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TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 5º - DESCARTES E O "DISCURSO DO MÉTODO".

TÓPICOS ESPECIAIS DE FILOSOFIA MODERNA - CAPÍTULO 5º - DESCARTES E O

RENÉ DESCARTES (1596-1650). A



René Descartes (1596-1650) é figura essencial na compreensão da filosofia moderna. Porque com ele inicia-se uma nova fase na evolução da Teoria do Conhecimento. Esta, na Antigüidade Greco-Romana e na Idade Média, tinha girado em torno ao objeto do saber. A teoria da substância, consolidada na reflexão de Aristóteles (384-322 a.C.), garantiu o chão seguro em cima do qual foi possível construir a perspectiva realista, que parte da pressuposição de que a nossa razão apreende, superando os fenômenos, a essência substancial da realidade, ou coisa-em-si.

Embora em Descartes ainda encontremos a noção de substância, no entanto, começa a mudar a forma em que é encarada a perspectiva realista, dando mais ênfase à experiência do sujeito, do que propriamente a uma imposição intuitiva do objeto sobre o sujeito. A atividade do sujeito sobre os dados obtidos na experiência é fundamental. Esse lento movimento de valorização do sujeito sobre o objeto, conduzirá, no século XVIII, à formulação, por David Hume (1711-1776), da perspectiva transcendental, que parte do pressuposto de que a nossa razão só tem o condão de apreender os fenômenos, como faculdade ordenadora do real, não conseguindo atingir, contudo, a essência da substância. Tal perspectiva terminou sendo sistematizada por Kant (1724-1804) na sua Crítica da Razão Pura, no final dessa centúria.

Talvez tenha sido Hegel (1770-1831) quem melhor traduziu a novidade do pensamento cartesiano no seio da Filosofia Moderna. A respeito, escreveu o pai da História da Filosofia: Descartes inaugura “a cultura dos tempos modernos, o pensamento da filosofia moderna. Aqui já nos podemos sentir na nossa própria casa e clamar, por fim, como o navegante depois de longa e aventurosa travessia por mares turbulentos: Terra!” [apud Fraga, 1989: I, 1331].

Vejamos alguns dados marcantes acerca de Descartes e sua obra. Em 1606, entrou no colégio jesuíta de La Flèche (no Departamento de Sarthe, vale do Loire), tendo permanecido ali até 1614. Concluiu os seus estudos humanísticos em Poitiers, onde, em 1616, obteve a licenciatura em Direito, tendo realizado, também, alguns estudos na área da medicina e da física. A passagem, na primeira juventude, pelo colégio dos Jesuítas em La Flèche, é um dado importante da vida de Descartes, pois a espiritualidade inaciana exerceu influência na sua dinâmica intelectual, notadamente no que tange ao método seguido no famoso Discurso, no sentido de indagar pelo “princípio e fundamento” do conhecimento.

Entre 1614 e 1620 o nosso autor participou, como soldado, da Guerra dos Trinta Anos, na Holanda, sob o comando de Maurício de Nassau (1604-1679). Nessa condição viajou pela Dinamarca e pela Alemanha, tendo entrado em contato com estudiosos da física nova. Ao ensejo de pesquisas nessa área, conheceu o famoso astrônomo holandês Christian Huygens (1629-1695). Em 1622, regressou à França. Em 1633, o físico italiano Galileu Galilei (1564-1642) foi condenado pela Inquisição romana e, no ano seguinte, o nosso autor renunciou à publicação do seu Tratado do Mundo. A época não era propícia para a discussão de teorias que colocassem em dúvida a estática cosmologia medieval, alicerçada na idéia grega de ordem harmônica do cosmo.

Em 1647, o nosso autor encontrou-se, em Paris, com Blaise Pascal (1623-1662), eminente engenheiro e pensador espiritualista francês, em quem teria encontrado motivo de aprofundamento na sua teoria de uma substância pensante (res cogitans), contraposta à materialidade do mundo (res extensa). Em 1649, a convite da Rainha Cristina, da Suécia (1626-1689), Descartes viajou para Estocolmo, onde, em 1650, morreu de pneumonia.

