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"VOLVER LA VISTA ATRÁS": AS AVENTURAS E DESGRAÇAS DE DOIS JOVENS GUARDAS VERMELHOS, SEGUNDO O ESCRITOR COLOMBIANO JUAN GABRIEL VÁSQUEZ (1973-)

Capa do romance de Juan Gabriel Vásquez intitulado:


VOLVER LA VISTA ATRÁS - Capa da obra de Juan Gabriel Vásquez, premiada pela Editora Alfaguara em 2021

O Prêmio Nobel de Literatura, o escritor peruano Mário Vargas Llosa (1936-) fez, recentemente, interessante resenha do novo romance do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez (1973-) intitulado: Volver la vista atrás, publicado em 2021, em Barcelona, pela Editora Alfaguara, tendo recebido o Prêmio Alfaguara de Romance. [CF. Vargas Llosa, Mário, "Volver la vista atrás", O Estado de S. Paulo - Cultura, 5 de outubro de 2021].

Juan Gabriel Vásquez é um escritor colombiano de 48 anos de idade. Nascido em Bogotá, estudou Direito na prestigiosa Universidade del Rosário, situada em prédio histórico no centro da capital colombiana. Apenas para destacar o pendor de Vásquez pela Literatura, registremos que a sua dissertação para a formatura em Direito teve como título: La venganza como prototipo legal en la Ilíada (tendo sido publicada, em 1996, pela editora da Universidade del Rosário).

Juan Gabriel doutorou-se, ulteriormente, em Literatura Sul-americana na Universidade Sorbonne, de Paris, entre 1996 e 1998, tendo depois passado uma temporada na região das Ardenas, na Bélgica, onde, no pequeno povoado de Xhoris, morando com camponeses da região, dedicou-se ao estudo da obra de três romancistas que o marcaram definitivamente: o polonês Joseph Conrad (1857-1924) que escreveu a sua obra em inglês, o Prêmio Nobel de Literatura V. S. Naipaul, natural de Trinidad-Tobago (1932-2018) e o espanhol Javier Marías Franco (1951-) filho do filósofo Julián Marías (1914-2005). Em 1999, Juan Gabriel mudou-se para Barcelona, onde residiu até 2012. Hoje mora na sua cidade natal, Bogotá.

Vásquez é autor de mais sete novelas: Persona (1997), Alina Suplicante (1999), Los Informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007), El ruido de las cosas al caer (2011), Las reputaciones (2013) e La forma de las ruinas (2015). Embora relute em ser considerado como um autor que forma parte da geração de narradores pertencentes ao boom do “realismo mágico”, à maneira do seu compatriota Gabriel García Márquez (1927-2014), o certo é que muitos, na Colômbia, consideram que Juan Gabriel Vásquez é um novo “Gabo” (o nome popular dado ao Prêmio Nobel colombiano).

A trama do novo romance de Juan Gabriel Vásquez, Volver la vista atrás, é constituído por uma história real: a agitada vida do cineasta colombiano Sergio Cabrera (1950-), filho do escritor, cineasta e teatrólogo espanhol Fausto Cabrera Díaz (1924-2016) com a colombiana Luz Elena Cárdenas. Fausto Cabrera teve o mérito de ser um dos fundadores da Televisão Colombiana que, nos seus primórdios, era uma empresa estatal. Ficou famoso o seu programa de TV intitulado: “La imagen y el poema”, no qual Cabrera recitava poemas que eram ilustrados, ao vivo, pelo pintor Fernando Botero (1932-), que despontaria posteriormente como o grande Mestre da Pintura Contemporânea em Colômbia. Cabrera tinha um princípio que inculcou nos seus filhos, Sérgio e Marianela: “Vive la vida de tal suerte que viva quede tras la muerte”. Foi, a bem da verdade, um revolucionário, que se engajou inicialmente do lado dos Republicanos espanhóis, que lutavam contra os Ultraconservadores e Monarquistas seguidores de Francisco Franco (1892-1975), vencedor da sanguinolenta guerra civil e que governou com mão de ferro a Espanha até a sua morte, tendo mandado imprimir nas moedas o seguinte dístico: “Francisco Franco, caudillo de España por la gracia de Dios”.

Os filhos de Fausto Cabrera e Luz Elena Cárdenas receberam uma educação inspirada pelos ideais revolucionários maoístas. Com a idade de 10 anos, Sérgio e Marianela viajaram com os seus pais para Pequim, em 1960. Aos 16 anos Sérgio, assim como a sua irmã, converteram-se em “guardas vermelhos” de Mao Tse Tung (1893-1976) ao ensejo da “Revolução Cultural”. Ao regressarem à Colômbia, Sérgio e Marianela entraram a formar parte da guerrilha maoísta no “Exército Popular de Libertação”, do qual Sérgio se afastou após quatro anos de combates na selva, tendo regressado a Pequim com a finalidade de estudar filosofia. A sua irmã, Marianela, após abandonar a guerrilha, continuou fiel aos ideais socialistas, tendo-se dedicado à ação social.

