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UMA AULA SOBRE TOCQUEVILLE

UMA AULA SOBRE TOCQUEVILLE

O CASTELO DA FAMÍLIA TOCQUEVILLE, NA NORMANDIA

No dia 18 de Junho de 2022 participei de Live programada pelos Institutos Liberais (sob a coordenação de Josesito Padilha, do Instituto Liberal do Nordeste e de Lucas Berlanza, Presidente do Instituto Liberal do Rio de Janeiro).

Apenas para deixar memória dos temas tratados, menciono, a seguir, de forma esquemática, os pontos que desenvolvi na minha exposição. No final, vou ampliar um aspecto da vida de Tocqueville, que se refere à breve passagem, de cinco meses apenas, do nosso autor como Ministro dos Assuntos Estrangeiros da França, ao longo do ano 1849.

1 – A herança do Cientificismo.

Na Modernidade, talvez o fenômeno mais geral e profundo tenha sido a aplicação do método científico à administração do Estado. O Cartesianismo, sabemos, não se restringiu, apenas, ao terreno do conhecimento. Nos séculos subsequentes à sua formulação, estendeu-se, também, ao plano social. A culminância desse processo seria a emergência da moderna burocracia, fenômeno detalhadamente estudado por Max Weber (1864-1920).

A administração burocrática pura emergiu da forma de dominação racional. Partiu da tentativa, típica da modernidade pós-cartesiana, de estender o domínio da razão sobre o mundo (e, forçosamente, sobre as organizações sociais). A respeito, Weber escreve: “A administração burocrática pura, ou seja, a administração burocrático-monocrática aplicada ao expediente é, consoante a experiência, a forma mais racional de se exercer uma dominação. É racional nos seguintes sentidos: em precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiança; implica, portanto, para o soberano e os interessados, exercício de cálculo; pressupõe, também, aplicabilidade formalmente universal a todo tipo de tarefas; pressupõe, outrossim, possibilidade de aperfeiçoamento técnico para atingir o melhor resultado. O desenvolvimento das formas modernas de associações em todo tipo de terrenos (estado, igreja, exército, partido, exploração econômica, associação de interessados, uniões, fundações e quaisquer outras que possam ser mencionadas) coincide totalmente com o desenvolvimento e incremento crescente da administração burocrática: a sua aparição é, por exemplo, o germe do estado moderno ocidental (...)” [Weber,1977: I, 178].

Se é certo que as culminância do processo de racionalização da sociedade é a moderna burocracia, na forma descrita por Weber, o seu advento esteve precedido de reflexão sobre a forma em que se poderia compreender e organizar a sociedade à luz do conhecimento científico. Os pensadores iluministas, concretamente, esforçaram-se por aplicar o modelo de racionalidade científica (à luz do qual se tinha consolidado a nova ciência da natureza, nos séculos XVII e XVIII) à organização da sociedade. Dessa empreitada surgiram, no limiar dos séculos XVIII e XIX na França, na Inglaterra e na Alemanha, quatro grandes tendências que buscavam, a racionalidade social à luz da aplicação do método científico ao estudo das sociedades. O panorama da reflexão social na época de Tocqueville era, portanto, muito rico, no que tange aos modelos de análise social tomados de empréstimo às ciências. Esses modelos eram quatro [cf. Rosanvallon, 1985: 18-25]:

a) Matemática Social (Condorcet, Laplace, Comte).

b) Fisiologia Social (Cabanis, Bichat, Vicq d’Azur, Saint-Simon).

c) Economia Política (Hume, Adam Smith, Jean-Baptiste Say, Destutt de Tracy, Roederer).

d) Tendência Historicista (Vico, Savigny, Hegel, Marx, Engels).

Tocqueville tomou de empréstimo dois desses modelos: o da fisiologia social e o da tendência historicista. Fê-lo, contudo, partindo de uma crítica à utilização exagerada desses dois modelos na versão cientificista. Adotou deles, apenas, uma analogia.