As principais obras escritas por Descartes foram as seguintes: Regras para a direção do espírito (1628), O Mundo ou Tratado da luz (1633, publicado postumamente vários anos depois, em 1664), Discurso do Método (1637), Dióptrica, Meteoros e Geometria (3 ensaios publicados em 1637); Explicação das máquinas com a ajuda das quais se pode, com uma pequena força, levantar um fardo muito pesado (1637), Meditações acerca da filosofia primeira, na qual são demonstradas a existência de Deus e a imortalidade da alma (1641), Princípios filosóficos (1644), Meditações metafísicas (1647), As paixões da alma (1649).

Um ponto importante, na forma de Descartes elaborar a sua obra, consistiu na adoção de dois passos na consolidação do seu escrito mais sistemático, as Meditações metafísicas. O primeiro movimento identificava-se com a divulgação limitada das ideias centrais, em latim, a fim de tomar conhecimento, a partir de uma edição restrita, nessa língua, das opiniões dos acadêmicos. Uma vez ouvidos estes, o autor elaborou a edição, em língua vernácula (o francês), que foi a mais importante, para o grande público, que era o destinatário definitivo da sua obra. Há um traço definidamente moderno na adoção dessas etapas por parte de Descartes. Pesavam, certamente, na sua época, as opiniões dos especialistas. Mas o destinatário definitivo de obra deveria ser o grande público. O pensador escrevia para a massa, não para um restrito público de intelectuais e homens de ciência. Divulgava entre estes, limitadamente, a sua obra, a fim de burilar melhor a edição “popular”, compulsando as opiniões dos entendidos, como, aliás, faziam os cientistas a partir da Renascença. Influenciado por esse clima de esclarecimento, o pensador conhecia muito bem o peso que tinha uma obra divulgada massivamente entre o grande público. E não se furtava a entrar nessa dinâmica de democratização das ideias. No debate que antecipava a edição definitiva da obra em construção, o filósofo acolhia, além das opiniões dos especialistas (filósofos, teólogos e cientistas), também os pontos de vista um tanto rudimentares do homem comum, desconhecido, identificado, por exemplo, nas suas Meditações metafísicas, com o termo grego “Hyperaspistes” [cf. Descartes, 1992: 549].

Vejamos a forma em que o nosso autor procedeu em face da sua primeira obra sistemática, as Meditações metafísicas. Escreveu, inicialmente, uma versão resumida e de tiragem limitada, em latim, entre 1639 e 1640, com o título de: Meditationes de prima philosophia. O autor recebeu, no primeiro semestre de 1641, as críticas dos cientistas, filósofos e teólogos das Universidades francesas e holandesas à sua obra, que foi remetida, também, a personalidades destacadas do mundo intelectual como o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor da conhecida obra Leviatã (1651), o padre francês Pierre Gassendi (1592-1655), que tentava uma conciliação entre cristianismo e atomismo epicurista, e outros. Descartes classificou, com a ajuda do padre Marin Mersenne (1588-1648), seu amigo, as objeções recebidas e deu resposta a elas. Incorporou esse material ao texto intitulado, em latim: Meditationes de prima philosophia, in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstratur (Meditações sobre a filosofia primeira, na qual é demonstrada a existência de Deus e a imortalidade da alma), cuja primeira edição foi publicada em Paris, (em agosto de 1641).

Em maio de 1642, Descartes publicou em Amsterdã, em latim, a segunda edição da obra, que recebeu um título ligeiramente diferente: Meditationes de prima philosophia, in quibus Dei existentia et animae humanae a corpore distinctio demonstrantur (Meditações sobre a primeira filosofia, nas quais são demonstradas a existência de Deus e a distinção entre corpo e alma). O autor incorporou a esse texto novas críticas recebidas, como as ensejadas com motivo da condenação, pelo reitor da Universidade de Utrecht, Voetius, a um dos seus discípulos, Henrique Regius ou Hendrik de Roy (1598-1679), que era professor nessa Universidade. Incluiu, na nova edição, sempre com a ajuda do amigo, padre Mersenne, sete séries de objeções e respostas, bem como uma carta endereçada ao padre Dinet, da Companhia de Jesus.

