1966].

A Revolução Francesa foi esse ato nivelador que cortou a cabeça aos interesses individuais, a fim de que florescesse o bem público. Foi a solução do “despotismo da maioria”, que teve dois momentos: o despotismo da multidão, com a anarquia generalizada da Revolução de 1789 e o “Comité de Salvação Pública”, com o corrupto Diretório como dono da bola.

Ao ensejo da corrupção generalizada e do Terror Jacobino, com a guilhotina eliminando opositores do lado da nobreza e do povão, o “despotismo da maioria” passou a ser administrado por Napoleão Bonaparte (1769-1821), Primeiro Cônsul, que fez as reformas básicas para garantir o exercício do poder, mediante a Constituição de 1802, que o sagrava como autoridade única e inquestionável. Foi a etapa inicial que desaguou na proclamação do Primeiro Império em 1804, com Napoleão coroado como Imperador dos Franceses. O Diretório foi eliminado e substituído pelo Conselho de Estado, encarregado de tecer a nova teia de Leis que daria sustentação ao Sistema Imperial. Somente a prevalência do interesse geral da Nação garantiria a redenção dos homens. E o Imperador dos Franceses foi o chamado a exercer esse trabalho árduo de moldar o novo homem, a partir do exercício autocrático do poder. O instrumento de regeneração social seria o poder ilimitado da Vontade Geral encarnado no Legislador identificado com Bonaparte. Getúlio Vargas (1883-1954), aliás, inspirou-se no modelo napoleônico para as reformas pretendidas com a Revolução de 1930, alicerçadas no princípio saint-simoniano e positivista de “equacionamento técnico dos problemas” [cf. Vélez, 1982: 37/38].

Rousseau deu a regra de ouro para garantir essa enorme transformação humana, no capítulo 8º da sua obra, como já foi frisado. A dissidência é a porta da desgraça coletiva. Logo os dissidentes devem ser eliminados. Nessa nobre tarefa, são válidos todos os métodos possíveis: a intimidação, a tortura, chegando até a eliminação física dos dissidentes. Uma vez instaurada a unanimidade ao redor do Legislador, a felicidade humana estará garantida para todo o sempre. Essa é a solução elaborada por Rousseau para os males da sociedade moderna. É a porta aberta para o totalitarismo, conforme já destaquei.

Os pensadores liberais efetuaram a crítica a Rousseau, como forma de dar o pontapé inicial para o resgate da liberdade dos indivíduos, que tinha sido esmagada pelo totalitarismo iluminista. A principal crítica a Rousseau foi elaborada pelo constitucionalista suíço-francês Henry Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), na sua obra de 1810 intitulada: Princípios de política. O ponto de partida da crítica de Constant consiste em deixar claro que não pode haver um poder sem limites na sociedade. Todo poder é limitado. Portanto, é ilegítimo um centro de regeneração todo poderoso, com a desculpa de que pretende salvar a sociedade de si própria. Essa é uma falsidade monstruosa. Se não há poder sem limites (que é o ponto de partida do constitucionalismo liberal de Constant), todo poder é limitado [cf. Constant, 1970: 7-17].

Ora, na atual quadra da história brasileira, severamente castigada pela corrupção e pelo surgimento de tendências totalitárias expressas nas propostas salvacionistas de alguns setores da esquerda, à luz das quais o país foi saqueado e as instituições postas de lado, o poder da magistratura se levantou como salvador da pátria, intervindo à torta e à direita e pretendendo, com isso, garantir a regeneração nacional. Ora, nem o Executivo, nem o Legislativo, nem o Judiciário são poderes absolutos. Todos eles são poderes constitucionais que precisam agir dentro dos marcos pautados pela Constituição e as Leis. O STF passou a agir como salvador da Pátria como se, do alto do seu trono, pudesse com férula de ferro arregimentar e moralizar os demais poderes, tendo desmontado, de forma paradoxal, a Operação Lava-Jato, concedendo a liberdade a antigos condenados como o ex-presidente Lula, que tinha sido julgado tendo sido observados todos os ritos legais. Juristas destacados manifestaram-se contra o ativismo do Supremo, como Ives Gandra, Modesto Carvalhosa, Francisco Rezek e outros. O Senado da República realizou sério debate a respeito, com participação de eminentes juristas. A queixa fundamental: Foram desconhecidos, pelo Supremo Tribunal Federal, os limites constitucionais que lhe tinham sido fixados. E passou a agir como magistrado que tudo pode, fazendo a investigação dos malfeitos, julgando os culpados, prendendo-os e punindo-os, e ameaçando quem ousar criticar a sua dinâmica soteriológica.

A conclusão que se pode tirar de tudo isso é a do jornalista José Roberto Guzzo (1943-), quando escreve: “O STF, na vida real, é neste momento o mais ruinoso inimigo da democracia no Brasil — porque abandonou sua função essencial de árbitro da Constituição e passou a agir, segundo alega, como intérprete, legislador e executor do que considera serem ‘os desejos da sociedade’. É fatal. Todas as vezes que uma corte suprema deixa de ser, mesmo por cinco minutos, um tribunal que se limita a decidir se esta ou aquela decisão é constitucional, e se intromete em qualquer outro tipo de questão, ela passa imediatamente a ser um agente da tirania. Não há ninguém acima do STF; suas decisões, quaisquer que sejam, não podem ser revistas. Se é assim, e se os ministros podem decidir sobre todas as questões que existem, o tribunal começa a governar o país sem sofrer contestação — e sem ter sido eleito para governar coisa nenhuma. Isso se chama ditadura — sem tanque na rua e sem polícia secreta, mas ditadura do mesmo jeito. De forma idêntica, os fatos comprovam que o STF persegue grosseiramente os seus inimigos políticos, põe gente na cadeia, aplica multas exorbitantes, boicota a ação do governo, exige informações em ‘três dias’, abre inquéritos policiais, desrespeita objetivamente a lei. Como pode se queixar, então, de estar sendo ameaçado? É ele, na prática, que ameaça as pessoas. É demente” [Guzzo, 2022].

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