Da Fisiologia Social, o nosso autor tomou o símil do corpo doente para aplicá-lo à sociedade. A pobreza, para Tocqueville, constituía uma doença análoga à dos corpos vivos: se não fosse tratada adequadamente, poderia levar ao falecimento do paciente, no caso, à convulsão revolucionária. E, para tratar de modo adequado a “doença” da pobreza, era necessário fazer a sintomatologia dela. Porque se tratava de um fenômeno de desarranjo social, relativo ao grau de desenvolvimento de cada sociedade. O pobre espanhol, pensava o nosso autor, seria, por exemplo, remediado em Portugal, mas um pobre mesmo na França ou na Grã-Bretanha.

Por esse motivo, Tocqueville, nos seus “Ensaios sobre a Pobreza”, vai insistir em fazer uma adequada “sintomatologia sociológica” da doença do “pauperismo”, sobre o pano de fundo do desenvolvimento da sociedade em questão, como um todo, sem pretender elaborar um ponto de vista fixo, que tratasse a questão da “pobreza” como coisa em si.

Era necessário, diria Tocqueville hoje, elaborarmos um quadro estatístico das carências econômicas numa determinada sociedade e, em relação a esse quadro (sempre provisório, pois os bens econômicos circulam e dão ensejo, sempre, a novidades desconhecidas), seria necessário elaborar uma determinada “terapêutica” de políticas públicas, que fossem levando a sociedade em questão a superar as suas desigualdades [cf. Tocqueville, 1997: 17-39].

Da tendência historicista, o nosso autor tira a ideia de que há um evoluir histórico dos fatos sociais e de que é necessária uma reconstrução intelectual deles, a fim de ver a forma em que se entrelaçam, sem que se possa chegar, pensava o mestre, a uma fórmula matemática válida para todos. Tocqueville critica o vício do “historicismo” que, na França, sacrificou a realidade dos fatos a um esquema racionalista preconcebido pelos “philosophes” e que conduziu à Revolução de 1789. Não se pode brigar com os fatos. Mas os fatos são os fatos e não substâncias inamovíveis, estabelecidas para todo o sempre [cf. Tocqueville, 1977: 375].

2 – A herança dos Doutrinários.

a) Três foram os Precursores dos Doutrinários, aqueles intrépidos liberais que, desde o Parlamento, tentavam fazer frente às desgraças revolucionárias e às tortas soluções absolutistas daqueles que queriam a volta do Ancien Régine ou a sagração da ditadura napoleônica. Tais Precursores foram Jacques Necker (1732-1804), Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), e a filha de Necker, Madame de Staël (1766-1817). Esses precursores dos Doutrinários adotaram o pensamento constitucional anti-rousseauniano, segundo o qual o poder político é limitado e não ilimitado, como pretendia o filósofo de Genebra, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

b) Os Doutrinários foram, principalmente, dois: Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845) e François Guizot (1787-1874): a sua ideia fundamental era a defesa da liberdade para a burguesia e a atribuição, a esta, da tarefa de presidir a reconstrução francesa, alicerçada sobre a representação, concebida ainda no contexto do voto censitário. Os Doutrinários, portanto, não adotavam a ideia da democracia, que estendia a representação a todos.

c) A Crítica de Alexis de Tocqueville (1805-1859) aos Doutrinários centrava-se num ponto: a liberdade deve ser conquistada não apenas para a burguesia, mas também para as massas [cf. Mélonio, 1993: 198-214].

3 – Imperativo Categórico do Cristianismo.

a) A Liberdade para todos, segundo Tocqueville, pressupõe a educação do proletariado e a prática de políticas públicas para torná-lo proprietário. Todos têm direito a serem livres, pelo simples fato, haurido da Revelação Cristã, de que todos fomos feitos à imagem e semelhança de Deus e remidos dos nossos pecados por Cristo. A partir destes princípios, Tocqueville dá ensejo a uma nova ciência política que ilumina os caminhos da democracia [cf. Mélonio, 1993: 33-55].

b) Insere-se, aqui, a experiência do “Banco do Povo”, criado pelo pai de Alexis de Tocqueville, o conde Hervé de Tocqueville (1772-1856), que foi prefeito em várias cidades francesas entre 1814 e 1830 [cf. Mélonio, 1993: 22-25].

c) Também se inserem, nesse contexto democratizante, as propostas dos sociais-democratas na Alemanha e na Inglaterra, para fortalecer os operários (mediante o estudo e a criação dos sindicatos, bem como através da participação nas eleições parlamentares, com o intuito de chegar ao poder para fazer reformas democratizantes) [cf. Tocqueville, 1997: 25-38].