Descartes era particularmente atento às objeções levantadas pelos teólogos, notadamente pelo seu amigo, o teólogo jansenista Antoine Arnaud (1612-1694). Outro amigo já mencionado, padre Mersenne, que não era jesuíta e de quem tinha sido colega no colégio de La Flèche, o ajudou, como editor, na empreitada de divulgar o resumo das suas Meditações entre os teólogos. Descartes atendia às razões que lhe eram expostas. Mas, por outro lado, estava seguro, cada vez mais, do valor do seu raciocínio. Frisava a respeito: “Que se o meu projeto não tem sucesso – escrevia a Mersenne em setembro de 1641 – e que (se há) há poucas pessoas, no mundo, capazes de entender as minhas razões, não é culpa minha, e elas não são menos verdadeiras por causa disso [Beyssade, apud Descartes, 1992: 15-16].

Interessava ao nosso pensador, especialmente, debater as objeções levantadas pelos padres da Companhia de Jesus. “Descartes atende, especialmente – frisam Jean-Marie e Michelle Beyssade -, às objeções levantadas pelos mestres jesuítas. Espera, efetivamente, um debate público com esta poderosa sociedade, cuja influência nas escolas é conhecida” [Beyssade, apud Descartes, 1992: 16]. Entre 1642 e 1643, Descartes respondeu às objeções levantadas pelos padres Bourdin e Dinet, este último Provincial da Companhia de Jesus. Mas não ficou satisfeito com o resultado desse diálogo, do qual não emergiram elementos importantes que lhe permitissem melhorar a sua obra. Antes, pelo contrário, percebeu a má vontade do Provincial em face dos seus escritos de Física. “Certamente - afirmava o filósofo - enquanto o padre não cessa de combater os meus escritos que visam à física e às matemáticas (...), ele tem-se esforçado em destruir, não com razões, mas com maledicências, os princípios metafísicos dos quais tenho me servido para demonstrar a existência de Deus, bem como a distinção real entre a alma do homem e o seu corpo. Tenho julgado o conhecimento dessas verdades tão importante, que creio que um homem de bem não poderia tratar de repetir se eu empreenderia, de novo, o trabalho de defender, com todas as minhas forças, aquilo que tenho escrito” [Descartes, “Lettre au Père Dinet”, in 1992: 523-524].

Em julho de 1644, Descartes fez uma terceira edição, em Amsterdã, da sua obra, com título mais breve, em latim: Principia Philosophiae, que dedicou à sua amiga e filósofa, a princesa Elizabeth do Palatinado (1618-1680) (Elizabeth Simmern von Pallandt), junto com a nova edição, em francês, do seu Discours de la Méthode. O nosso autor era consciente de que tinha feito o possível para discutir, com intelectuais de diversas tendências, as linhas mestras do seu pensamento. Esperava mais diálogo com os professores universitários e com os seus antigos mestres jesuítas. Ao seu amigo, o padre Marin Mersenne, que o ajudou com as edições da sua obra, em latim, para enviar aos teólogos, filósofos e cientistas, Descartes escrevia, em setembro de 1641: “Que se o meu projeto não tem sucesso e que há poucas pessoas no mundo capazes de entender as minhas razões, não é culpa minha e elas não são menos verdadeiras por causa disso” [Descartes, apud Beyssade, 1992: 15-16].

Em 1647 apareceu a primeira edição, em francês, das Méditations métaphysiques, organizada, em Paris, pelo padre Mersenne. O editor foi Claude Clerselier (1614-1684), advogado no Parlamento de Paris e representante jurídico do rei da França na Suécia. Clerselier era cunhado de Hector Pierre Chanut (1601-1662), embaixador da França na Suécia. Foi este quem apresentou Descartes à rainha Cristina (1626-1689). No mesmo volume das Méditations foram publicadas as respostas que Descartes tinha dado, entre 1641 e 1647, aos intelectuais que escreveram sobre a obra. A versão francesa, do latim, foi feita por Louis-Charles d´Albert de Luynes, 2º duque de Luynes (1620-1690). Esta versão, em francês, foi utilizada, doravante, pelos editores, como a versão oficial.

Em virtude do caráter pedagógico que Descartes deu ao seu Discurso do Método, centraremos a atenção nesta obra, que nos permitirá destacar os pontos centrais da sua gnosiologia, bem como da base antropológica sobre a qual ela se estrutura. Desenvolveremos treze passos para acompanhar o pensamento cartesiano.

1. Ponto de partida do itinerário da razão: a introspecção descritiva, à maneira dos geógrafos.

Trata-se de uma viagem pessoal, que o filósofo recomenda aos seus leitores. A obra em apreço contém o relato dessa experiência. Descartes, no Discurso do Método, destaca assim estas idéias: “Gostaria muito de mostrar, neste discurso, que caminhos segui; e de nele representar a minha vida, como num quadro, para que cada qual a possa julgar; e para que, retirando do comum rumor as opiniões sobre ele formuladas, isso seja um novo meio de me instruir, que acrescentarei àqueles de que costumo servir-me. Assim, o meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir a própria razão, mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha” [Descartes, 1988: 41-42].

2. Busca, pelo pensador, do princípio e fundamento da razão, no conjunto de idéias constituído por tudo quanto encontra nessa introspecção descritiva.

Esses conteúdos dividem-se em duas classes: idéias claras e distintas (que aparecem à razão com a clareza dos princípios matemáticos) e idéias confusas (ligadas à experiência sensorial). Para Descartes, são idéias todos os conteúdos de consciência que a razão encontra nesse movimento introspectivo por ele proposto. A busca do princípio e fundamento do conhecimento decorre da influência que os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola (1491-1556) exerceram sobre o pensador; no primeiro dia dos mencionados exercícios, o pregador induz os fiéis a buscarem se guiar por esse princípio, no caminho da vida espiritual, respondendo à seguinte indagação teológica: quid hoc ad aeternitatem? (de que forma isto que estou fazendo, aqui e agora, serve para a vida eterna?) [Cf. Loyola; Kempis, 2018]. No que tange à reflexão filosófica, Descartes busca que o seu interlocutor, na trilha de fundamentar o conhecimento, descubra o que, nele, é fundamental.

3. Formulação da hipótese do gênio maligno.

Retomando uma antiga tradição filosófica que remonta a Santo Agostinho (354-430), o nosso pensador decide duvidar de tudo quanto encontra na sua consciência para, a partir daí, observar o que fica em pé e construir o edifício do conhecimento sobre bases firmes. Eis as palavras de Descartes a respeito: “(...) Considerando que todos os pensamentos que temos no estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, algum seja verdadeiro, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos” [Descartes, 1988: 74].

O nosso autor explicita a hipótese da dúvida metódica, retomando a figura antiga do gênio maligno, numa argumentação que foi identificada, pelos estudiosos, como “argumento hiperbólico”, que é resumido, por Descartes, nas seguintes palavras, no seu Discurso do Método: “Nada nos impede de imaginar que o autor de nossa natureza seja um gênio maligno e enganador, que nos tenha criado de tal modo que nunca possamos descobrir a verdade, mesmo quando pensamos tê-la captado com a maior evidência” [Descartes, 1988: 74]. A respeito, frisa Étienne Gilson (1884-1978): “Descartes abrevia e atenua, intencionalmente, as razões de duvidar, no Discurso, porque esta obra está escrita em linguagem vulgar, e seria imprudente pôr, assim, um instrumento tão perigoso como a dúvida nas mãos de toda a gente” [Gilson, in Descartes, 1988: 74, nota 5].