Em Pequim, Sérgio conheceu o cineasta holandês Joris Ivens (1898-1980), autor do clássico filme de inspiração revolucionária intitulado: Tierra de España (1937), no qual colaboraram o escritor e ativista norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961) e o cineasta e produtor americano Orson Welles (1915-1985). Com a ajuda da mãe, Luz Elena Cárdenas, e do cineasta holandês Joris Ivens, Sérgio Cabrera conseguiu entrar na Escola de Cinema de Londres (1975), tendo-se dedicado, ao regressar à Colômbia, à produção cinematográfica. Sérgio Cabrera tem produzido 6 longas-metragens e 12 curtas, além de inúmeros documentários e séries para TV. Dois filmes merecem menção: La estrategia del caracol (1993) e Ciudadano Escobar (2004). O primeiro foi muito premiado na Colômbia e no exterior pelo seu conteúdo de crítica social. O segundo relatava os fatos marcantes da vida do controvertido narcotraficante Pablo Escobar (1949-1993). Sérgio Cabrera elegeu-se para a Câmara de Representantes pelo partido “Colômbia Siempre”, tendo renunciado ao mandato em decorrência de ameaças de morte.

Passo, a seguir, a citar a parte que Mario Vargas Llosa dedica, na resenha do romance Volver atrás de Juan Gabriel Vásquez, aos personagens sobre os quais tenho escrito as linhas anteriores:

“O personagem de Fausto Cabrera, um espanhol filho da guerra civil, que fugiu para a Colômbia, onde se tornou documentarista, teve uma vida dura e difícil, como quase todos os exilados, e foi cineasta, como seu filho Sérgio, um dos personagens principais da história; a outra é sua irmã Marianela. A aventura vivida pelos dois é realmente excepcional. Seu pai foi cineasta, além de militante político, e seu filho Sérgio também, a quem a Cinemateca de Barcelona presta uma homenagem, exibindo vários de seus filmes, além de entrevistá-lo. É aqui que surgem surpresas incríveis. Pois Sérgio não foi apenas um cineasta de destaque, autor e diretor, entre outros filmes, do muito estimado e discutido A Estratégia do Caracol. A vida dos dois irmãos teve uma reviravolta espetacular quando seu pai descobriu o maoísmo, tornou-se um maoísta colombiano de ponta e decidiu educar seus filhos, Sérgio e Marianela, na República Popular da China, fazendo dos dois jovens, praticamente duas crianças, dois guardas vermelhos, como os milhões de meninos e meninas que as convicções de Mao Tsé-tung transformaram, naqueles anos, em soldados que transformariam o gigante chinês no instrumento da revolução mundial, substituindo a URSS nesta tarefa”.

“As páginas que narram as aventuras dessas duas crianças na revolucionária República Popular da China, agitadas pelas ideias e sobressaltos de Mao, são comoventes; as enormes dificuldades que precisam superar para se adaptarem a um ambiente tão diferente daquele em que foram criadas, adotando uma língua muito distante da sua, assim como os costumes rígidos e a formação militar que os converte em pequenos soldados, são angustiantes e exaltantes, precisamente porque tudo está narrado sem dramas, nem misericórdia, de maneira imparcial e com absoluta sobriedade. A história da família é assim, porque, como o pai, a mãe também milita nessa brigada, e a compreensão e o espírito que reinam entre esses quatro personagens é invejável, sem rebeliões ou protestos, em total obediência. É impossível não admirar as páginas que narram esses dias, meses e anos, em que os pais, de longe, na Colômbia, traduzem suas convicções maoístas em ações, e em que, na China, essas crianças se metamorfoseiam e renascem, instruídas pelas cartas de seus pais e pelos seus novos guias, que os reeducam e transformam, para que sejam, no retorno ao seu país, o exemplo a seguir por todos os jovens e crianças como eles. São páginas muito bonitas, de uma luta que se adivinha, que está oculta para que seja mais vívida, uma luta íntima e secreta, inclusive entre os próprios irmãos, que raramente falam sobre o que vivem, e esse heroísmo secreto é, para mim, o melhor do livro, mesmo que depois, quando as crianças se tornam jovens, voltam para a Colômbia e se alistam, seguindo as instruções de seus pais, nas guerrilhas maoístas, os acontecimentos sejam mais espetaculares e dramáticos. Mas essas páginas, que narram a aventura secreta daquelas crianças, sua profunda transformação, sua mudança de corpo e alma, estão narradas admiravelmente, com uma frieza deliberada, para que tudo isso se destaque e se converta em um heroísmo secreto e cotidiano”.