4 – A crítica de Tocqueville ao democratismo rousseauniano.

a) A República Liberal (nos Estados Unidos) era definida por Tocqueville como “O reino tranquilo da maioria” (em A Democracia na América).

b) A República Rousseauniana (na França do Terror e de Bonaparte) era definida por Tocqueville como “O reino intranquilo da minoria” (em O Antigo Regime e a Revolução).

5 – As Relações Internacionais.

a) Não à guerra de conquista. Esta tese foi sustentada por Henri-Benjamin Constant de Rebecque e passou a ser defendida também pelos Doutrinários e pelo próprio Tocqueville.

b) Posição crítica de Tocqueville em face do Colonialismo: este é um fato histórico que se manifesta na peculiar forma de evoluírem sociedades europeias que conheceram a servidão e que, livres dela, transferiram esse modelo de desigualdade para as conquistas coloniais. Tocqueville não quer sagrar o colonialismo. Este deve ser superado, mediante o adequado desenvolvimento dos países colonizados. As respectivas Metrópoles têm o dever moral de formar as lideranças coloniais.

c) Dois grandes polos de Poder Democrático, no século XX, foram precursoramente anunciados por Tocqueville na sua obra A Democracia na América: os Estados Unidos (Democracia Representativa) e a Rússia (Democracia Despótica – ou Totalitária, como passou a ser denominada no século XX).

d) Destaco, a seguir, alguns aspectos históricos que ilustram a passagem de Tocqueville pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros da França (ao longo de 1849).

A política externa seguida pelo nosso autor inseriu-se no contexto herdado dos Doutrinários, que continuou a ter vigência na República chefiada por Charles-Luís Napoleão Bonaparte (1808-1873): garantir a paz da França com os demais Estados europeus. O evento mais importante foi, certamente, a garantia da independência e da paz no interior dos Estados Pontifícios, para o qual o governo francês centrou a estratégia na negociação com a Santa Sé, com a finalidade de que fosse abandonado o modelo de monarquia absoluta chefiada pelo Papa, para se converter numa monarquia constitucional. Tocqueville, em que pese a promessa feita pelo Secretário de Estado do Papa, no sentido de que seria adotado esse novo modelo, não foi atendido nessa exigência e terminou se sentindo ludibriado, como veremos mais adiante.

e) Tocqueville viu a sua saúde comprometida a partir da primavera de 1850. O exaustivo trabalho no Ministério de Assuntos Estrangeiros, desenvolvido ao longo de 1849, desgastou-o. A respeito, escreve André Jardin: “(...). Realizou um trabalho considerável, descuidando os seus assuntos pessoais, que se ocupou de voltar a pôr em ordem em novembro desse ano. (...). Mas, em março de 1850, a sua saúde quebrantou-se bruscamente. Esteve ausente da Assembleia a partir do dia 6 de março, e no dia 11 solicita uma licença de seis meses. Pela primeira vez cuspe sangue; aparentemente, é o começo de uma tuberculose de lenta evolução que o vencerá nove anos depois (...)” [Jardin, Alexis de Tocqueville, 1805-1859, 1988: 361].

f) Tocqueville permaneceu no Ministério de Assuntos Exteriores durante 5 meses, entre 3 de junho e 31 de outubro de 1849 (Gabinete Barrot). O nosso autor ficou pessoalmente marcado por essa experiência ministerial. O que mais o abalou foi a hipocrisia da Corte Pontifícia. Católico por tradição e por costume, encarava com desânimo a veneração dos católicos do seu tempo pelo Papa Pio IX. “Pena que você seja protestante”, escreveu-lhe o amigo Corcelle e este juízo marca entre eles uma verdadeira diferença de sensibilidade. “Para Tocqueville – frisa Jardin – as virtudes privadas do Santo Padre não têm grande peso diante da falta de lucidez que o encadeia à torta política do seu Secretário de Estado. Desde então, através de sua correspondência, pode-se destacar uma atitude anticlerical até esse momento ausente nele. Subsistirá ao longo do Segundo Império” [Jardin, 1988: 355].

