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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 20º - A PROBLEMÁTICA DA CORPOREIDADE NA FILOSOFIA NEOKANTIANA

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 20º - A PROBLEMÁTICA DA CORPOREIDADE NA FILOSOFIA NEOKANTIANA

ERNST CASSIRER (1874-1945) E OS RUMOS CONTEMPORÂNEOS DA ANTROPOLOGIA NUMA PERSPECTIVA NEOKANTIANA

A problemática da corporeidade corresponde, hoje, no seio da filosofia universal, bem como no contexto mais restrito da meditação brasileira, a importante parcela da antropologia filosófica. Poderíamos frisar, sem exagero, que ela polariza, hodiernamente, as mais destacadas contribuições nesse específico terreno.

Abordarei a temática em apreço, em três itens: 1 – A crise do conhecimento do homem. 2 – Uma chave da natureza do homem: o símbolo. 3 – A função expressiva e o problema da corporeidade.

Alicerçar-me-ei na obra do pensador que, a meu ver, elaborou de forma mais completa a meditação antropológica, à luz dos pressupostos kantianos: Ernst Cassirer (1874-1945). Tenho consultado a sua Filosofia das formas simbólicas [Cassirer, 1971/1976: 3 vol.], bem como a Antropologia filosófica [Cassirer, 1987].

1 – A crise no conhecimento do homem.

Nenhuma disciplina filosófica, como a Antropologia, atinge tão de cheio a nossa razão de existir. Talvez por isso, conforme salienta Cassirer, essa disciplina reveste-se de dramaticidade. Além do mais, é nela que emergem as contradições que acompanham a vida humana. Mas, ao mesmo tempo, e reforçando a pertinência desta última observação, podemos dizer que nenhuma disciplina filosófica, como a Antropologia, tem experimentado, ao longo de sua história, tantas versões desencontradas. 

A propósito deste paradoxo, escreve Cassirer na sua Antropologia filosófica: “(...). A filosofia moderna começou com o princípio de que a evidência do nosso próprio ser é invencível e invulnerável. Mas o progresso do conhecimento psicológico dificilmente confirma este princípio cartesiano. A tendência geral do pensamento dirige-se, atualmente, em direção ao pólo oposto. Poucos psicólogos modernos reconheceriam ou recomendariam um puro método de introspecção. Em geral, dizem-nos, que um método semelhante é verdadeiramente precário. Estão convencidos de que não é possível abordar uma psicologia científica, senão com uma atitude behaviorista e objetiva; mas um behaviorismo consistente e radical tampouco atinge seu fim. Pode nos alertar para possíveis erros metódicos, mas não resolver todos os problemas da psicologia humana. Podemos criticar o ponto de vista puramente introspectivo ou recear dele, mas não suprimi-lo ou eliminá-lo. Sem introspecção, sem uma percepção imediata dos sentimentos, emoções, percepções, pensamentos, com dificuldade poderíamos definir o campo da psicologia humana. Devemos reconhecer, no entanto, que seguindo exclusivamente por esse caminho, jamais chegaremos a uma visão abrangente da natureza do homem. A introspecção revela-nos tão somente aquele pequeno setor da vida humana que é acessível à nossa experiência individual; jamais poderá cobrir, completamente, o campo inteiro dos fenômenos humanos. Ainda no caso de que pudéssemos juntar e combinar todos os dados, estaríamos de posse de um quadro bem pobre e fragmentário, um simples torso da natureza humana” [Cassirer, 1987: 15-16].

