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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 15ª - HEGEL (1770-1831) E A DIMENSÃO HISTÓRICA DA PERSPECTIVA TRANSCENDENTAL

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 15ª - HEGEL (1770-1831) E A DIMENSÃO HISTÓRICA DA PERSPECTIVA TRANSCENDENTAL

GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL (1770-1831), PAI DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA.


Hegel, quando exerceu o cargo de Professor na Universidade de Heidelberg (1816)



Coube a este pensador realizar a complementação da perspectiva transcendental kantiana, colocando-a no contexto da história. Em Kant, embora encontremos referências à problemática da razão no período iluminista, no entanto não aparece tematizada, de forma explícita, a dimensão histórica da mesma. Ora, Hegel realizou a sistematização da perspectiva transcendental, destacando a forma dialética em que o espírito humano perpassa pelos diferentes momentos da sua caminhada histórica. A História faz parte da dimensão humana. Como frisou, com propriedade, Karl Jaspers (1883-1969), "Se saíssemos da História, tombaríamos no nada" [Jaspers, 2006: 34].

Hegel nasceu em Stuttgart, em 1770 e faleceu em 1831, em Berlim, desempenhando o cargo de reitor da Universidade. Em 1790, o nosso autor obteve o grau de Magister Philosophiae no Seminário Teológico de Tübingen. Em 1795 publicou a sua primeira obra, a Vida de Jesus. Recomendado por Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832), Hegel foi nomeado professor extraordinário da Universidade de Jena.

Nos anos de 1806-1807 publicou a sua obra-mestra, a Fenomenologia do Espírito. Em 1811 casou-se com Marie Von Tucher. No ano de 1816 foi nomeado para a cátedra de filosofia da Universidade de Heidelberg. As suas Lições de história da filosofia (1817) sintetizam as aulas que o mestre deu nessa Universidade. Em 1818 foi nomeado catedrático de filosofia da Universidade de Berlim. Em 1821, o nosso autor publicou os seus Princípios da Filosofia do Direito. Em 1829, Hegel foi eleito reitor da Universidade de Berlim.

As principais obras de Hegel são as seguintes:

Vida de Jesus (1795),

Fenomenologia do Espírito (1806-1807),

Ciência da lógica (1812-1813),

Enciclopédia das ciências filosóficas (1817),

Lições de história da filosofia (1817),

Princípios de filosofia do direito (1821),

Lições de filosofia da história (1821),

Lições de filosofia da religião (1821).

Nos seguintes 5 pontos pode ser sintetizada a concepção de Hegel, quanto à forma histórica em que se desenvolve a criação filosófica:

1 – Hegel é o fundador da História da Filosofia.

Como entendia o pensador alemão essa disciplina? Nas suas Lições sobre história da filosofia, Hegel afirma que "A história da filosofia só considera uma filosofia, um só ato, repartido, porém, em graus diferentes. Nunca houve senão uma filosofia, o conhecimento do espírito por ele mesmo" [Hegel, 1981: 41].

Mas se para o filósofo alemão há esse conceito radical e único, ele não exclui, no entanto, muito pelo contrário, pressupõe as várias manifestações do espírito ao longo da história da cultura humana. Por isso, na obra mencionada, Hegel afirma também que "Falar de numerosas filosofias significa dizer que são os graus necessários ao desenvolvimento da razão que se torna consciente dela mesma, do Uno. (...). Só há uma razão (...). A filosofia é a razão que se apreende na forma do pensamento, que se torna consciente de modo a objetivar-se, a conhecer-se na forma do pensamento" [Hegel, 1981: 41].

Na tarefa de dar embasamento histórico à caminhada da razão humana, Hegel retomou temas da filosofia pré-socrática, como por exemplo, a ideia de “alma do mundo” presente em Heráclito de Éfeso (500-450 a.C.) e outros pensadores do período. Esse conceito, entre os gregos, tinha fundamentação no pressuposto da existência de condições objetivas presentes na Natureza, que possibilitariam, como uma espécie de “oxigênio”, a apreensão, pela razão, de emanações provenientes da fysis. Pela respiração, dizia Heráclito, apreendemos, numa primeira instância, o mundo dos fenômenos naturais. Vida longa teve essa imagem no pensamento ocidental, se atendermos para o fato de que, na Renascença italiana, ela estava presente na obra de um autor da talha de Giordano Bruno (1548-1600).