g) A respeito do julgamento que foi feito pelos escritores e pela imprensa em relação à passagem de Tocqueville pelo Ministério, escreve Jardin: “Às vezes tem-se julgado severamente a ação de Tocqueville como Ministro: ‘O grave é que (...) este grande pensador, este grande autor, não foi um Ministro útil’ - escrevia, após a sua morte, Auguste Cochin a Montalembert -. Na mesma época em que ele era Ministro, nem a imprensa nem o Partido da Ordem, nem o da Oposição mostraram-se benévolos com ele. A imprensa inglesa parece ter-lhe mostrado mais indulgência. Em primeiro lugar, notamos quão difícil é julgar um Ministro de Assuntos Estrangeiros com base em cinco meses de atividade. Permanece fatalmente tributário dos grandes assuntos internacionais, embora os julgue mal encaminhados e seja herdeiro das decisões do seu predecessor. Certamente o grande fracasso de Tocqueville foi não ter podido impor a Pio IX umas instituições liberais em Roma, mas até o ponto em que ele assumia a direção das negociações, provavelmente julgava o sucesso muito duvidoso. De outro lado, na crise que não era anterior à sua chegada ao Ministério, a dos refugiados de Constantinopla, embora fosse considerado como o segundo Palmerston, teve o mérito certo de triunfar menos estrondosamente que o seu colega inglês e conservar, assim, boas relações com a Rússia e com a Áustria”.

“Sem dúvida – frisa ainda Jardin – o maior mérito de Tocqueville como Ministro é ter mantido a paz na Itália mediante uma boa harmonia com a Austria. Em 25 de setembro, o Times estimava que graças à capacidade de Schwarzenberg (Ministro austríaco) e de Tocqueville tinha sido possível evitar a guerra. Certamente, Austria não apoiou com força a França nas conferências de Gaeta, para obter do Papa as reformas com as quais tinha sido declarado o acordo. Mais do que má fé, parece ter-se tratado de reserva diante da Santa Sé e o próprio Tocqueville julgava que não podia, para obter mais, colocar a soga no pescoço de Pio IX. É claro que não esteve seguro de que o Papa tivesse podido governar tranquilamente com um regime constitucional, mas Tocqueville teve razão ao prever a impossibilidade de manter esquecidos os abusos do passado: a presença de uma guarnição francesa em Roma até 1870, está aí para testemunhá-lo” [Jardin, 1988: 358-359].

BIBLIOGRAFIA

JARDIN, André [1988]. Alexis de Tocqueville (1805-1859). (Tradução de R. M. Burchfield e N. Sancholle-Henraux). México: Fondo de Cultura Econômica.

MÉLONIO, Françoise [1993]. Tocqueville et les Français. Paris: Aubier.

ROSANVALLON, Pierre [1985]. Le moment Guizot. Paris: Gallimard.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1977]. A democracia na América. 2ª edição em português. (Tradução e Introdução de Neil Ribeiro da Silva). Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: EDUSP.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1991]. Oeuvres I - Voyages – Écrits politiques et Académiques. (Introduction et Chronologie par André Jardin; notices, notes et variantes par A. Jardin, Françoise Mélonio et Lise Queffélec). Paris: Éditions Gallimard / NRF, Bibliothèque de la Pléiade.

TOCQUEVILLE , Alexis de [1992]. Oeuvres II – De la démocratie em Amérique I (1835) et II (1840). (Introduction par Jean-Claude Lamberti et James T. Schleifer). Paris: Éditions Gallimard / NRF, Bibliothèque de la Pléiade.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1994]. Oeuvres III – État social et politique de la France avant et depuis 1789 (1836) – L’ Ancien Régime et la Révolution (1856) – Esquisses de L’ Ancien Régime et la Révolution (1853-1856) – Considérations sur la Révolution (1850-1858) – Souvenirs (1850-1851). (Introduction, notices, notes et variantes, chronologie des événements commentés par Tocqueville. Paris: Éditions Gallimard / NRF, Bibliothèque de la Pléiade.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1997]. Memoir on Pauperism. (Translated by Seymour Drescher, with an introduction by Gertrude Himmelfarb). Chicago: Ivan R. Dee; London: The Institute of Economic Affairs.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo [1998]. A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville. São Paulo: Mandarim / Brasília: Instituto Tancredo Neves.

WEBER, Max [1977]. Economía y Sociedad. (Tradução mexicana de J. Medina Echavarría et alii). 2ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica.