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PRIVATIZAÇÕES, A GRANDE TAREFA

PRIVATIZAÇÕES, A GRANDE TAREFA

MARINA HELENA SANTOS - EX-DIRETORA DE DESESTATIZAÇÃO E DESINVESTIMENTO DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA

No final da tarde de 28 de junho teve lugar mais uma Live do grupo “Altos Papos” coordenado, desde Campinas, pelo Dr. Antônio Roberto Batista. A convidada para a sessão foi a economista Marina Helena Santos, economista com mestrado pela UnB, com 18 anos de experiência no mercado financeiro, setor público e terceiro setor. Fundou o movimento Brasil sem Privilégios, é ex-Diretora de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia (2019) e ex-Ceo do Instituto Millenium.

Para Marina Helena Santos, os programas de privatização do governo naufragaram no Congresso. Os parlamentares, com honrosas exceções, via de regra, defendem com unhas e dentes as estatais. E vão criando todo tipo de obstáculos para uma sadia desestatização. Marina Helena considera que, embora vencida nas propostas de desestatização apresentadas pela sua secretaria, a luta contra o estatismo não pode parar e é necessário reafirmá-la, notadamente porque os setores mais carentes da sociedade brasileira já começam a entender a importância de contar com recursos provenientes do setor privado, para resolver os problemas fundamentais como os da saúde e da educação. Quando explicadas as coisas para os mais carentes, hoje, por incrível que pareça, estes setores vão comprando uma solução não estatal, se lhes forem mostradas as saídas cabíveis, por fora do tradicional estatismo.

O problema hoje radica em como tirar poderes ao Congresso para que não atrapalhe os planos de desestatização. A adoção do voto distrital em nível municipal, com recall, já seria um bom começo. Marina Helena confessa que decidiu largar o seu posto no governo quando observou a inoperância do Congresso no que tange às privatizações, embora o Executivo se mostrasse favorável a elas, a começar pelo Ministro da Economia e pelo próprio Presidente da República. Ela decidiu se candidatar para uma vaga na Câmara dos Deputados pelo Partido Novo.

Considero muito interessante o depoimento de Marina Helena Santos, quando fala dos motivos pelos que abandonou a Secretaria de Desestatização e Desinvestimento no Ministério da Economia e passou a trabalhar, novamente, no setor privado, tentando se eleger como parlamentar nesta campanha, a fim de melhor representar os interesses do eleitorado na pauta da desestatização. Marina Helena confessa que o trabalho no setor público é uma caixa de surpresas a cada dia que passa, pelo descobrimento da intrincada teia de solidariedade existente entre os políticos, no Parlamento, para manter as coisas como estão. É evidente que os Parlamentares, na sua maioria, beneficiam-se com as empresas estatais, contrariando o que seria o seu dever de representar os interesses dos cidadãos que os elegeram. Por isso, considera Marina Helena, seria necessário mudar primeiro a mentalidade dos representantes, para depois partir para a formulação, nas duas Casas Legislativas, de políticas públicas tendentes a diminuir a estatização. Far-se-ia necessária, primeiro, uma reforma política, a fim de garantir uma nova mentalidade dos Parlamentares, acorde com os interesses da sociedade.

Pessoalmente, após a minha própria experiência no Ministério da Educação, que durou apenas três meses, considero acertadas as razões de Marina Helena. Adicionaria um item: a necessidade de, paralelamente à tentativa de renovação dos parlamentares pelo voto, dedicar tempo ao estudo aprofundado da problemática do estatismo na nossa economia e das soluções que seriam cabíveis em termos de desestatização e de abertura para a iniciativa privada. O Brasil vem tentando formular esse tipo de políticas desde o início da abertura democrática, nos anos 80. Lembremos que foi criado o Ministério da Desburocratização, cujo primeiro titular foi Hélio Beltrão (1916-1997), advogado que era um humanista, profundo conhecedor da estrutura estatizante das nossas instituições. Ele desenvolveu, no Ministério da Desburocratização (que existiu entre 1979 e 1986), o primeiro esforço em prol da desestatização, no terreno dos procedimentos e das exigências burocráticas, para passar, posteriormente, a propostas no terreno das privatizações de empresas estatais. Encontrou enormes dificuldades para mudar procedimentos cartoriais e toda uma mentalidade favorável ao estatismo. Mas conseguiu alguns resultados, no terreno da desburocratização, no que tange à simplificação de normas e exigências cartoriais desnecessárias, que infernizavam a vida dos cidadãos.

No terreno da formulação de políticas públicas em prol da desestatização na área econômica, alguns Partidos da base aliada, como o PFL, apresentaram propostas que reforçaram as iniciativas de desburocratização originárias do Partido do Governo (o PSDB), ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. No seio do PFL vale a pena lembrar o excelente trabalho desenvolvido pelo professor Antônio Paim (1927-2001), um conhecido intelectual de inspiração liberal, que enfrentou com entusiasmo a possibilidade de formular políticas públicas desestatizantes. Vale a pena lembrar alguns dos trabalhos por ele apresentados ao Partido da Frente Liberal, alguns elaborados em companhia dos seus discípulos, como foi o meu caso. Cito-os na parte final deste trabalho. Eles servem como base de informação atualizada para os que pretendem seguir com a tarefa da desburocratização, seja no governo, seja no Parlamento, seja na gestão pública em geral.

O universo a ser atingido com programas de desestatização é imenso. A respeito, o professor Paim frisava, em 2007: “Em 1983, as empresas estatais empregavam 1.349.840 pessoas, número que configura uma enormidade, em termos de desperdício de recursos financeiros e de subemprego da força de trabalho. Considere-se, a propósito, que, em sua maioria, essas empresas são modernas ou modernizadas, o que significa que o seu coeficiente de capital implica o emprego de pouca mão de obra. Tomando-se como exemplo o setor elétrico, é fácil identificar a forma pela qual as estatais fomentam o empreguismo. As usinas geradoras de eletricidade implantadas no País são unidades modernas de grande porte. Para serem operadas com eficiência requerem apenas pequenos contingentes de mão de obra especializada. Não eram necessárias, por conseguinte, as trinta e oito empresas estatais organizadas para administrar esse conjunto. Desse modo, verifica-se que a natureza e as características de tais empreendimentos foram dissociadas das estruturas administrativas que lhes correspondem. A função de tais estruturas consiste em multiplicar os cargos de diretores e em aumentar os contingentes de funcionários subordinados para justificar uma safra tão prodigiosa de diretorias. Não se dispõe de nenhuma avaliação conclusiva acerca dos níveis alcançados pela estatização da economia brasileira”.

“Contudo, - continua Paim - o professor Mário Henrique Simonsen calculou a participação do Estado no conjunto dos investimentos, ao longo dos anos setenta e em parte da década seguinte, em 64%. Tenha-se presente que este resultado superpunha-se à estatização de quase 50% da economia, observada por Gilberto Paim nos começos do decênio de setenta. De sorte que não se deve considerar nenhum exagero a suposição de que os níveis de estatização da economia brasileira tenham chegado a 70%” [PAIM, A bem-sucedida privatização brasileira, 2007, p. 33].

Na Rússia pós-soviética, segundo Antônio Paim, houve uma lufada de pensamento liberal, por conta das reformas liberalizantes inspiradas por Yegor Guidar (1956-2009), que foi primeiro-ministro da Rússia (entre junho e dezembro de 1992). O diretor do Instituto da Terra da Universidade de Colúmbia, Jeffrey Sachs (1954-) chamou Guidar de “o líder intelectual das muitas reformas políticas e econômicas da Rússia e um dos pivôs do período”. Paim frisa que Guidar influiu sobretudo com a sua obra intitulada: Anomalies of Economic Growth (1997).

Em relação às reformas inspiradas e concretizadas por Guidar, frisa Paim: “No período subsequente (à queda do Muro de Berlim), o crescimento econômico da Rússia figurou entre os melhores desempenhos dos BRICS (devidos à China e Índia). (...). Ao balancear o ano de 2014 em sua fala oficial, Putin indicou que as sanções contra a Rússia aplicadas pelos Estados Unidos e parte da Comunidade Européia objetivam impedir que a Rússia reconquiste a posição de grande potência, que espera estar basicamente evitando o isolamento econômico. Tal posicionamento sugere que a política energética que instituiu tem em vista, precisamente, a reconquista do papel que chegou a desempenhar sua política européia”.

Segundo Paim, a lição a tirar da experiência democratizante da Rússia, no que tange ao desmonte do Estado Patrimonial, é de caráter duplo. Em primeiro lugar, deveríamos sepultar, definitivamente, a ambição de grande potência (que estava presente nos governos militares, no Brasil, e que ainda hoje assoma no horizonte geopolítico da Rússia, com o sonho de Putin de restabelecer o poderio do Império Czarista).

Em segundo lugar, deveríamos alimentar a certeza de que somente das privatizações não deverá emergir a derrubada, no Brasil, do velho Patrimonialismo, se não mudarmos as convicções morais que têm impedido o surgimento, no nosso país, de uma mentalidade nitidamente capitalista que valorize, do ângulo moral, a produção de riqueza. Paim retoma a tese de Samuel Huntington (1927-2008) na sua obra O choque de civilizações (1996), que reivindica o peso das tradições culturais. Ainda estaria presente, entre nós, o maior empecilho cultural, para que encontremos a mola comportamental da produção capitalista: o preconceito contrarreformista contra a riqueza, ensejado desde o século XVI pela Contrarreforma católica.

Paim considera que tal preconceito vicejou na expulsão dos judeus que financiaram o ciclo açucareiro em Pernambuco no século XVII, bem como nos preconceitos dos militares, já em meados do século XX, em face do enriquecimento capitalista [PAIM, Momentos decisivos da história do Brasil, 2020, pp. 127-128]. A presença da moral contrarreformista seria o preconceito vigente na mentalidade militar pós 64 contra a produção da riqueza, embora tivesse sido feita ampla reforma modernizadora nas indústrias de base e na infraestrutura do país. Paim cita, a respeito, o depoimento de importante líder militar do período, o general José Antônio de Alencastro e Silva (1918-2011), que foi presidente da TELEBRÁS, “sendo um dos principais responsáveis pela estatização do setor”. No seu livro intitulado: Telecomunicações – Histórias para a história [Rio de Janeiro: DIFEL, 1990, p. 133], Alencastro afirma: “(...) o lucro muitas vezes cheira mal. A vida me ensinou a aceitar, embora com repugnância, este determinismo do regime capitalista” [apud PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 3ª edição, 2018, p. 192].

Os mesmos preconceitos contra a produção de riqueza são revelados, por último, no affaire que rejeitou a entrada da grande indústria americana de computadores no Brasil, em meados dos anos 80, quando a cúpula militar e todos os setores sindicalizados ao redor do Estado, empresários, estudantes, profissionais liberais, engenheiros, médicos, etc. tomaram posição contra o oferecimento da IBM de instalar as suas fábricas de computadores pessoais no Brasil. Argumento: “não podemos abrir a porta para o capitalismo americano, que terminará nos invadindo”. Moral da história: os americanos foram instalar as suas fábricas de computadores na Coreia do Sul, no Japão e até na República Popular da China. No Brasil, foi criada, com apoio generalizado, a “Secretaria Especial de Informática”, vinculada à Presidência da República e controlada pelos engenheiros castrenses do Instituto Militar de Engenharia, com sede no Rio de Janeiro. A única voz dissonante foi a do senador Roberto Campos (1917-2001), cujas palavras em defesa de uma política de informática aberta ao mundo foram simplesmente ridicularizadas, como se se tratasse de uma proposta estratosférica veiculada por um paciente do Hospital Psiquiátrico Pinel [cf. PAIM, Gilberto, Computador faz política, Rio de Janeiro: Apec, 1985]. Nem precisamos explicar o resultado dessa política retrógrada: o Brasil ficou por fora da grande indústria da informática e essa maluquice se traduziu na nossa entrada tardia na aplicação da cibernética na educação, por exemplo. Como frisava o senador Roberto Campos: “O problema do Brasil é que tem, para o futuro, um grande passado de atraso”.

Bibliografia

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