Outro pensador contemporâneo, Martin Buber (1878-1965) destaca, também, a perplexidade que acompanha à Antropologia, como reflexão sistemática acerca do homem, na trilha da “Antropologia em sentido pragmático” assinalada por Kant (1724-1904), como “ciência das máximas supremas do uso da nossa razão”, sendo que se pode delimitar o campo dessa filosofia em sentido universal, mediante estas quatro perguntas: “1 – Que posso saber? 2 – Que devo fazer? 3 – O que me cabe esperar? 4 – O que é o homem?”. Ora, frisa Cassirer, o filósofo de Königsberg diria: “à primeira pergunta responde a metafísica, à segunda a moral, à terceira a religião e à quarta a antropologia”. “No fundo – afirma Kant – todas essas disciplinas poder-se-iam refundir na Antropologia, porque as três primeiras questões revertem na última”.

“Mas, coisa surpreendente – considera Cassirer – nem a Antropologia que publicou o mesmo Kant, nem as nutridas lições nessa área do conhecimento que foram publicadas muito depois de sua morte, nada nos oferecem que se pareça ao que ele exigia de uma Antropologia filosófica. Tanto pela sua intenção declarada como por todo o seu conteúdo, (essas reflexões) oferecem algo muito diferente: todo um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem, por exemplo, acerca do egoísmo, da sinceridade, e da mendacidade, da fantasia, o dom profético, o sono, as doenças mentais, o gênio. Mas para nada se ocupam daquilo que constitui o homem, nem tocam seriamente nenhum dos problemas que essa questão traz consigo: o lugar especial que ao homem corresponde no cosmo, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a sua compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como ser que sabe que há de morrer, a sua atitude em todos os encontros, ordinários e extraordinários, com o mistério, que compõem a trama da sua vida. Nessa Antropologia não entra a totalidade do homem. Parece como se Kant tivesse tido reparos para colocar realmente, filosofando, a questão que considera como fundamental” [Cassirer, 1987: 13-14].

Apesar dos paradoxos apontados acima frente à aventura de formular uma Antropologia filosófica digna desse nome, acompanhemos como se deu a formatação dessa disciplina ao longo dos séculos de caminhada da meditação ocidental. A filosofia socrática foi o primeiro intento de caracterizar a especificidade humana, face à preocupação pela natureza e pelo conhecimento dela, típica da meditação anterior no ciclo pré-socrático. O pensamento de Sócrates pode ser resumido, em palavras de Cassirer, assim: “(...) Define o homem como aquele ser que, se lhe for colocada uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. Tanto o seu conhecimento quanto a sua moralidade estão incluídos nesse círculo. Mediante essa faculdade fundamental de dar uma resposta a si mesmo e aos outros, o homem se converte em ser responsável, em sujeito moral” [Cassirer, 1987: 21].

O pensamento estoico retomou a herança socrática. A conformidade com o próprio daimon, com a razão, essa é, no sentir do imperador e filósofo Marco Aurélio (121-180), a essência do homem. Uma vez conquistada a forma interior, esta permanece inalterável e imperturbável. Nisso consiste a ataraxia, que confere ao homem a sua independência.

O pensamento medieval, cujo primeiro sistematizador foi Aurélio Agostinho (354-430), veio colocar em crise essa visão equilibrada do estoicismo. A razão, nas filosofias anteriores, tinha sido elevada à altura de suprema luz que ilumina o homem e que lhe confere a sua identidade. A razão, no sentir de Agostinho, depois do pecado original não consegue ser mais a bússola do homem. A sua condição é a de um ser dividido, que só conseguirá retomar a própria identidade se enveredar pelo caminho da fé. A religião é, para o homem medieval, escreve Cassirer, “uma lógica do absurdo; pois só assim pode apreender o absurdo, a contradição interna, o ser quimérico do homem” [Cassirer, 1987: 31].

Essa problemática dicotómica do homem entra na modernidade através da meditação de Blaise Pascal (1623-1662). Herdeiro da ideia clara e distinta cartesiana, o autor dos Pensamentos considera, no entanto, que o “espírito geométrico” não serve para traduzir o mundo humano, que somente poderá ser abordado pelo “espírito de fineza”, à luz do qual é possível apreender a complexidade que caracteriza a realidade do homem. Este, para Pascal, como destaca Cassirer, “(...) não possui natureza, nem um ser simples ou homogêneo; é uma estranha mistura de ser e não ser. O seu lugar está entre esses dois opostos” [Cassirer, 1987: 30]. O “espírito de fineza” nos conduz ao único caminho graças ao qual podemos abordar a complexidade humana: o conhecimento de Deus, através da vivência religiosa.