“Até que chega a voz remota do pai – não sei se devo admirá-lo ou odiá-lo –, através de uma carta que leva semanas ou meses para alcançar seu destino, indicando que o período de formação terminou, que agora se trata de colocar em prática o que se aprendeu, voltando para a Colômbia e militando na guerrilha. Aqui surgem os conflitos, pela primeira vez. As experiências dos dois irmãos prepararam-nos para o heroísmo, não para a rotina diária feita de esperas intermináveis, emboscadas e fraquezas, e até mesmo traições, como a dos comandantes que não apenas descumprem seus papéis, como possuem vícios, se acostumam com esses cargos de poder e tratam seus soldados com desprezo. Os irmãos, que estão separados, sofrem o indizível com aquela experiência da luta que é uma grande espera, feita de rotinas asfixiantes e da silenciosa suspeita de terem se equivocado. Os tiros são muitos e até os dois jovens, que não renunciam, entretanto, ao compromisso revolucionário, fogem dali, com uma espécie de decepção discreta, recalcitrante, ainda que, para ele, os filmes sejam uma redenção e, para ela, a ação social seja uma forma de se redimir e seguir militando”.

“As conclusões nem estão claras nem Juan Gabriel Vásquez se atreve a mostrá-las. Mas elas estão aí, nos anos gastos naquela luta sem fim, em todos os mortos e feridos, na inesgotável guerra em que um país se desgasta, enquanto as vítimas crescem e se multiplicam, sempre em vão. Cada leitor deve tirar suas próprias conclusões, naturalmente. Agora, aqueles dois jovens estão longe de ser quem foram, talvez não arrependidos, já que agora estão diferentes, mais lúcidos e mais independentes de tudo aquilo em que acreditaram e foram se tornando. O romance está aí com seu conjunto de experiências, e cada um deve tirar suas próprias conclusões: Até quando continuar matando? O sangue e os cadáveres resolvem os problemas? Há os que acreditam apaixonadamente que sim. No entanto, não é tão fácil tirar essas conclusões, sobretudo para quem viveu a experiência e levou balas nas costas, como aconteceu com Marianela, que ainda apitam quando ela passa pelos sistemas de segurança dos aeroportos, ou como aconteceu com Sérgio, naquela vez em que duvidou. Essas conclusões não serão fáceis, é preciso refletir sobre elas para conseguir as respostas adequadas, que serão sempre contraditórias”.

“A obra de um romancista não precisa substituir a visão dos leitores, oferecendo soluções fáceis, libertando-os da tarefa de refletir e decidir por sua própria conta o que teriam feito diante daqueles dilemas com os quais Sérgio e Marianela se debateram. Ambos estão vivos, felizmente, e pelo menos um deles, em seu trabalho como cineasta, deve ter refletido muito profundamente. Mas o destino de Marianela me deixa em suspenso e aterrorizado, por tudo ao que sobreviveu, educando-se para ser uma guarda vermelha fora do comum. Ela sente que conseguiu? Está contente consigo mesma? Frustrada, mas bem? É impossível saber lendo esse romance excepcional. Mas aí começa o trabalho secreto que suas páginas deixam em nossa memória. O que você teria feito? Se arrepender ou perseverar? E até que ponto? Até converter o mundo inteiro em um bólido flamejante do qual nada nem ninguém pudesse escapar? Os bons romances não facilitam as respostas, resta aos leitores sensibilizados pela fantasia depositada nessas páginas saber como responder. Fazendo o que fez, o autor dessas páginas excepcionais pode ficar em paz”.

Poderia adicionar às palavras finais de Vargas Llosa a pergunta que Immanuel Kant (1724-1804) se fazia quando passava em frente à legenda que ornava o cemitério da sua cidade, Königsberg: “Pax perpetua”: “Será que a paz dos túmulos é a única a que nós, humanos, podemos aspirar?” E perguntava o filósofo: “Não haverá outra paz, que nos preserve a vida e a liberdade?” Ora, a paz de Mao e da ditadura chinesa ficam no adágio do cemitério, porque ancoram, como tinha feito Rousseau, na aniquilação do indivíduo e da defesa dos seus interesses, relacionados com a preservação da vida, da liberdade e das posses. Mas, lembremos a lição do sábio de Königsberg: é possível, sim, outra paz, aquela que surge do fundo da nossa alma imortal, na conquista da liberdade! (cf. Kant, A paz perpétua, 1795).