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TEMPOS DE TRANSIÇÃO - O CIENTIFICISMO DA TOGA, HERANÇA DO DESPOTISMO ILUMINISTA

TEMPOS DE TRANSIÇÃO - O CIENTIFICISMO DA TOGA, HERANÇA DO DESPOTISMO ILUMINISTA

SIR WILLIAM PETTY (1623-1687) AUTOR DA OBRA INTITULADA:

Meus sentimentos, nas últimas semanas, foram de indignação com o autoritarismo do TSE e de solidariedade para com os miles de brasileiros que saíram às ruas a fim de externar o seu inconformismo, em face da forma em que foi surrupiada, aos cidadãos, a possibilidade de se manifestar contra as irregularidades no recente ciclo eleitoral.

É proibido “pensar”. É proibido “falar”. É proibido “se manifestar”. Como se a nossa Constituição não garantisse, e todos nós, esses democráticos direitos! Maligna forma de burocratas autoritários do TSE comemorarem os 200 anos da nossa Independência! Já tem até deputado da esquerda alucinada pedindo a confecção de estátuas em homenagem a um dos ministros do mencionado órgão, como “cabra macho” e “moralizador da política brasileira”, para serem espalhadas por praças, avenidas e parques deste imenso “latifúndio”. Porque é disso que se trata: o eminente juiz nos encara como se capataz fosse do Grande Engenho chamado Brasil!

Sinceramente, até hoje, os brasileiros não foram convencidos acerca da lisura do pleito eleitoral. Caladas as vozes dos descontentes pela espada de Dámocles da censura, as urnas, contudo, falaram mais alto no primeiro turno, elegendo uma base parlamentar de oposição muito expressiva, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado. Foram eleitos, para o Senado, além do ex-Ministro Sérgio Moro que conduziu o julgamento da Lava-Jato, o atual vice-Presidente da República, general Hamilton Mourão e, para a Câmara dos Deputados, o ex-procurador Deltan Dallagnol, um dos que se notabilizaram na citada Operação.

Em matéria de originalidade, o presidente do TSE e alguns dos seus colegas do STF ficaram na repetição da ladainha do absolutismo, que já parecia esconjurada da nossa vida pública. Para dar vida nova ao ex-presidente Lula, que pagava pelos seus crimes na cadeia, os eminentes causídicos houveram por bem anular um julgamento, como foi o da Lava Jato, que foi conduzido de forma transparente e cumprindo com todas as exigências processuais, tendo a sentença condenatória sido ratificada – e ainda agravada - pelos Tribunais Superiores competentes. Nunca na história deste país se deu tal grau de eficácia de revisionismo jurídico e histórico. O desmonte do processo legal, pelo caminho da filigrana advocatícia, teve o seu Mecanismo autoritário sagrado como prática normal.

Alguns dos juízes da atual safra de autocratas, aliás, tinham deixado entrever de onde importaram as suas esclarecidas soluções. Um deles confessou que tinha se tornado “liberal” à maneira pombalina. Outro falou em “formatar a opinião pública brasileira”, com a ajuda da ciência e da técnica. Ora, qual a doutrina à qual se ligavam os eruditos togados? Era a “Aritmética Política pombalina”, pensada em meados do século XVIII por Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Marquês de Pombal, inspirado na obra do economista, médico e filósofo britânico Sir William Petty (1623-1687) intitulada: Aritmética Política. Destaquemos que William Petty estudou anatomia e medicina na Holanda, onde se instalou ao ensejo da guerra civil que grassava na Inglaterra. Tendo regressado a Londres, foi secretário particular do grande pensador Thomas Hobbes (1588-1679),  do qual recebeu decisiva influência no que tange à concepção absolutista do governo. Sir William Petty foi também amigo do eminente cientista  Robert Boyle (1627-1691) e se aliou a Oliver Cromwell (1599-1658), quando da proclamação da República, tendo colaborado na organização do New Model Army, em que se apoiou o protetorado de Cromwell. Na Holanda, Petty conheceu, também, o filósofo francês René Descartes (1596-1650).

À luz da teoria da "Aritmética Política" de Petty, o Ministro absolutista de Dom José I (1714-1777) "formatou" a opinião pública, para que ninguém oferecesse resistência às luzes do Despotismo Esclarecido. Pombal realizou a façanha de disciplinar o pensamento dos portugueses na segunda metade do século XVIII, a fim de garantir o salto da Idade Média à Modernidade presidida pela Ciência. O Marquês transferiu, celeremente, do foro eclesiástico para a alçada do Estado Absolutista (na Real Mesa Censória), os odientos processos inquisitoriais, e transformou a nobreza de sangue em estamento de funcionários públicos a serviço incondicional do Rei. Recordemos que tudo isso ocorreu após o trágico terremoto de Lisboa, que em 1755 destruiu 85% da cidade e matou perto de 70 mil pessoas. No Brasil da pós-pandemia, em 2022, o TSE decidiu também “formatar”, autocraticamente, a opinião pública para que ninguém discordasse das suas medidas salvadoras.

Original providência? Certamente não, a julgar pela forma com que, séculos atrás, Ivã IV o Terrível (1530-1584) pós em funcionamento o mecanismo que os russos chamam de “oprichnina”, ou seja, um conjunto de providências despóticas para aplainar o caminho rumo ao poder total, mediante o surgimento de uma nova nobreza de funcionários públicos, incondicionais servidores do Czar (os denominados cargos “tchin”) e contando com a organização de uma Guarda de Corp de mil homens para garantir a segurança do soberano, fundador da Dinastia Románov, inaugurada pelo próprio Ivã IV a partir do seu casamento com Anastacia Románovna (1530-1560), filha de um abastado “boyardo”.

O Poder dessa dinastia, que herdou a grandiosidade da “Segunda Roma”, Bizâncio, revelou-se incomparável: em 300 anos, os Czares Románov alargaram o reino mediante a expansão de aproximadamente 130 quilômetros quadrados por dia, tornando a Rússia o maior Império do Mundo em extensão territorial. Era possível, sim, Portugal se converter numa potência moderna, garantindo estrategicamente as suas conquistas pelo mundo afora, notadamente no Brasil. Ora, tal empreendimento deveria se apoiar, necessariamente, na ciência moderna, como fez a Inglaterra na construção do seu grande Império. “A ciência aplicada a serviço do Estado” – escrevia Pombal ao Soberano português, nas suas Observações Secretíssimas, quando desempenhava em Londres o cargo de embaixador, eis “a grande novidade da política inglesa”, que fez de uma ilha o centro de um vasto império mundial, ocupando a sua principal colônia, a Índia, com rapidez estratégica e dotando-a de invejável infraestrutura que se estendia até os mais recônditos domínios, tornando-a fornecedora das mercadorias que a Armada de sua Majestade Britânica comercializava pelo mundo afora. Trocado em miúdos: o pequeno Reino de Portugal poderia se converter, celeremente, numa grande potência, utilizando, como fez a Inglaterra, a ciência moderna na gestão dos seus negócios públicos.

Nisso consistia a “Aritmética Política” apregoada por Pombal, que deixou por estas terras entusiastas seguidores, como frei Caneca (1779-1825), que alegava que os males do Brasil decorriam da ausência de “geometria” na gestão dos negócios públicos, ou Getúlio Vargas (1883-1954) que considerava que o Brasil progrediria mediante o “equacionamento técnico” dos problemas. Os bravos togados que ora desabam sobre nós com ameaças e providências autocráticas, inserem-se, também, nessa longa herança de despotismo iluminista.

BIBLIOGRAFIA

MAXWELL Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

MONTEFIORE, Simon Sebag. Os Románov – 1613-1918. (Tradução de C. Carina, D. Bottmann, D. M. Garschagen, R. Guerra e R. W. Galindo). São Paulo: Companhia das Letras, 2016

PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

PAIM, Antônio (organizador). Pombal e a cultura brasileira. (Ensaios de: Adolpho Crippa, Antônio Paim, Duarte Klut, Elpídio Marcolino Cardoso, Ricardo Vélez Rodríguez e Tiago Adão Lara). Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro / Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982.

PETTY, Sir William e QUESNAY, François. Obras econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores).

TROYAT, Henri. Ivan, o Terrível. (Tradução de Célia Dourado). São Paulo: Círculo do Livro / Editorial Nórdica, 1992.