A hipótese do gênio maligno deita raízes na reflexão de Santo Agostinho de Hipona (354-430) acerca dos fundamentos do conhecimento. No seu esforço para superar o ceticismo, Agostinho descobre um caminho que lhe permite vencer o temor de ter sido enganado pelo Maligno, no que tange à verdade daquilo que conhece. Eu posso, pensa o Padre da Igreja, me equivocar acerca das coisas fora de mim, por força dos ardis do Maligno. Instala-se, portanto, no seio da minha consciência, a dúvida. Mas, enquanto duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto pensante que duvida. Ora, a certeza da minha existência é pressuposto em qualquer julgamento que eu fizer, em toda dúvida e em todo erro: “Si enim fallor, sum” (“Pois se eu errar, é porque existo”).

4. Efeito da dúvida metódica.

Ao duvidar de tudo quanto encontro no seio da minha consciência, só tenho certeza de uma coisa: duvido. Ora, se duvido, é porque penso. E se penso, é porque existo. Cogito ergo sum (Penso logo existo). Eis o princípio e fundamento de todas as certezas do edifício do conhecimento. Sobre essa base firme, poderei construí-lo, sem temor a que afunde. A respeito desse raciocínio, Descartes afirma: “Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava” [Descartes, 1988: 74]. Agostinho já tinha percorrido esse caminho de superação do ceticismo. Ao duvidar, pensa o mestre de Hipona, sou consciente de mim mesmo enquanto pensante que duvida. Ora, a certeza da minha existência é pressuposto obrigatório, em qualquer julgamento que eu fizer, em toda dúvida e em todo erro. “Si enim fallor, sum” (“Pois se eu errar, é porque existo”).

5. O ato de pensar, apreendido como finito.

Descartes, a seguir, considera que o nosso ato de pensar apresenta-se como duplamente finito. Em primeiro lugar, porque somente posso pensar uma coisa de cada vez. Em segundo lugar, porque o nosso pensamento está, corriqueiramente, eivado de dúvidas. A propósito, comenta Gilson: “É na dúvida que o pensamento apreende a própria existência; mas conhecer que duvidamos é verificar que carecemos de certeza e, por conseqüência, também saber que somos imperfeitos” [Gilson apud Descartes, 1988: 76, nota 16].

6. Arrazoado platônico: a idéia de finito pressupõe a de infinito.

Eu me apreendo, frisa Descartes, como finito, no ato de pensar. Já afirmara Platão (428-348 a.C.) que a idéia de finitude pressupõe a de infinitude. A respeito, afirma Descartes: “Depois disto, tendo refletido sobre o que duvidava e que, por conseqüência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois via, claramente, que conhecer é uma maior perfeição do que duvidar, lembrei-me de procurar de onde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do eu; e conheci, com evidência, que se devia a alguma natureza que fosse, efetivamente, mais perfeita” [Descartes, 1988: 76].

7. Pressuposto da existência de uma natureza infinita em perfeições.

Essa natureza de onde provinha a idéia de mais perfeito do que eu, não poderia ser uma natureza finita, como a minha, porque a idéia de perfeição finita, como já foi visto, pressupõe a de perfeição infinita. Logo, conclui Descartes: “De maneira que restava apenas que ela (a idéia de perfeição infinita) tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que eu podia ter alguma idéia (...)” [Descartes, 1988: 76].

8. Prova da existência de Deus.

Essa natureza infinita em perfeições, de onde provém a idéia de mais perfeito do que eu, deve ser portadora da mais importante perfeição que consiste na existência. Logo essa natureza infinita existe e “para me explicar como uma só palavra”, é Deus [Descartes, 1988: 76-77]. Trata-se, aqui, de uma retomada da prova da existência de Deus, efetivada à luz do argumento conhecido na Idade Média como ontológico. Uma realidade finita não pode ter-se dado a si mesma a existência e, portanto, pressupõe a existência de um ser infinito, Deus. É um argumento de natureza platônica: o ser finito pressupõe a existência de um arquétipo, o ser infinito em perfeições.

9. Idéia de substância pensante.

Eu me apreendo como ser que permanece idêntico a mim mesmo, embora pense em muitas idéias (lembremos o sentido amplo que Descartes confere a este termo, de forma a significar tudo quanto passa pela consciência, ou seja, pensamentos ou afecções). Logo sou um substrato que permanece, como sustentáculo de muitas idéias. Logo sou uma substância pensante. Destaquemos a radicalidade com que o nosso pensador caracteriza essa substância pensante, prenunciando o dualismo metafísico, que explicaremos logo mais.

A respeito da certeza com que eu me apreendo como substância pensante, frisa Descartes: “Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se, muito evidentemente e muito certamente, que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar, nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é” [Descartes, 1988: 75].

10. Idéia de substância extensa.

Eu apreendo, através dos sentidos, o meu corpo e os corpos externos. Graças a uma analogia com a apreensão da minha alma racional como substância pensante, penso a idéia de substância extensa como fundamento dos corpos. Mas tal idéia é absolutamente diferente da minha essência como substância pensante. Pois os corpos são apreendidos e representados como portadores de extensão, enquanto os meus pensamentos não ocupam ligar nenhum e, portanto, não se apresentam como extensos, mas como algo de imaterial.

11. Dualismo metafísico: duas substâncias irreconciliáveis.

Entre substância pensante e substância extensa não há nada em comum. A substância pensante é claridade perante si mesma. A substância extensa, pelo contrário, é opacidade perante a substância pensante. A minha razão não consegue, destarte, justificar racionalmente a existência da substância extensa, absolutamente diferente dela. Propriedades primárias da coisa extensa, como peso e densidade, são dificilmente representadas pela razão, porque pressupõem a exterioridade das coisas.

12. Dualismo antropológico: corpo e alma estão, no homem, simplesmente superpostos.

Somos razão pensante, de um lado; somos extensão, de outro. Mas entre corpo e alma não há nada em comum. A alma pilota o corpo, que é uma máquina perfeitíssima. O homem está tragicamente dividido em dois princípios irreconciliáveis: corpo e alma, extensão e inteligência.

13. “Deus ex machina” para justificar a existência do mundo físico.

Deus é infinitamente perfeito. Logo é infinitamente bom. Logo não permitirá que nos enganemos continuamente em relação ao mundo físico, no qual vivemos. Logo a bondade de Deus é a garantia racional da existência da substância extensa. Este princípio cartesiano subsistirá no pressuposto de Isaac Newton (1643-1727) de que Deus é o fundamento do Universo, como base racional que explica o espaço absoluto (que é, para o físico inglês, “sensorium Dei”).

Conclusão: a herança de Descartes no plano metafísico.

No que tange à Metafísica, a filosofia moderna herdou de Descartes uma concepção dualista, que postula duas realidades substanciais irreconciliáveis: matéria (res extensa) e pensamento (res cogitans).

Perante esse problema, surgirão, na filosofia moderna, duas soluções: de cunho espiritualista, com Leibniz (1646-1716), que postula a presença de uma única substância no mundo, a energia, que, presente no ser espiritual das Mônadas, se manifesta, também, no Cosmo, de maneira difusa, na matéria, que é apenas uma forma de energia.

A segunda solução é a apresentada pelo monismo de Espinosa (1632-1677): somente há uma substância infinita, Deus, da qual o homem e o mundo são manifestações acidentais. O mundo já estaria explicado pela sua referência a Deus como única substância. O Homem estaria salvo, como disse o Apóstolo Paulo de Tarso, no Areópago de Atenas: “Porque n´Ele vivemos e nos movimentamos e existimos” (Actos, 17: 28]. Tratar-se-ia, no caso de Espinosa, como aponta Joaquim de Carvalho (1892-1958), de um panenteísmo, em que o eu e o Cosmo navegam em Deus e n´Ele permanecem.

BIBLIOGRAFIA.

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