O conceito de “alma do mundo” estava presente na filosofia gnóstica, nos primeiros séculos da era cristã, e na tarefa, assinalada ao homem, de encontrar a plenitude da sua capacidade de pensar, de onde proviria a libertação interior. É sabido que, na Idade Média, tal ideia libertadora foi encampada pela teologia de Joaquim de Fiore (1135-1202), que elaborou amplo esquema da caminhada da razão, à sombra da teologia trinitária. Deus Pai criou o Mundo, Deus Filho remiu o gênero humano do pecado e Deus Espírito Santo o conduziria, apenas pela força conferida por Deus à razão, à sua plenitude. A “alma do mundo” teve uma configuração trinitária no discurso do monge calabrês, e se exprimiu de forma triâdica no tempo, na gnose moderna, conforme as pesquisas desenvolvidas pelo cardeal Henri de Lubac (1896-1991) [cf. Lubac, 1979; 1981]. Em Hegel, como, aliás, também em Descartes (1596-1650), esse clima objetivo e dessacralizado passou a ser, na modernidade, condição pré-existente da razão.

Resumindo: encontramos em Hegel a retomada da gnose grega e a encampação da teologia trinitária, notadamente à sombra do “Espírito Santo”, conceito que deixou os seus aspectos numinosos presentes na Teologia Neotestamentária, para dar vazão à antiga tradição gnóstica dos pensadores helenísticos, enriquecendo esse processo com dois conceitos apresentados pela teologia agostiniana: a idéia linear (e não mais cíclica) de tempo, e a direção progressista da temporalidade (de caráter triâdico de que se revestiu a nova gnose libertadora). A salvação já não seria obra sobrenatural a ser completada pelo Espírito Santo, mas ação imanentista, de índole prometeica, em que o homem se liberta a si mesmo, graças à evolução da sua capacidade de pensar [cf. Vélez, 1982b; 1983; 1984a, 1984b]. Do lado cristão, a definitiva dessacralização da libertação humana pelo Espírito, apareceu claramente desenhada na teologia de Joaquim de Fiore, cuja máxima manifestação, na modernidade, foi a obra de Hegel.

O filósofo alemão, com a sua dialética triâdica (tese – antítese – síntese) representou a versão mais acabada dessa evolução imanentista da Razão rumo à sua plena libertação, no seio do conceito de “Espírito Absoluto”. O historicismo hegeliano encontrou, de outro lado, fontes imediatas para se inserir na trilha do pensamento moderno. As mais importantes foram as traçadas pelo pensador italiano Giambattista Vico (1668-1744) e pelo historiador do Direito e filósofo alemão Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) [cf. Voegelin.  1979].

As numerosas filosofias a que se refere Hegel são, de um lado, as várias manifestações nacionais da meditação filosófica e, de outro, os vários sistemas. A compreensão dessa totalidade é que constitui o cerne da história da filosofia, ou seja, a apreensão do espírito na sua ação criadora. Referindo-se às filosofias nacionais, o pensador alemão considera que elas surgem e evoluem no contexto do esforço do um povo na busca da sua identidade. Quando as instituições se degradam, o espírito humano volta sobre si mesmo e desse movimento de identidade emerge uma nova síntese cultural. Compreender esse movimento dialético do espírito, eis uma das tarefas da história da filosofia.