Contrapondo-se a esta lógica do absurdo, as metafísicas do século XVII passaram a valorizar a capacidade de conhecermos racionalmente os segredos infinitos do mundo, sem contudo cair no “paroquialismo” de identificar o homem como centro do Universo. Tanto a visão de Baruch Espinosa (1632-1677), como a de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), por exemplo, descortinam possibilidades incomensuráveis à razão humana, capaz de apreender – incluso matematicamente - a infinita perfeição do Universo, num contexto que abre as portas a uma teologia natural, que não escapa, no caso espinosano, ao panenteísmo. As metafísicas do século XVII apelaram para uma conciliação entre razão especulativa e razão científica. “O universo infinito – destaca Cassirer - não opõe limites à razão humana; pelo contrário, é o grande incentivo para ela. O intelecto humano percebe a sua própria finitude, medindo os seus poderes com o universo infinito” [Cassirer, 1987: 35].

O conceito racionalista do homem chegou ao seu apogeu nos séculos XVIII e XIX. Em 1754, Denis Diderot (1713-1784) publicou a obra Pensées sur l’interpretation de la nature, em que prenunciava o surgimento de uma nova forma de ciência “de caráter mais concreto, baseada mais na observação dos fatos do que na suposição de princípios gerais” [Cassirer, 1987: 37]. Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte (1798-1857), Charles Darwin (1809-1882) e Hipólito Adolfo Taine (1828-1893) completariam essa tarefa. Cassirer centra a sua atenção, especialmente, nos dois últimos pensadores, embora no caso brasileiro estejamos mais familiarizados com o monocausalismo determinista da “fisiologia social” saint-simoniana ou da “física social” comteana, por força da herança cientificista pombalina. Seja como for, a essência da nova antropologia cientista seria a seguinte, segundo palavras de Cassirer: esses pensadores “(...) tinham que demonstrar que o mundo cultural, o da civilização humana, era redutível a um pequeno número de causas gerais, as mesmas para os fenômenos físicos e para os chamados espirituais” [Cassirer, 1987: 41].

O século XIX e os primórdios do XX assistiram a uma verdadeira explosão das mais variadas hipóteses cientistas. “Cada filósofo – frisa Cassirer - crê ter encontrado a faculdade mestra e principal (...) mas todas as explicações diferem enormemente, no que tange ao caráter dessa faculdade principal e se contradizem” [Cassirer, 1987: 42]. Nietzsche (1844-1900) destaca a vontade de poder, ao passo que Sigmund Freud (1856-1939) assinala o instinto sexual, Karl Marx (1818-1883) a necessidade econômica, etc. A antropologia filosófica se desenvolve, assim, no século XX, no seio de um verdadeiro paradoxo, com pensadores os mais variados formulando as suas concepções a partir de ângulos os mais diversos. Max Scheler (1874-1928), no conhecido livro intitulado: O lugar do homem no cosmo, exprimiu claramente essa perplexidade, com as seguintes palavras: “Em nenhum outro período do conhecimento humano o homem se tornou tão problemático para si mesmo, como nos nossos dias. Dispomos de uma antropologia científica, de outra filosófica e de outra teológica, que entre si se ignoram. Não possuímos, consequentemente, uma ideia clara e consistente do homem. A multiplicidade sempre crescente de ciências particulares dedicadas ao estudo do homem, tem contribuído mais a conturbar e escurecer o nosso conhecimento do homem, do que a esclarecê-lo” [Scheler apud Cassirer, 1987: 44].