A respeito, escreve Hegel: "Para que a filosofia surja num povo, é preciso que esse povo comece a abandonar sua vida concreta, a satisfação que lhe proporciona sua vida real (...). Sócrates e Platão surgiram quando desapareceu o interesse pelas coisas públicas. A realidade, a vida política, não mais lhes trazia satisfação, e a procuraram no pensamento; procuraram, em si mesmos, algo mais perfeito que o grau supremo em relação à constituição política. Em Roma, também, a filosofia se difundiu somente quando declinou a vida propriamente dita, (...) na época do despotismo dos imperadores romanos, das desgraças do império, quando foi abalada a vida política, moral e religiosa. Encontramos, ainda, essa mesma situação nos séculos XV e XVI, quando a vida germânica da Idade Média assumiu outra forma, quando o espírito dos povos não encontrou mais sua satisfação onde até então a encontrara. Outrora, a existência política constituía uma unidade com a religião, e a Igreja ainda reinava, apesar da luta que sustentava contra o Estado. Agora, porém, ocorre a ruptura entre o Estado, a vida cívica, moral, política e a Igreja; e, nessa época, começaram (os pensadores) a dedicar-se à filosofia, a princípio, é verdade, seguindo a escola das velhas filosofias, somente mais tarde pensou-se por conta própria. É preciso sempre que se manifeste uma divisão com o exterior, quando não há mais harmonia interior entre o que o espírito deseja e aquilo que o deve satisfazer; é então que se produz a filosofia" [Hegel, 1981: 136-140].

Em relação aos sistemas e à forma em que eles devem ser estudados de um ponto de vista dialético e global, que permita desvendar a força criadora do espírito, escreve Hegel: "Todo princípio do entendimento é unilateral e esse caráter se revela em que o outro princípio lhe é oposto. Ora, esse outro princípio também é unilateral. A totalidade, enquanto unidade que os une, não se encontra neles, não existe, inteiramente, senão no curso da evolução. Assim é que o epicurismo se opõe ao estoicismo, como a substância de Espinosa [enquanto] unidade absoluta, à unidade da mônada de Leibniz, à individualidade concreta. O Espírito que se desenvolve integra também o aspecto exclusivo de um princípio, fazendo aparecer o outro. A segunda forma, forma superior da negação, consiste em unir, em uma totalidade, as diversas filosofias, de tal sorte que nenhuma permaneça em sua independência, mas pareçam todas ser partes de uma só filosofia" [Hegel, 1981: 41].

Em síntese, a história da filosofia para Hegel abarca dois momentos: um, atrelado à história e que consiste no estudo das manifestações concretas da razão, materializadas nas filosofias nacionais e nos sistemas. Outro, global, identificado com o esforço da razão por encontrar-se a si própria, em meio ao processo histórico, mas se restringindo a um momento determinado. É o que Hegel identifica como "necessidade interna da razão".

A este respeito, o filósofo alemão escreve: "Recolhemos os pensamentos historicamente tais como se apresentaram nos indivíduos particulares, etc.; é uma evolução no tempo mas conforme à necessidade interna da razão. Somente essa concepção é digna da história da filosofia; o verdadeiro interesse dessa história está em nos mostrar que, também aqui, tudo se passou no mundo de acordo com a razão: (...) essa história é o desenvolvimento da razão pensante; seu vir-a-ser deve ter-se passado de acordo com a razão" [Hegel, 1981: 43].

Nem a história da filosofia ficaria completa sem o estudo das filosofias nacionais e dos sistemas, nem ficaria completa sem a visão do conjunto que revela a necessidade interna da razão. Aos espíritos dogmáticos da contemporaneidade, que teimam em desconhecer a dimensão histórica da filosofia, lembra o pensador alemão: "A progressão da filosofia é necessária. Toda filosofia surgiu, necessariamente, na época de seu aparecimento. Toda filosofia surgiu no momento em que devia: nenhuma ultrapassou seu tempo; todas apreenderam, pelo pensamento, o espírito de sua época (...). O conjunto da história da filosofia apresenta uma progressão em si, conseqüente, necessária; é racional em si, livre em si, determinada por si mesma, pela ideia" [Hegel, 1981: 43].

2 - A concepção histórica da filosofia pressupõe as várias manifestações do espírito, ao longo da história da civilização.

Nas Lições de história da filosofia, Hegel escreve a respeito: “Falar de numerosas filosofias significa dizer que são os graus necessários ao desenvolvimento da razão que se torna consciente dela mesma, do Uno (...). Só há uma razão (...). A filosofia é a razão que se apreende na forma do pensamento, que se torna consciente de modo a objetivar-se, a conhecer-se na forma do pensamento” [Hegel, 1981: 41].

As numerosas filosofias são, de um lado, as várias manifestações nacionais da meditação filosófica e, de outro, os vários sistemas. A compreensão dessa totalidade é que constitui o cerne da história da filosofia, ou seja, a apreensão do espírito na sua ação criadora. Essa apreensão do espírito humano por si mesmo se dá no seio da tomada de consciência de um povo dos seus valores fundantes. É o que Hegel denominava de Volkgeist (Espírito do Povo). As filosofias nacionais surgem e evoluem, no contexto do esforço de um povo na busca da sua identidade. Quando as instituições se degradam, o espírito humano volta sobre si mesmo e desse movimento de identidade emerge uma nova síntese cultural.

Compreender esse movimento dialético do espírito, eis a grande tarefa da história da filosofia. A respeito, escrevia o filósofo: “Para que a filosofia surja num povo, é preciso que esse povo comece a abandonar sua vida concreta, a satisfação que lhe proporciona sua vida real (...). Sócrates e Platão surgiram quando desapareceu o interesse pelas coisas públicas. A realidade, a vida política, não mais lhes trazia satisfação, e a procuraram no pensamento; procuraram, em si mesmos, algo mais perfeito que o grau supremo em relação à constituição política” [Hegel, 1981: 38-39].

Os sistemas filosóficos devem ser compreendidos nesse contexto dialético de busca de um povo pela sua identidade. Eles são filhos do seu tempo. A respeito, Hegel escrevia: “Todo princípio do entendimento é unilateral e esse caráter se revela em que o outro princípio lhe é oposto. Ora, esse outro princípio também é unilateral. A totalidade, enquanto unidade que os une, não se encontra neles, não existe, inteiramente, senão no curso da evolução. Assim é que o epicurismo se opõe ao estoicismo, como a substância de Espinosa (enquanto) unidade absoluta se opõe à Mônada de Leibniz, à individualidade concreta. O Espírito que se desenvolve integra também o aspecto exclusivo de um princípio, fazendo aparecer o outro. A segunda forma, forma superior da negação, consiste em unir, em uma totalidade, as diversas filosofias, de tal sorte que nenhuma permaneça em sua independência, mas pareçam todas ser as partes de uma só filosofia” [Hegel, 1981: 41].

3 - A História da Filosofia abarca dois momentos: um, atrelado à história e que consiste no estudo das manifestações concretas da razão, materializadas nas filosofias nacionais e nos sistemas. Outro, global, identificado com o esforço da razão por se encontrar a si própria, em meio ao processo histórico, mas não se restringindo a um momento determinado.

É o que Hegel identifica como “necessidade interna da razão”. A respeito, o nosso autor escrevia: “Recolhemos os pensamentos historicamente tais como se apresentaram nos indivíduos particulares (...). É uma evolução no tempo, mas conforme à necessidade interna da razão. Somente essa concepção é digna da história da filosofia; o verdadeiro interesse dessa história está em nos mostrar que, também aqui, tudo se passou no mundo de acordo com a razão (...). Essa história é o desenvolvimento da razão pensante; seu vir-a-ser deve ter-se passado de acordo com a razão” [Hegel, 1981: 43].

Nem a história da filosofia ficaria completa sem o estudo das filosofias nacionais e dos sistemas, nem ficaria completa sem a visão de conjunto que revela a necessidade interna da razão.

O filósofo dedicou, ao estudo do primeiro aspecto (filosofias nacionais e sistemas), as suas Lições de história da filosofia. Já para estudar o segundo aspecto (visão de conjunto que revela a necessidade interna da razão), o pensador escreveu o seu tratado fundamental, a Fenomenologia do espírito. A respeito da validade do estudo de ambos os aspectos mencionados, o nosso pensador escrevia o seguinte: “A progressão da filosofia é necessária. Toda filosofia surgiu, necessariamente, na época do seu aparecimento. Toda filosofia surgiu no momento em que devia: nenhuma ultrapassou seu tempo; todas apreenderam, pelo pensamento, o espírito de sua época (...) O conjunto da história da filosofia apresenta uma progressão em si, conseqüente, necessária; é racional em si, determinada por si mesma, pela idéia” [Hegel, 1981: 43].

Destacando essa progressão consequente, necessária e racional da história da filosofia, destaca Hegel: “A filosofia desponta num determinado momento de desenvolvimento da cultura. Contudo os homens não criam uma filosofia ao acaso: é sempre uma determinada filosofia que surge no seio dum povo, e a determinação do ponto de vista do pensamento é idêntica à que se apodera de todas as demais manifestações históricas do espírito desse povo, está em íntima relação com elas e delas constitui o fundamento. Deste modo, a forma particular duma filosofia é sincrónica com uma constituição particular do povo, onde ela aparece, com as suas instituições, com as suas formas de governo, com a sua moralidade, com a sua vida social, com as atitudes, hábitos e preferências, com as tentativas e produtos científicos, com a sua religião, com os seus êxitos militares, com todas as circunstâncias externas, não menos que com a decadência dos Estados em que este princípio particular impusera a sua supremacia, e com a formação e progresso de novos Estados, nos quais surge e se desenvolve um princípio mais alto. Sempre que o espírito alcançou determinado grau da sua autoconsciência, elabora e faz penetrar este princípio em toda a riqueza das suas múltiplas relações. Este rico espírito dum povo é um organismo, semelhante a uma catedral que, composta de numerosas abóbadas, naves, colonadas e vestíbulos, é sempre manifestação dum todo, duma unidade, cujas partes se coadunam para um fim. A filosofia é uma forma destes múltiplos aspectos. E qual é essa forma? É a flor excelsa, o conceito de espírito na sua totalidade, a consciência e essência espiritual de todo o conjunto, o espírito do tempo como espírito presente e que se pensa a si próprio. Este todo multíplice reflete-se nela como num único foco, no conceito que se conhece a si mesmo (...)” [Hegel, 1980: 101-102].

4 - A dinâmica da filosofia, segundo Hegel, obedece a uma ascensão sine fine.

Nesse processo,

• O Espírito Humano (Volkgeist) intui a Ideia que se desdobra, dialeticamente, em três momentos: 1 - Manifestações do Espírito Absoluto (Arte, Religião, Filosofia). 2 - Manifestações do Espírito Subjetivo (Psicologia, Antropologia, Fenomenologia do Espírito). 3 - Manifestações do Espírito Objetivo (Moralidade Superior, Direito, Moralidade Jurídica).

• Com o passar do tempo, ocorre a Crise das Manifestações do Espírito, que não se sente representado nas suas criações culturais e que, insatisfeito, busca novas manifestações.

• O Espírito Humano (Volkgeist), então, volta sobre si mesmo e intui outra Ideia que se desdobra, dialeticamente, em três momentos, e assim sucessivamente, sem que o processo tenha um fim previsto.

Para Hegel, haveria uma traição à busca do Espírito Humano pela sua identidade, quando este se prendesse a uma manifestação concreta do Espírito, identificando toda a sua riqueza com uma determinada forma (de organização política, por exemplo). Isso, paradoxalmente, aconteceu quando o Estado Prussiano terminou sendo elevado, pelo filósofo, à ordem de realidade superior, ao identificar o Reino de Frederico Guilherme III da Prússia (1770-1840), como a máxima manifestação do Espírito, ensejando o rompimento com os discípulos da esquerda hegeliana, aglutinada ao redor da manutenção da dialética aberta do Espírito.

5 - Hegel e as origens do pensamento sociológico moderno.

A influência de Hegel na formatação da moderna sociologia francesa deu-se através da inspiração que exerceram as ideias hegelianas num dos autores que fundaram essa disciplina, François Guizot (1787-1874). O sociólogo francês entendia a sociedade europeia numa dupla perspectiva: sociopolítica e cultural. Em ambos os contextos, identificava a essência da realidade como fundamentalmente dialética, na trilha do pensamento hegeliano. O hegelianismo de Guizot não provinha de uma leitura direta das obras do filósofo alemão, mas da influência que sobre ele teve outro pensador francês, Victor Cousin (1792-1867), que tinha sido aluno de Hegel em Heidelberg e, depois, em Berlim. Cousin foi Ministro da Instrução da França e instaurou o ensino da História da Filosofia segundo o modelo imaginado por Hegel.

No terreno da história da cultura, Guizot considerava, à maneira hegeliana, que a civilização europeia era fruto do confronto entre dois princípios que se contrapunham dialeticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot escrevia na sua obra intitulada: Histoire de la Civilisation em Europe, depuis la chute de l’ Empire Romain jusqu’ a la Révolution Française: "Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (....). A Europa tratava de sair desse estado (...). Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobretudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade de imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de barbárie" [Guizot, 1864: 82-83; cf. Vélez, 2002: 88-118].

Esses dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência histórica concreta. O pensador francês achava que essa foi a missão dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno (742-814). Em relação a esses importantes atores da história humana, frisava Guizot: "Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como se estes constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde tirânico, e que comete mil iniquidades, mil erros, pois é acompanhado pela fraqueza humana; poder, no entanto glorioso e salutar, pois ele imprime à humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento" [Guizot, 1864: 84].

No terreno sociopolítico, Guizot considerava que a realidade da Europa era constituída pela dialética da luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês tinha consciência de que a época era a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificavam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Esta devia acordar e despertar a sua consciência de que se tratava de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista [cf. Rosanvallon, 1985].

Eis aí, formulado claramente, o conceito da consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Karl Marx (1818-1883) fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Gueorgui Plekhanov (1856-1918), aliás, formulador das bases ideológicas do marxismo russo, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considerava-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que era chamada à responsabilidade histórica de garantir o exercício da liberdade. Acerca da influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon [1985: 394]: "Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de luta de classes". Plekhanov, aliás, na sua obra intitulada: Os princípios fundamentais do marxismo, considerava que Marx descobriu a concepção materialista da história, inspirado em parte na teoria do interesse material que movimentava as classes sociais, presente nas obras de Guizot, François Mignet (1795-1884) e Augustin Thierry (1795-1856) [cf. Plekhanov, 1989: 59].

A limitação de Marx, convenhamos, decorreu do fato de ter apreendido esse legado hegeliano, num contexto em que era anulado o conflito entre as classes, mediante a destruição da burguesia e a absolutização dos interesses do proletariado. Movimento evidentemente contrário à tendência do espírito de buscar novas formas de manifestação do seu movimento interior, preservando a liberdade. Os conceitos sugeridos por Hegel, ao redor da luta de classes, apontavam para uma dinâmica criadora que superasse o conflito na busca de um consenso possível, o que de fato estava mais próximo de uma visão liberal do processo, que reconhece a legitimidade dos interesses, num pano de fundo de negociação entre eles, sem simplificações que eliminassem um dos focos da tensão. A "prova da história" confirmou a validade desta última saída: a forma em que evoluiu a luta de classes, na Alemanha, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, à luz da magna contribuição de Eduard Bernstein (1850-1932), no sentido de disciplinar os trabalhadores para fazerem representar os seus interesses no Parlamento democraticamente eleito, partindo para uma ação reformista no seio deste, avaliza uma interpretação democratizante e humanística da "luta de classes", no seio das reformas sociais ensejadas pelos trabalhadores na sua luta parlamentar.

A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçassem o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consistia, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que era fruto do entrechoque das opiniões. Indubitável influência, em Guizot, da dialética hegeliana. Tocqueville (1805-1859), convenhamos, buscou a solução do problema do antagonismo entre as classes de uma forma bastante criativa, radicalizando a ideia liberal de busca da liberdade para todos e não apenas da burguesia [cf. Vélez, 1998].

Não é por demais lembrar que o autêntico sentido do "historicismo", reivindicado por Hegel, pressupõe toda a dinâmica da pessoa e a liberdade do espírito. A propósito, lembrava Benedetto Croce (1866-1952) no seu clássico livro intitulado A história como façanha da liberdade:  "Historicismo é criação da ação própria, do próprio pensamento, da própria poesia, a partir da consciência presente do passado; cultura histórica é o hábito ou virtude conquistada de pensar e agir assim; educação histórica é a formação desse hábito. Para jogar luz mais clara sobre o caráter do historicismo, será útil aproximar essa palavra, que possui origens recentes e significado variável e oscilante, da outra, bastante antiga, e secularmente adotada e de uso corrente, se bem varia também na sua significação (como, aliás, todos os vocábulos): 'humanismo' . A  aproximação ajudará a compreender um e outro conceito e poderá ir seguida de uma identificação de ambas nesta fórmula: que o historicismo é o verdadeiro humanismo, quer dizer, a verdade do humanismo" [Croce, 1992: 285-286].

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