2 - Uma chave da natureza do homem: o símbolo.

Reagindo contra as metafísicas dogmáticas do século XVII e tentando formular uma filosofia acorde com a nova física, mas que, de outro lado, tivesse a sua especificidade, David Hume (1711-1776), em meados do século XVIII, deu uma inapreciável contribuição à antropologia filosófica e à filosofia em geral, com as suas obras: Treatise of human nature (1738) e Enquiry concerning human understending (1747), que suscitaram grande celeuma no meio britânico, junto com as suas outras obras: Enquiry concerning the principles of morals (1751), English history (1752-1761) e Natural history of religion (1757). O tamanho da polêmica ensejada pelas obras de Hume pode-se medir por dois escritos seus: Mi vida (1766) e Cartas de um cavaleiro ao seu amigo de Edimburgo (1745) [cf. Hume, 1985]. O último escrito fazia parte do desesperado e vão esforço de Hume para conseguir a Cadeira de Filosofia Moral da Universidade de Edimburgo. O filósofo era acusado, pelos membros do Conselho Diretivo da Universidade, de “ateu” e “imoral”, embora o Presidente da Universidade quisesse contratá-lo.

A tese central da meditação humeana era simples: o papel da filosofia é o de uma “geografia moral”, ou levantamento completo dos mecanismos anteriores à experiência, que condicionam o nosso pensar e o nosso agir. O conhecimento é dos fenômenos e não temos acesso à substância das coisas. A objetividade e universalidade do saber humano procedem não da substância das coisas, mas da razão. A física newtoniana correspondia, assim, a uma nova representação do Universo, que tinha superado a antiga concepção geocêntrica legada pelas físicas aristotélica e ptolemaica. 

Ao concentrar a filosofia no estudo dos mecanismos apriorísticos que condicionam, do ponto de vista da razão, o conhecimento e o agir humanos, Hume inaugurava a perspectiva transcendental ou crítica, de cuja sistematização se desincumbiria o grande pensador alemão Immanuel Kant (1724-1804), especialmente na Crítica da razão pura (1782) [cf. Kant, 1985]. Abriu-se, assim, no contexto da filosofia moderna ocidental, o espaço para o estudo sistemático daquilo que o jurista alemão Samuel Pufendorf (1632-1694) denominava de “espaço humano”. No que se refere à problemática do conhecimento, Kant propunha, como ele mesmo escreve no prólogo à segunda edição da Crítica, uma Revolução Copernicana, que não mais fizesse girar o saber humano ao redor do objeto, mas do sujeito. A inquirição fundamental da filosofia seria, portanto, acerca dos mecanismos apriorísticos da razão, configurando, assim, o que passou a ser denominado de uma “metafísica do sujeito”.

A questão filosófica básica consistiria, portanto, em indagar de que forma a razão confere significação aos dados da experiência. O fio de Ariadne para encontrar o caráter fundamental da cultura humana estaria, portanto, aí. É nesse contexto que se situa a pesquisa de Ernst Cassirer. Analisando os estudos biológicos, notadamente os efetivados pelo biólogo e filósofo estoniano Jacob von Uexküll (1864-1944), bem como as contribuições da psicologia e da antropologia, ao longo do século XX, especialmente as pesquisas feitas acerca da evolução da inteligência em casos limites, como os de Hellen Keller (1880-1968) e Laura Bridgman (1829-1889), Cassirer conclui o seguinte:

“O princípio do simbolismo, com a sua universalidade, a sua validade e a sua aplicabilidade geral, constitui a palavra mágica, o ‘abre-te Sésamo’ que dá acesso ao mundo especificamente humano, ao mundo da cultura. Depois que o homem está de posse dessa chave mágica, é garantido o progresso ulterior. Esse progresso não é obstruído nem impossibilitado por nenhuma lacuna no terreno do material sensível (...). A cultura deriva o seu caráter específico e o seu valor intelectual e moral não do material que a compõe, mas de sua forma, de sua estrutura arquitetônica. Essa forma pode ser expressa com qualquer material sensível (...). Graças a esse princípio, mesmo o mundo de uma criatura surda-muda e cega pode chegar a ser, incomparavelmente, mais largo e rico do que o mundo do animal mais desenvolvido” [Cassirer, 1987: 63]. 

Ora, a capacidade reflexiva do homem lhe possibilita o fato de tomar consciência desse seu poder de simbolização. Essa é a característica especificamente humana, que coloca os homens por cima dos animais. A reflexão, ou pensamento reflexivo é, escreve Cassirer: “aquela capacidade do homem que consiste em destacar de toda a massa indiscriminada do curso dos fenômenos sensíveis fluentes, certos elementos fixos, a fim de isolá-los e concentrar neles a atenção” [Cassirer, 1987: 68]. O homem consegue realizar esta operação reflexiva, afirma Herder, “(...) mediante uma característica que ele possui para abstrair e que, como um elemento de consciência, se apresenta a ela mesma claramente. Então podemos exclamar: eureka! Esse caráter inicial da consciência era a linguagem da alma. Com isso, criou-se a linguagem humana” [Herder, apud Cassirer, 1987: 69].

Sem o pensamento reflexivo tornar-se-ia impossível a cultura. Ficaríamos atrelados às sombras do que Jean-Paul Sartre (1905-1980) denomina de “en soi”, da pura exterioridade. Frisa a respeito Cassirer: “Sem o simbolismo, a vida do homem seria a dos prisioneiros na caverna de Platão. Encontrar-se-ia confinada nos limites de suas necessidades biológicas e de seus interesses práticos: sem acesso ao mundo ideal que se abre, em âmbitos diferentes, com a religião, a arte, a filosofia e a ciência” [Cassirer, 1987: 60].

3 – A função expressiva e o problema do corpo e da alma.

A filosofia ocidental, ao abordar as relações corpo-alma, radicalizou a contraposição entre ambas as instâncias, que já tinha se insinuado no pensamento mítico. Efetivamente, a concepção mítica (no contexto dos mitos homéricos e heleno-cristãos, por exemplo), estabeleceu a dualidade corpo-alma como duas realidades que não se correspondem. O corpóreo já não é expressão imediata do anímico; antes, o corpo encobre a alma. Mas essa concepção originária mítico-religiosa conserva, no fundo, a conexão entre corpo e alma. Em que pese o fato de eles serem distintos quanto à essência e origem, permanecem em estreita vinculação, no que tange ao seu destino.

A respeito, frisa Cassirer: “A unidade do destino mítico aparece no lugar da unidade essencial ôntica. Em virtude de um decreto originário do destino, a alma é jogada no ciclo do devir corporal, ficando sujeita à roda dos nascimentos. O rigor e a firmeza desse vínculo mítico não acaba com a separação que se estabeleceu entre o corpóreo e o ser anímico, mas impede que seja extraído, de imediato e com toda força, o conjunto das consequências lógicas que isso implica” [Cassirer, 1976: 3, 126-127].

Coube ao pensamento metafísico ocidental radicalizar a questão. Isso aconteceu, segundo a acurada análise feita por Cassirer, pelo fato de tal pensamento ter sido formulado no contexto de uma perspectiva transcendente ou realista, que pressupõe que por trás dos fenômenos se escondem a substância e a causalidade provenientes dela. A tipicidade da vivência do espírito na corporeidade, ou através da corporeidade, passou a ser interpretada como a contraposição entre duas ordens substanciais, radicalmente distintas e irreconciliáveis: res extensa e res cogitans, na dramática cisão ensejada pela metafísica dualística de René Descartes (1596-1650).

Nicolai Hartmann (1882-1950) exprimiu claramente, nas seguintes palavras, essa contraposição, de que seria expressão acabada o cartesianismo, com a sua metafísica dualista: “É simplesmente inconcebível que um processo possa começar como fenômeno corporal e terminar como fenômeno anímico. Compreende-se muito bem, in abstracto, que assim possa ser, mas não in concreto como possa ocorrer. Eis um limite absoluto da cognoscibilidade, perante o qual todos os conceitos categoriais falham, tanto os fisiológicos quanto os psicológicos. Seria ingenuidade naturista supor uma causalidade psicofísica que governasse diretamente, ao passar de um lado ao outro dessa linha divisória. Mais ainda, é muito questionável que os dois campos que conhecemos, o fisiológico e o psicológico, sejam adjacentes, se se tangem verdadeiramente numa fronteira linear comum, ou se não se separam e deixam tudo num campo intermédio, que então seria um terceiro campo irracional entre os dois (...). Pois dado que a unidade não pode ser negada ontologicamente, mas também não pode ser apreendida fisiológica nem psicologicamente, terá então de ser concebida como uma unidade puramente ôntica, independente de qualquer apreensão, como unidade que é, ao mesmo tempo, metafísica e metapsíquica; em resumo, como um substrato irracional do ente psicofísico (...). O ser unitário do processo psicofísico reside nesse substrato ontológico; é um processo ônticamente real, irracional, que em si não é nem físico nem psíquico, mas que unicamente tem nos dois as suas capas superficiais, que apresenta à consciência” [Hartmann, apud Cassirer, 1976: 3, 119-120].

Cassirer, por sua vez, exprime assim a problemática levantada pela visão dicotômica: a questão das relações alma-corpo “(...) Não é respondida se, em lugar de explicar a unidade do fenômeno, recorre-se à unidade da fonte originária, incognoscível e transcendente. O que se vive em cada simples fenômeno expressivo é uma correlação indissolúvel, uma síntese inteiramente concreta do corpóreo e do anímico. No entanto, essa vivência concreta não pode ser explicada, nem compreendida, recorrendo a esse caput mortuum da abstração – como Hegel a chamou -, a coisa em si como raíz última comum a todo o empiricamente diverso e separado. O problema foi colocado pela experiência mesma e surgiu do seu próprio seio; assim, pois, deve-se esperar e exigir que seja resolvido com os próprios meios da experiência. Aí já não pode ajudar mais o salto ao metafísico, pois a questão da alma e do corpo é, quando muito, uma questão que corresponde já à imagem natural do mundo e que surge, necessariamente, dentro de seus limites, no interior do seu horizonte teórico” [Cassirer, 1976: 3, 121].

No seio da filosofia contemporânea, o primeiro pensador a colocar a relação alma-corpo no contexto de uma concepção que fugisse à perspectiva substancialista ou da coisa em si, foi o escritor e filósofo alemão Ludwig Klages (1872-1956). As vivências expressivas puras constituem, para ele, o ponto de apoio arquimediano que permite deslocar o eixo do mundo da ontologia, fazendo desaparecer a divisão do ser numa metade corpórea e outra anímica. A propósito, escreve Klages – lembrando, talvez, as sugestivas expressões de Espinosa quando identifica, na Ética, as estreitas implicações da alma e do corpo: “A alma é o sentido do corpo e o corpo é a manifestação da alma. Nenhum dos dois atua sobre o outro, pois nenhum pertence a um mundo de coisas. Posto que ação e interação das coisas são inseparáveis, a relação de causa e efeito significa apenas uma designação para as partes de um vínculo já dissolvido. No entanto, sentido e manifestação constituem uma relação ou, melhor, o modelo de toda relação. Quem achar dificuldades para se representar uma relação incomparavelmente diferente da relação de causa e efeito superior a ela em intimidade, pode tomar como ajuda a relação análoga existente entre o signo e o designado (...). Assim como o conceito no som linguístico, também a alma é inerente ao corpo; aquele é o sentido da palavra e esta é o sentido do corpo; a palavra é a roupagem do pensamento, o corpo é a manifestação da alma. Assim como não há conceitos mudos, tampouco há almas que não se manifestam” [Klages, apud Cassirer, 1976: 3, 123-124].

À luz do anterior, podemos deduzir que as relações alma-corpo constituem uma modalidade categorial própria, não redutível a outras e, portanto, absolutamente original. Eis a forma em que Cassirer identifica essa condição paradigmática: “A relação de alma e corpo representa o primeiro modelo e paradigma de uma relação puramente simbólica que não pode se transformar intelectualmente numa relação coisica nem causal. Aí não há, originariamente, nem interior nem exterior, antes ou depois, causante ou causado; aí prevalece um vínculo que não precisa se estabelecer primeiro a partir de elementos separados, mas que é, primariamente, um todo pleno de sentido que se interpreta a si mesmo, que se cinde em dois momentos para se interpretar neles” [Cassirer, 1976: 3, 124].

Mas a tipicidade da relação alma-corpo não constitui apenas uma categoria a mais da razão. É, ao contrário, a categoria fundante, que permite dar origem e estrutura ao nosso mundo humano, bem como à nossa apreensão do universo exterior. A propósito, frisa Cassirer: “A função simbólica da representação e da significação é a que vem proporcionar o acesso a essa realidade objetiva, na qual legitimamente pode-se falar de relação entre as coisas e de relações causais. Assim, é a tríade espiritual das funções expressiva, representativa e significativa a que nos torna possível a intuição de uma realidade articulada. No entanto, justamente por isso constitui um hysteron próteron aquela explicação que pretende nos aproximar do conteúdo dessas funções, esclarecendo-o mediante comparações tomadas do mundo das coisas. A relação de aparência com o conteúdo anímico expresso nela, a relação entre a palavra e o significado expresso através dela e. finalmente, a relação que guarda um signo abstrato qualquer com respeito ao conteúdo significativo ao qual aponta: nada disso é equiparável ao modo como essas coisas coexistem no espaço, como os eventos se sucedem no tempo, ou como os câmbios reais se geram entre si. O seu sentido específico somente pode ser extraído dele mesmo, mas não aclarado mediante analogias tiradas do mundo, as quais são apenas possíveis em virtude desse sentido” [Cassirer, 1976: 3, 124-125].

Como em tudo que diz relação à denominada por Hume de “geografia moral” e que Kant identifica como “analítica transcendental”, ou “estudo crítico da Razão Pura”, não podemos pretender um conhecimento sistemático à margem da experiência. No transfundo dela, na contraluz dela é que podemos apreender o mundo das relações categoriais, a primeira das quais é a da imbricação alma-corpo. A respeito, Cassirer afirma que: “Todos esses atos de expressar, representar e significar, nunca estão imediatamente presentes enquanto tais, mas somente se tornam visíveis nos seus produtos como um todo. Tais atos existem somente na medida em que entram em ação, se manifestando a si mesmos nessa ação. Originariamente, eles não se contemplam de forma retrospectiva, mas voltam o seu olhar em direção à obra que devem efetivar, em direção ao ser cuja forma espiritual devem construir. E a isso deve-se precisamente o fato de que, em primeiro termo, não possa haver nenhuma outra descrição de sua própria realidade e atividade, do que aquela que se depreende da obra, do obrado, cuja língua pode falar em alguma medida. Essa relação não se manifesta de forma alguma na interpretação especulativa, em sentido estrito, que experimentam os fenômenos no âmbito da metafísica. No tocante especificamente à relação entre corpo e alma, aquela unidade ingênua e inquietante entre ambas, que se representa em cada simples vivência expressiva, tinha-se tornado duvidosa já antes do início da metafísica propriamente dita” [Cassirer, 1976: 3,125].

Concluindo: unicamente poderemos superar as contradições da relação alma-corpo (que se tornaram lacerantes na filosofia moderna), como frisa Cassirer, “(...) descendo à sua verdadeira fonte: se retrotraindo ao centro dessa relação simbólica, na qual, no puro fenômeno expressivo, o anímico aparece relacionado com o corpóreo e vice-versa. A peculiaridade dessa relação, contudo, somente ressalta com clareza quando vamos além dela, quando consideramos a função expressiva não como um momento isolado, mas como parte de um todo espiritual extensivo, tentando identificar a sua posição e compreender o seu rendimento no interior desse todo” [Cassirer, 1976: 3, 127].

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SCHELER, Max [1928]. Die stellung des menschen im kosmos. Darmstadt: Reichl.


EPÍLOGO

Do exposto nas páginas anteriores pode-se concluir que a Filosofia Ocidental, ao longo do período moderno, conheceu três momentos fundamentais: o da busca, à luz do neoplatonismo, da unidade de um universo esfacelado pela crise da escolástica e pela segmentação da nascente ciência moderna (esse foi o intuito básico dos pensadores renascentistas); o da formulação de metafísicas que tentaram estabelecer um diálogo com a ciência moderna (Descartes, Leibniz Espinosa) e o da crítica a essas metafísicas por parte de Hume e Kant, que assinalaram um novo caminho à reflexão filosófica: o da crítica do conhecimento.

A paradoxal filosofia rousseauniana correspondeu, de um lado, à reivindicação do que Samuel Pufendorf (1632-1694) denominava de “espaço humano”, sem contudo retornar à identificação cartesiana dele com a ratio pura e simples, mas com algo que para o pensador genebrino seria intraduzível e que Hume e Kant souberam explicitar na formulação da perspectiva transcendental. De outro lado, a meditação de Rousseau correspondeu à busca da racionalidade social, instaurada mediante a total eliminação do dissenso, dando ensejo, destarte, à filosofias regeneradoras de Saint-Simon e Comte.

As raízes filosóficas do Marxismo abeberam-se dessa dupla fonte, identificada, de um lado, como bem salientou Mondolfo, com a herança transcendental kantiano-hegeliana e, de outro, com a dimensão messiânico-política instaurada, na modernidade, por Rousseau e Saint-Simon.

Na moderna filosofia inglesa encontramos a retomada, no plano experimental que lhe é típico (fato assinalado claramente por Hegel), da dupla tradição platônico-aristotélica. A primeira inspira, sem dúvida, a meditação escocesa e a segunda anima, principalmente desde a crise da Escolástica, a valorização do conhecimento experimental, que é tratado sistematicamente por Francis Bacon e John Locke. O mecanicismo de Hobbes, que parte para justificar a construção artificial do Estado, não se entende sem referência a essa tradição empirista, em que pese a influência que sobre ele exerce, também, o racionalismo de Descartes.

O singular pensamento de David Hume, na tentativa, rigorosamente empirista, de elaborar um balanço introspectivo e exaustivo dos fatores que condicionam, do lado do sujeito, o pensar e o agir, tentativa chamada de “Geografia Moral” pelo autor da Investigação sobre o entendimento humano, junta, num único feixe, as tradições platônica e aristotélica, conferindo à meditação inglesa do século XVIII uma grande força inspiradora, cujo influxo se fez sentir na obra de Kant.

Anotemos, para terminar, que a Filosofia Ocidental já não seria a mesma após o impacto produzido nela pela ciência moderna, fato que obrigou Hume e Kant a elaborarem a crítica à metafísica da substância. À revolução copernicana, nos terrenos da astronomia e da física, seguiu aquela que, no plano do conhecimento, foi também denominada de “copernicana” e que o filósofo de Königsberg tematizou na Crítica da razão pura, que inspirou importante corrente de pensamento identificada, no século XX, com o neokantismo, da qual Ernst Cassirer é um dos principais representantes.